Guantánamo, a ilegalidade total
Depois de dois anos de detenção, violando as leis internacionais, membros do judiciário, das organizações humanitárias e dos meios de comunicação denunciam a recusa do governo Bush em permitir um processo judicial legal para os 660 presos de GuantánamoAugusta Conchiglia
Presos no Afeganistão ou no Paquistão, ou ainda entregues por outros países aos Estados Unidos, cerca de 660 “combatentes inimigos” encontram-se detidos há quase dois anos na base norte-americana de Guantánamo, em Cuba, em completa violação de todas as leis internacionais. Presume-se que os decretos baixados pelo presidente dos Estados Unidos em nome do “estado de guerra contra o terrorismo” sejam a única justificativa para tal detenção. Até o dia de hoje, não foi oficialmente formulada qualquer acusação contra os presos e as comissões militares ad hoc, previstas para 2001, ainda não foram constituídas.
Apesar de termos passado vários dias na base de Guantánamo, não nos foi permitido contato algum com os prisioneiros. Os homens do general Geoffrey Miller, comandante do campo e chefe da Força Tarefa Conjunta (Joint Task Force – JTF), que recebe ordens diretamente do Pentágono, o impedem. Isolados dos blocos de segurança máxima, os jornalistas que visitam as instalações só têm acesso aos prisioneiros do Campo 4, onde se encontram aqueles que se mostram “cooperativos”. É proibido falar com eles ou responder a suas perguntas.
População triplicada
Num momento em que passava por um certo declínio, a base de Guantánamo não parou de crescer a partir do final de 2001 e da guerra do Afeganistão. Sua população, militar e civil, triplicou, passando atualmente de 6 mil pessoas. As unidades de JTF e a prisão estão instaladas numa área abandonada. Os mapas da base não trazem qualquer referência à existência de um centro de detenção nem dos inúmeros prédios de serviços que existem em torno dele.
Ao se aproximar da zona de segurança máxima, o automóvel do visitante é obrigado a avançar em ziguezague devido à existência de umas barreiras de cor alaranjada, o que facilita a tarefa das sentinelas de verificar cada veículo. Desde que foram presos o capelão muçulmano do campo e dois tradutores – equivocadamente acusados de espionagem1 -, redobram-se as medidas de segurança.
Tentativas de suicídio
Os prisioneiros, cujas celas ficam com as lâmpadas acesas durante a noite, são submetidos a uma vigilância permanente por parte dos guardas que fazem rondas
Dividido em quatro quarteirões, o campo Delta tem condições de acomodar mil pessoas; por ocasião de nossa passagem, encontravam-se ali 660 presos de 42 nacionalidades diferentes. O campo é cercado por um entrelaçado de várias fortificações metálicas, cobertas de nylon verde e coroadas por arame farpado e fios de alta tensão. Os prisioneiros, cujas celas ficam com as lâmpadas acesas durante a noite, são submetidos a uma vigilância permanente por parte dos guardas que fazem rondas e ficam a postos, em guaritas.
As condições do campo são de tal ordem, que se registraram 32 tentativas de suicídio (realizadas por 21 presos). Segundo o capitão John Edmondson, cirurgião que dirige o hospital do campo, 110 presos – um em cada seis – recebe assistência devido a perturbações psicológicas que, em geral, ocorrem após períodos de depressão. Vinte e cinco deles recebem tratamento psiquiátrico. Um outro preso, que há um ano vem fazendo uma greve de fome intermitente, também estava internado por ocasião de nossa visita e era alimentado por soro na veia.
Condições deploráveis
Pelo menos três, dos quatro campos de detenção, funcionam em condições deploráveis. Blocos de 48 celas – dois andares com vinte e quatro cada -, cada uma delas de apenas dois metros por dois metros e meio.As paredes e as portas, feitas de um entrelaçado metálico, impedem qualquer privacidade. A única quebra da rotina consiste numa caminhada solitária de vinte minutos, três vezes por semana, numa enorme jaula colocada sobre o concreto e de um banho de chuveiro de cinco minutos – cada vez que o preso é levado para a caminhada ou para o banho, há os arreios obrigatórios: algemas e grilhões, nos pés, presos por correntes.
No campo 4, o grupo de homens que pudemos ver parecia homogêneo em idade, abaixo dos trinta anos; homens barbudos e com turbante na cabeça. Os 129 presos do campo vivem em pequenos grupos e suas celas, menos estreitas, chegam a ter até dez leitos. Comem juntos e podem sair várias vezes por dia para os espaços que ficam ao lado de suas prisões, onde são afixados cartazes sobre o trabalho de reconstrução do Afeganistão.
Ao contrário dos prisioneiros dos outros três campos, que vestem uniformes cor-de-laranja, os do campo 4 se vestem de branco, “a cor da pureza no islamismo”, explica orgulhosamente um dos carcereiros. Salienta ainda que aqueles prisioneiros têm direito a tapetes de verdade para suas orações, além de exemplares do Corão, que foram distribuídos a todos os presos após uma greve de fome que fizeram nas primeiras semanas após sua chegada2.
Imagem insuportável
Ao permitir a visita de jornalistas, aparentemente o Pentágono deseja corrigir a imagem bastante negativa dos primeiros meses. Mostram-nos, por exemplo, o “Campo Iguana”, um bangalô à beira de uma falésia que dá para o mar, cercado da grade metálica de segurança. Ali, estão encarcerados há mais de um ano três jovens “combatentes inimigos”, menores de idade – de 13 a 15 anos! Comunicam-nos que estão fazendo um curso de inglês e que têm direito a jogar futebol e ver alguns vídeos. Entretanto, não é permitido aos jornalistas vê-los ou saber sua nacionalidade.
Finalmente, também faz parte do programa uma passagem pelo “Campo X Ray”. Foi por ali que passaram, inicialmente, os primeiros prisioneiros e o mundo inteiro assistiu às imagens insuportáveis de deportados de joelhos, com suas fantasias cor-de-laranja, sob a ameaça das armas de seus carcereiros, acorrentados e mantidos em isolamento absoluto, encapuzados e usando fones de ouvido.
“Combatentes inimigos”
As condições do campo são de tal ordem, que se registraram 32 tentativas de suicídio (realizadas por 21 presos)
Concebido, originalmente, para manter presos os boat people haitianos mais violentos, e até aqueles contaminados de Aids, o “Campo X Ray” encontra-se tomado por um capim espesso e foi definitivamente abandonado. O próximo deve ser o Campo Delta. Isto porque está sendo construído um Campo 5, cuja primeira etapa deverá estar terminada em julho de 2004. Este presídio, construído em caráter definitivo por uma centena de prisioneiros, será reservado aos presos que tenham sido condenados pelas “Comissões Militares” e contará com uma dependência para a execução de penas de morte…
Foi no dia 13 de novembro de 2001 – data em que a Aliança do Norte tomou Cabul – que foi publicada a ordem presidencial que determinou a criação do centro de detenção de Guantánamo. Foi necessário encontrar um artifício que permitisse alojar, no local, os presos que o presidente norte-americano iria qualificar de “combatentes inimigos”, inaugurando um novo “conceito”, alheio ao direito norte-americano e ao internacional3.
Uma inspiração de Wolfowitz
“O governo Bush recusa-se a considerar os ?combatentes inimigos? prisioneiros de guerra, negando-lhes o direito de serem conduzidos perante um tribunal competente para determinar sua situação, o que, no entanto, é previsto pela III Convenção de Genebra, ratificada pelos Estados Unidos”, afirma Wendy Patten, responsável pelo setor jurídico da organização Human Rights Watch4. “As Comissões Militares, que não prevêem o direito de recurso junto a um tribunal independente, não lhes garantirão um processo justo”. De seu lado, o governo sustenta que a opção pelas Comissões Militares tem por objetivo impedir que informações confidenciais sejam divulgadas.
O que é rebatido por Eugene Fidell, ex-advogado militar e presidente do Instituto Nacional de Justiça Militar: “Existiam, pelo menos, duas outras opções: os Tribunais Penais que, no passado, julgaram casos de terrorismo, como o do atentado contra o World Trade Center em 1993, e as Cortes Marciais, como a que julgou Manuel Noriega, ex-presidente do Panamá5.”
Um homem foi a principal fonte de inspiração para a criação dessas Comissões: o subsecretário da Defesa, Paul Wolfowitz. Caberá a ele escolher quem serão os juízes e o procurador, assim como determinar os advogados de acusação. Também será ele quem nomeará as três pessoas que integrarão o grupo de jurados junto ao qual os réus poderão recorrer. E, finalmente, também será ele que examinará suas recomendações, selecionando-as.
Buraco negro jurídico
Ao qualificar os presos de “combatentes inimigos”, o presidente norte-americano inaugurou um novo “conceito”, alheio ao direito norte-americano e ao internacional
“Os militares desempenharão o papel de interrogadores, de procuradores, de advogados de defesa, de juízes e, caso sejam pronunciadas sentenças de morte, de carrascos. Eles apenas se justificarão ao presidente Bush”, declarou lorde Johan Steyn, magistrado britânico, autor de um enérgico ato rogatório a que chamou “o buraco negro jurídico de Guantánamo6 “.
Vinte meses após a criação da colônia penal de Guantánamo, e num momento em que o governo norte-americano se mostra intratável diante dos apelos de advogados e de governos ocidentais – entre os quais, a França – que têm cidadãos naturais de seus países entre os prisioneiros, a questão ganhou novos contornos.
Primeiramente, devido à decisão inesperada da Corte Suprema, de examinar os recursos impetrados pelas famílias de 16 presos (doze do Kuait, dois ingleses e dois australianos). Na realidade, no dia 10 de novembro de 2003, a mais alta instância jurídica dos Estados Unidos aceitou a tarefa de determinar se a justiça norte-americana era competente “para arbitrar a legalidade da detenção de estrangeiros, capturados no exterior durante as hostilidades, que estão presos na base naval de Guantánamo”. David Cole, professor de Direito em Georgetown (Washington) e autor de vários livros sobre os desvios jurídicos autoritários do pós-11 de setembro7b, manifestara seu ceticismo em relação a essa posição alguns dias antes: “A Corte Suprema acata apenas 2% dos recursos apresentados e, normalmente, limita-se a examinar casos ou pareceres emitidos por instâncias inferiores da justiça que se pronunciem de forma divergente sobre a questão”. Ora, neste caso, ambas as instâncias inferiores da justiça haviam confirmado a posição do governo. “A base de Guantánamo encontra-se em território de soberania cubana”, acrescenta Cole, “e não caberia à justiça norte-americana interferir na questão.”
Rompendo o silêncio
Os militares desempenharão o papel de interrogadores, de procuradores, de advogados de defesa, de juízes e, caso sejam pronunciadas sentenças de morte, de carrascos
No dia 9 de novembro, por ocasião de uma conferência no Centro dos Direitos Constitucionais de Washington, rompendo o silêncio em que se haviam mantido os principias dirigentes do Partido Democrata, Albert Gore deu a seguinte declaração: “A questão dos prisioneiros de Guantánamo prejudicou sensivelmente a imagem dos Estados Unidos no mundo inteiro, mesmo junto a seus aliados […]. Os estrangeiros presos em Guantánamo devem ser ouvidos pela justiça para que seja estabelecida sua situação legal, conforme prevê a Convenção de Genebra […]. A forma pela qual o secretário da Defesa, Donald Rumsfeld, administrou a questão destes prisioneiros foi quase tão elaborada quanto seu plano para o pós-guerra no Iraque…”
É verdade que, antes de seu discurso, alguns senadores democratas, como Patrick Leahy8 , questionaram insistentemente o executivo sobre as acusações de tortura dos prisioneiros – inclusive, a extradição de presos de Guantánamo para países do Oriente Médio, onde a prática de tortura é comum -, sobre a morte em condições suspeitas de dois afegãos detidos na base de Bagram, no Afeganistão, e sobre o emprego de técnicas violentas de interrogatório – stress and duress, em linguagem militar (pressão e coação) 9 . Leahy declarou, sem rodeios, que “os presos de Guantánamo devem ser considerados prisioneiros de guerra” e “tratados de maneira humanitária, conforme as recomendações da Convenção de Direitos Humanos”. Sua determinação, entretanto, custou-lhe o isolamento por um longo período junto à classe política norte-americana.
Revivendo o macartismo
O ex-Subsecretário de Estado, William Rogers, condena os métodos do atual governo: “Trata-se de um dos períodos mais negros de nossa história, depois do macartismo
De seu lado, os advogados das famílias dos presos não pouparam esforços. Tom Wilner, membro de um famoso escritório de advocacia de Washington, Shearman & Sterling, e defensor das famílias dos kuaitianos, manteve permanentemente informados os meios de comunicação e mobilizou inúmeras personalidades políticas.
William Rogers, um dos dois ex-subsecretários de Estado10 que entrou com um recurso “amigável” junto à Corte Suprema, lamentou, quando o entrevistamos no início de novembro, “a falta de consciência da sociedade norte-americana diante da gravidade destes fatos. O direito constitucional não pode ser ridicularizado sob o pretexto de que estamos em guerra contra o terrorismo. Pelo contrário, deveríamos defender estes princípios, encarnar o direito internacional diante destes desvios”.
Subsecretário de Estado do presidente Gerald Ford, William Rogers não mede as palavras duras para condenar os métodos do atual governo: “Trata-se de um dos períodos mais negros de nossa história, depois do macartismo. Atualmente, utilizam-se os mesmos métodos arbitrários e repressivos”. Co-signatário do recurso, o contra-almirante Donald Guter passou para a reforma no ano passado, entregando o cargo de chefe da justiça militar da Marinha. Nesse posto, participou das decisões de utilizar a base de Guantánamo para interrogar os presos. “Trazer os presos para Guantánamo podia ter sentido em termos das exigências de segurança; mas, agora, corremos o risco de ver alguns deles serem condenados à prisão perpétua sem terem recebido um julgamento justo”, declarou Guter no dia 9 de outubro de 200311. Juízes e procuradores aposentados também fizeram pressão junto à Corte Suprema, lembrando-a de que os termos da Convenção de Genebra foram incorporados ao regimento interno do exército norte-americano e que é ilegal ignorá-lo.
Denúncia da Cruz Vermelha.
Os termos da Convenção de Genebra foram incorporados ao regimento interno do exército norte-americano e é ilegal ignorá-lo
Finalmente, deve ser destacada a iniciativa de um norte-americano descendente de japoneses, Fred Korematsu, que, em 1942, durante a II Guerra Mundial, contestou a constitucionalidade de um decreto que autorizava a detenção de 120 mil cidadãos de origem japonesa. Korematsu entrou com um recurso porque – como declarou publicamente – estava decidido a agir de forma a que os norte-americanos não esquecessem um período obscuro de sua própria história.
No arrazoado que enviou à Corte Suprema, apresentado pelo procurador-geral Theodore Olson, o governo pleiteara, de maneira um tanto desajeitada, que o exame dos recursos fosse simplesmente recusado, pois “em tempos de guerra, a justiça normalmente não interfere nas decisões do executivo…” Sem se manifestar em relação à “sentença” final, que será divulgada em junho de 2004, a Corte Suprema quis deixar claro que somente ela pode se pronunciar sobre “a lei” – e não o governo.
A partir de novembro, a questão de Guantánamo começou a sair do silêncio. Mesmo nos Estados Unidos, a opinião pública já fora surpreendida pela “gritaria” da Comissão Internacional da Cruz Vermelha quando esta saiu de sua habitual reserva para denunciar o desespero que a total ausência de perspectivas leva aos presos.
Onda de críticas
O governo não pôde ficar indiferente à onda de críticas. No final de novembro, o Pentágono anunciou que de 100 a 140 presos seriam libertados em breve – o que se continua aguardando – e, às pressas, nomeou um defensor público para garantir a defesa do preso australiano David Hicks. Submetido a maus tratos, este iniciara uma greve de fome, chamando a atenção para seu caso. Contrariamente às disposições determinadas pelas Comissões Militares, o Pentágono o autorizou a ser representado por um advogado civil de sua escolha e garantiu o sigilo de suas futuras conversas. Isto resultou de um acordo negociado entre os Estados Unidos e a Austrália, semelhante ao que, alguns meses antes, fora decidido em relação à Grã-Bretanha – e que excluiu os presos de nacionalidade britânica da possibilidade de pena de morte. Os advogados de quatro dos seis presos franceses – entre os quais o famoso Paul-Albert Iweins – esperavam que a França conseguisse, no mínimo, garantias semelhantes. O que não ocorreu, apesar das iniciativas do Ministério das Relações Exteriores.
Depois de Hicks, foi a vez de Yaser Hamdi, de nacionalidade norte-americana, ser autorizado a contratar um advogado. Preso no Afeganistão, Hamdi foi inicialmente levado para Guantánamo, até os militares ficarem sabendo que era um cidadão norte-americano. Em abril de 2002, foi transferido para a prisão da base naval de Norfolk, no Estado de Virgínia, onde ficou, incomunicável, até hoje. Posteriormente, o governo – que num primeiro momento decretara que as Comissões Militares se destinavam exclusivamente aos estrangeiros – “ampliou o conceito de justiça militar, abrangendo cidadãos norte-americanos que, unilateralmente, designou ?combatentes inimigos?12 “, atribuindo-se o direito de os manter detidos em prisões militares por tempo indefinido e privados de qualquer contato com o exterior.
Direito imprescritível
Ao decidir examinar recursos das famílias de 16 presos, a Corte Suprema deixou claro que somente ela pode se pronunciar sobre “a lei” – e não o governo
Walker Lindh, no entanto (o “Taliban norte-americano”), que foi capturado no Afeganistão ao mesmo tempo que Hamdi, foi julgado por um tribunal penal de Alexandria (Estado de Virgínia) e gozou de todas as prerrogativas que a Constituição concede à defesa13 .
Hamdi acabou conseguindo obter o direito à assistência jurídica um dia antes de terminar o prazo para o encaminhamento à Corte Suprema dos últimos recursos envolvendo justamente esses direitos… É verdade que sua detenção, incomunicável, assim como a de outro cidadão norte-americano, José Padilla14 , causam mal-estar na própria assessoria do secretário da Justiça, John Ashcroft. Um de seus ex-assistentes, o professor Viet Dinh, que desempenhou um papel importante na redação da legislação antiterrorista, manifestou sua discordância em relação ao tratamento dispensado a cidadãos norte-americanos e expressou sua satisfação com a mudança. Em compensação, Dennis Archer, presidente da Associação Norte-Americana de Advogados – que conta com 400 mil membros – lamentou que o Pentágono não tenha optado por fazer da decisão um princípio geral.
“No caso, o governo exerceu um poder discricionário”, explica Wendy Patten, da Human Rights Watch. “Na realidade, o Pentágono continua afirmando que os ?combatentes inimigos? detidos nos Estados Unidos não têm qualquer direito legal de contratar um advogado. Neste caso específico, a concessão só foi possível porque o interrogatório do prisioneiro já havia terminado. Resumindo, continuam se recusando a reconhecer que o direito à defesa é imprescritível e não pode depender da boa vontade do governo.”
Vazio jurídico inaceitável
O governo não pôde ficar indiferente à onda de críticas. No final de novembro, o Pentágono anunciou que de 100 a 140 presos seriam libertados em breve
Embora pareça estar em vias de perder a batalha com a imprensa norte-americana, a Casa Branca conta, no entanto, com alguns apoios incondicionais, tais como o Wall Street Journal. Reagindo às críticas da comissão da Cruz Vermelha, o jornal criticou aquela instituição por “ter abandonado a regra de confidencialidade e ter entrado, deliberadamente, no terreno político15 “. Segundo o jornal, os ?combatentes inimigos? “devem ser mantidos presos até o final da guerra contra o terrorismo”. E acrescenta que esta “não é uma luta sem fim, comparável à guerra contra o crime ou contra a pobreza. Trata-se de um conflito entre os Estados Unidos e a Al-Qaida, os grupos a que esta organização está vinculada e os países que decidiram lhe dar apoio. Este conflito irá terminar quando a Al-Qaida tiver sido aniquilada e não tenha mais condições de lançar ataques contra alvos norte-americanos”.
A opinião de Béatrice Mégevand-Roggo, chefe da delegação da Comissão Internacional da Cruz Vermelha para a Europa e as Américas, é inteiramente diferente. Para ela, a “guerra” entre os Estados Unidos e a Al-Qaida resume-se ao conflito no Afeganistão que, por sua vez, decorre de um conflito armado internacional concreto: “Esse conflito, regido pela 3ª Convenção de Genebra, terminou no dia 19 de junho de 2002, com a assembléia da Loya Jirga que legitimou o governo do presidente Karzai. No entanto, o direito internacional humanitário16 prevê a possibilidade de continuarem sendo detidos prisioneiros, desde que sejam acusados de ações precisas e submetidos a um processo judicial cujas garantias mínimas são previstas pela 3ª Convenção. Em relação a todos aqueles que foram presos após o dia 19 de junho de 2002, no âmbito do conflito interno que continua assolando violentamente o Afeganistão, existem também disposições do direito internacional humanitário e garantias fundamentais que se ajustam perfeitamente ao caso dos presos de Guantánamo. Concluindo: se não existe uma cláusula que obrigue a soltar todos os presos detidos em Guantánamo, existe, em compensação, a obrigação clara de submetê-los a um processo judicial legal que obedeça às regras do direito internacional ou interno. Atualmente, essas pessoas são mantidas num vazio jurídico total há vários meses, e até anos: é justamente isso que consideramos inaceitável. Dizê-lo nada tem de político, pois está plenamente de acordo com nosso papel humanitário.”
A um ano das eleições e num momento em que surge, ainda que tímida, a oposição dos cidadãos norte-americanos às leis de exceção, não deveria o governo Bush – sob o fogo cruzado de uma parcela crescente do establishment judiciário, das organizações humanitárias e dos meios de comunicação que denunciam a recusa em permitir a ação da justiça para com os presos de Guantánamo – retirar estes últimos do “buraco negro” em que seu governo os jogou e acatar as regras do direito internacional?
(Trad.: Jô Amado)
1 – Posteriormente, outro inquérito foi aberto e foram retiradas as acusações de espionagem. O capelão foi liberado e aguarda o processo em liberdade.
2 – Alguns dos presos declararam não ter religião e um se disse católico.
3 – Ler, de Olivier Audeoude, “Prisonniers sans droits”, Le Monde diplomatique, abril de 2002.Ver também o estudo da Associação Norte-Americana de Advogados sobre o tratamento dos “combatentes inimigos”: www.abanet.com
4 – O site desta organização humanitária norte-americana tem uma análise das leis pós-11 de setembro e dos direitos dos presos de Guantánamo: www.hrw.org
5 – Ler, de James Meek, “People the law forgot”, The Guardian, Londres, 3 de dezembro de 2003.
6 – Lorde Steyn já desempenhara um papel fundamental na quebra de imunidade do general Pinochet. Ler, de Johan Steyn, “Guantanamo: a monstruous failure of justice”, International Herald Tribune, Paris, 26 de novembro de 2003.
7 – Ler, de David Cole, Enemy Aliens, ed. The New Press, Nova York, 2003, e, com James Dempsey, Terrorism and Constitution, ed. The New Press, 2002.
8 – Patrick Leahy (do Estado de Vermont) é presidente da Comissão do Orçamento do Senado e foi um dos 12 senadores que votaram contra a lei, aprovada em outubro de 2003, que concedeu 87 bilhões de dólares para a reconstrução do Iraque.
9 – Ler o relatório da Human Rights Watch e o artigo “US decries abuse but defends interrogations”, The Washington Post, 26 de dezembro de 2002.
10 – O outro foi Alexander Watson. Além dos recursos impetrados pelos advogados das famílias dos presos, deram entrada na justiça seis outros.
11 – Kingt Ridder Newspapers, 9 de outubro de 2003.
12 – Ler, de David Cole, Enemy Aliens, op.cit.
13 – Inicialmente acusado de ter conspirado e ajudado a Al-Qaida, Lindh foi julgado por ter “violado o boicote contra
Augusta Conchiglia é jornalista.