Há algo de podre…
A Dinamarca é tudo, menos um Estado laico. Há uma religião oficial: o protestantismo luterano. Os padres são funcionários; os cursos de cristianismo, obrigatórios na escolaAlain Gresh
Uma nação européia, pequena e valente, defendendo a liberdade de expressão. Um povo amável e tolerante surpreendido pela barbárie. Uma sociedade consternada pela irrupção do religioso na esfera política. Estes e tantos outros clichês sobre a Dinamarca pontuaram as polêmicas das últimas semanas, em torno das caricaturas do profeta Maomé.
É preciso, no entanto, raspar esse verniz para descobrir um quadro bem diferente dessas imagens bucólicas. A Dinamarca, recordemo-nos, é tudo – menos um Estado laico. Não apenas a igreja não é separada do Estado como existe uma religião de Estado, o protestantismo luterano. Os padres são funcionários, os cursos de cristianismo são obrigatórios na escola, etc.
A tolerância está seriamente comprometida num país onde a maioria de centro-direita só se sustenta graças a um partido de extrema-direita, o Partido do Povo Dinamarquês, que não deixa nada a dever para o Front Nacional francês.
As mídias devem desafiar tabus. Esperamos então as caricaturas – e os artigos – que ataquem os patrões da imprensa…
Hostilidade a tudo o que é muçulmano
Como ressalta o jornalista Martin Burchart: “Nós, dinamarqueses, tornamo-nos cada vez mais xenófobos. A publicação das caricaturas tem pouco a ver com a vontade de ver surgir um debate sobre a autocensura e a liberdade de expressão. Só pode ser compreendida dentro do clima de hostilidade velada a tudo o que seja muçulmano em nós.
O jornal Jyllands-Posten,que publicou as caricaturas de Maomé, havia se recusado há alguns anos a publicar uma caricatura que mostrava Cristo com uma coroa de espinhos transformados em bombas, investindo contra clínicas de aborto.
A liberdade de imprensa merece ser defendida. É inadmissível saquear consulados ou embaixadas – mais ainda, incendiá-las. Sim, as mídias devem desafiar tabus, mesmo se provamos ter mais coragem para contestar os tabus de nossa própria sociedade que os de outras. Esperamos então as caricaturas – e os artigos – que ataquem, na França, os patrões da imprensa que são Dassault, Bouygues ou Lagardère…
(Trad.:
Alain Gresh é jornalista, do coletivo de redação de Le Monde Diplomatique (edição francesa).