História de um massacre anunciado
Há exatamente vinte anos, numa operação comandada pelo general Ariel Sharon, tropas israelenses e milícias libanesas de extrema-direita invadiram os campos de refugiados de Sabra e Chatila (Líbano), para promover um massacre que liquidou 1.490 pessoasPierre Péan
Vinte anos depois, as palavras de livros reabertos1, como as frases recolhidas junto aos sobreviventes, no que restou dos campos de Sabra e Chatila, vertem sangue. O tempo nada lavou. Ao longo de toda a minha pesquisa, fiquei petrificado por esses relatos que transportam, atreladas uma à outra, histórias de crianças decapitadas ou empaladas, mulheres grávidas estripadas, assim como seus fetos, cabeças e membros cortados à machadada, montes de cadáveres… Até a náusea.
Não entrei no que resta dos campos de Sabra e Chatila pela entrada principal, mas por um bairro insalubre, da periferia, habitado por recém-chegados, principalmente da Ásia. Saio na “grande rua” que ligava o Hospital de Gaza – que não existe mais – à entrada principal, situada perto da embaixada do Kuait, de um luxo tão espalhafatoso quanto o da nova Cidade de Esportes, bem próxima, onde eram reunidos e interrogados os adultos palestinos e libaneses que escaparam ao massacre. As pessoas se insinuam entre as lojas, bancas de vendedores de frutas, de CDs, de produtos novos e usados, entre os carros e as lambretas…
Uma mulher que não sabe sorrir
Como escolher entre todos os depoimentos de testemunhas diretas ou indiretas dos massacres que, sem elevar a voz, fazem reviver as cenas de horror de meados de setembro de 1982?
“Bateram à porta de casa”, relembra ela. “Alguém disse: ?Somos libaneses, viemos fazer uma busca para procurar armas…? Eram três israelenses e um libanês”
Oum Chawki, uma senhora de 52 anos, perdeu dezessete pessoas de sua família – entre as quais, um filho de 12 anos e o marido. Ela morava no bairro de Bir Hassan, perto da embaixada do Kuait. Depois dos massacres, instalou-se, com os doze filhos que sobraram, na rua principal de Chatila. Mora no quarto andar de um edifício construído sem muito rigor arquitetônico. O interior é limpo, buquês de flores artificiais combinam-se com as cores das poltronas e os quadros colados ou pendurados na parede – Al Qods, a mesquita de Jerusalém e a bandeira do Hamas – embora não pertença a essa organização: “Não sou filiada a nada. Só participarei de alguma coisa se tiver certeza do resultado.” E seus filhos? “Não quero que se sacrifiquem por nada, mas no dia em que estiver convencida de poder saciar minha sede de vingança, eu os incentivarei e estarei ao lado deles…”
A cada dia e a cada noite, ela revê as imagens de cadáveres, de pessoas mutiladas, de seu filho e de seu marido que nunca mais voltou a ver e dos quais nada soube. O colorido da sala não consegue atenuar o negro de seu vestido, de seus cabelos e de seus olhos. Oum Chawki não sorri e se inflama, sem elevar a voz, quando lembra a segunda tragédia de sua família (a primeira foi a saída de Tarshiha, um vilarejo perto de Haifa, em 1948).
Traslado para o campo da morte
Bateram à porta de casa. Alguém disse: “Somos libaneses, viemos fazer uma busca para procurar armas…” Meu marido abriu a porta sem preocupação especial porque não pertencia a nenhuma organização combatente. Trabalhava no clube de golfe, perto do aeroporto.
Oum Chawki fala, em seguida, dos três soldados israelenses e de um militar das forças libanesas – as milícias cristãs de direita – que entraram em sua casa, roubaram as pulseiras de sua filha, arrancaram seus brincos – ela mostra o lóbulo rasgado de uma de suas orelhas – e os espancaram.
Ela tem certeza de que esses soldados eram de Israel.
Seus uniformes eram diferentes dos das Forças Libanesas e não falavam árabe. Não sei se era hebraico, mas tenho certeza que eram israelenses.
O que não é impossível, pois o bairro de Bir Hassan, fora do perímetro dos campos, estava ocupado pelo exército israelense. Como outras famílias palestinas, a de Oum Chawki foi levada para os campos de refugiados.
Fizeram a gente subir numa caminhonete que se dirigiu à entrada do campo de Chatila. Os militares separaram os homens das mulheres e crianças. O libanês tomou os documentos de três de nossos primos antes de matá-los na nossa frente. Meu marido, meu filho e outros primos foram levados pelos israelenses.
Cadáveres mutilados, mulheres estripadas
E seus filhos? “Não quero que se sacrifiquem por nada, mas no dia em que estiver convencida de poder saciar minha sede de vingança, eu os incentivarei e estarei ao lado deles…”
As mulheres e as crianças foram a pé para a Cidade de Esportes. À beira da estrada, mulheres gritavam e choravam, afirmando que todos os homens tinham sido mortos… À noite, no meio da confusão, Oum Chawki fugiu com seus filhos para o bairro da caserna El Hélou. De manhãzinha, deixou os filhos numa escola e voltou a pé para a Cidade de Esportes para saber o destino de seu marido e de seu filho. Não conseguiu falar com nenhum dos oficiais israelenses presentes. Ouviu ordens dadas em árabe para que fossem carimbadas as carteiras de identidade dos homens. Viu um caminhão israelense cheio de adultos e de jovens. Uma mulher em prantos, que perdera toda a família, mostrou-lhe o lugar onde eram jogados os cadáveres. As duas mulheres foram, então, para o bairro de Orsal passando por cima de mortos libaneses, sírios e palestinos. Oum Chawki disse ter visto centenas de mortos. Realmente, foi no bairro de Orsal que houve mais vítimas.
Estavam irreconhecíveis. Os rostos deformados, inchados…Vi 28 cadáveres de uma mesma família libanesa, dois dos quais eram de mulheres estripadas… Tentei reconhecer as roupas de meu filho e de meu marido. Procurei o dia inteiro. Voltei também no dia seguinte… Não reconheci nenhum cadáver de pessoas de Bir Hassan.
Oum Chawki viu soldados libaneses cavarem valas para jogar os cadáveres… Nunca voltou a ver o marido e o filho, e fala com a maior dificuldade do caso de sua filha que foi estuprada…
“Chegamos ao fim…”
Mulheres e crianças foram a pé para a Cidade de Esportes. À beira da estrada, mulheres gritavam e choravam, dizendo que os homens tinham sido mortos…
Penso em tudo isso dia e noite. Criei meus filhos sozinha… Fui obrigada a pedir esmola. Jamais o esquecerei. Quero me vingar de tudo isso. Meu coração é como a cor de meu vestido. Contarei o que vi a meus filhos, a meus netos…
Depois de ter andado por um incrível labirinto de ruelas bem pequenas, cheias de fios elétricos pendurados por todos os lados e por onde corre água a céu aberto, acabei chegando finalmente a um local com três ou quatro escritórios. Em um deles, bem no fundo, Siham Balkis, presidente da Associação do Retorno, senta-se, ereta, atrás de uma mesinha. Também estão sentados na sala um dirigente palestino e dois outros sobreviventes. Siham Balkis, que tem mais ou menos 40 anos, é uma militante engajada e determinada. Sua família é originária de Kabé, na província de Akka, em Israel. Começa seu discurso recto tono.
O massacre começou na quinta-feira à tarde, por volta das 17 horas e 30 minutos. Não acreditávamos no que acontecia… Ficamos dentro de casa até sábado de manhã e não ficamos sabendo de muita coisa a não ser que, na quinta e na sexta-feira, um pequeno grupo de palestinos e libaneses tentara se defender, mas não eram muitos e não tinham munição suficiente. À noite, vimos foguetes e ouvimos tiros. Acreditávamos que os israelenses queriam apenas atacar os combatentes e encontrar suas armas… Quando tudo se acalmou, no sábado de manhã, fomos até a sacada e avistamos um grupo de Forças Libanesas acompanhado por um oficial israelense. Os libaneses gritaram para que saíssemos. O que fizemos, debaixo de insultos. O israelense tinha um walkie-talkie. Um dos libaneses pegou o aparelho e disse: “Chegamos ao fim da zona-alvo.”
Moças mortas, com punhos amarrados
As duas foram, então, para o bairro de Orsal passando por cima de mortos libaneses, sírios e palestinos. Oum Chawki disse ter visto centenas de mortos
Tem certeza de que se tratava de um israelense porque, como diz, ele tinha um crachá em hebraico e não tinha cara de árabe. Falava com os libaneses em francês.
Siham Balkis e outros foram levados para o hospital de Gaza. Seus acompanhantes reuniram os médicos estrangeiros e as pessoas que haviam buscado abrigo dentro e em volta do hospital.
Mataram uns dez combatentes. Descobriram um jovem palestino, que vestira um jaleco branco e se misturara aos médicos e enfermeiros, e o mataram. Quando reuniram todo mundo – centenas de pessoas – fomos levados para a embaixada do Kuait. Havia muitos cadáveres nas ruas. Moças jovens com os punhos amarrados. Casas destruídas. Tanques, provavelmente israelenses. Os restos de um bebê grudados nas correntes de um deles. Antes de chegar à Cidade de Esportes, os homens foram separados. Militares ordenavam aos jovens que rastejassem. Os que rastejavam bem eram considerados combatentes e mortos pelos militares das Forças Libanesas. Os outros eram chutados…
Vi Saad Haddad2 com outros diante da embaixada do Kuait. Depois, chegando perto da Cidade de Esportes, um grande número de soldados israelenses. Um coronel israelense disse que as mulheres e as crianças podiam voltar para casa. Mais tarde vi meu irmão subindo num jipe enquanto outros subiam em caminhões. Corri em sua direção. Em vão. Ouvi um oficial dizer, em árabe: “Vamos entregar você às Forças Libanesas. Conseguirão fazer você falar.”
O cheiro insuportável dos cadáveres
“Havia muitos cadáveres nas ruas. Moças com os punhos amarrados. Tanques… Os restos de um bebê grudados nas correntes de um deles”, conta Siham Balkis
Todas as testemunhas contam, grosso modo, as mesmas histórias, os mesmos horrores. É o caso de Kemla Mhanna, uma senhora libanesa, com uma mercearia no bairro de Orsal:
Todas as pessoas de nosso bairro que ficaram foram assassinadas. Na maioria, libaneses. Quando voltei, havia um monte de corpos empilhados. Ao lado de minha casa, um palestino estava pendurado num gancho de açougueiro, cortado em dois como um carneiro. Vi quando jogaram, na grande vala, uma primeira camada de cadáveres, que cobriram com areia, depois outra camada de cadáveres e assim por diante…Vi também um outro libanês do bairro de Orsal, Hamad Chamas, um dos raros sobreviventes do massacre. Estava num abrigo quando chegaram dois israelenses num jipe e mais sete ou oito soldados.
Tenho certeza de que esses soldados eram israelenses porque estavam com uniformes israelenses e não falavam bem o árabe. Os soldados nos mandaram sair do abrigo, insultando-nos. Me mandaram pôr no chão a criança que estava carregando e entrar na fila com os outros. Um deles, que falava bem árabe, revistou todo mundo e pegou o dinheiro de um dos homens. Depois atiraram em nós. Fui ferida na cabeça e na coxa e fiquei em baixo de uma pilha de cadáveres. Houve 23 mortos… Passei toda a noite escondida num abrigo. De manhãzinha, sentia-se o cheiro forte de cadáveres por toda parte.
Criminosos tomam o poder
“Militares ordenavam aos jovens que rastejassem. Os que rastejavam bem eram considerados combatentes e mortos pelos militares das Forças Libanesas”
Nada de novo nesses depoimentos. São semelhantes aos que Leila Shahid, delegada-geral da Palestina na França e uma das primeiras pessoas a visitar os campos depois dos massacres, colheu – sozinha e com Jean Genet. Também conferem, ressalvando-se alguma falha de memória, com os dos membros da equipe médica – ingleses, noruegueses, suecos, finlandeses, alemães, irlandeses e norte-americanos – do hospital de Gaza e com os que foram registrados por muitos jornalistas depois dos massacres.
Elias Khoury, escritor libanês e famoso homem de teatro3, narra com paixão o combate terrível para a memória do povo palestino em geral e para os massacres de Sabra e Chatila, em particular.
A lei da memória não funciona entre os palestinos, pois os massacres continuam: Deir Yassin, Qibya4, Sabra e Chatila – e agora Jenin. Para eles, é impossível olhar para o passado, pois o passado ainda é o presente. Desde 1948, estão numa engrenagem infernal… Os palestinos são vítimas da manipulação do Holocausto pelo governo israelense. As normas éticas param nas fronteiras de Israel. Nesse contexto, a própria idéia da tragédia de Sabra e Chatila se torna marginal…
Tanto assim é que, no Líbano, o assunto é tabu: o principal acusado era Elie Hobeika5, que foi ministro do governo…
Os criminosos tomaram o poder depois da guerra – prossegue Elias Khoury. Além disso, os palestinos se tornaram o bode expiatório da guerra no Líbano e, neste país, são regidos por leis que nada ficam a dever às leis de Vichy em relação aos judeus.
A missão norte-americana
“Ouvi um oficial dizer para meu irmão, em árabe: ?Vamos entregar você às Forças Libanesas. Conseguirão fazer você falar.? Nunca mais o vi”
Mesmo os números de mortos e desaparecidos permanecem, vinte anos depois, extremamente vagos. Segundo as estimativas, variam de 500 a 5 mil. Uma historiadora, Bayan Hout, vem tentando, há vinte anos, preencher essa lacuna. Libanesa, nascida em Jerusalém, onde viveu até os nove anos de idade, professora na Universidade de Beirute, ela fez um trabalho de formiga junto às famílias das vítimas e desaparecidos, analisou centenas de questionários, comparou listas das organizações humanitárias e da Cruz Vermelha, tentou encontrar todos os cemitérios… Hoje, tem certeza dos números: 906 mortos, de 12 nacionalidades diferentes, sendo a metade de palestinos… e 484 desaparecidos, 100 dos quais foram, com certeza, seqüestrados. Ou seja, um número total de 1.490 vítimas identificadas.
Esses massacres e desaparecimentos se inserem no contexto da guerra lançada pelo governo israelense, no dia 6 de junho de 1982, para conseguir a neutralização da Organização pela Libertação da Palestina (OLP). A invasão do Líbano custou a vida de mais de 12 mil civis, deixando cerca de 30 mil feridos e 200 mil pessoas desabrigadas.
Em meados de junho, os israelenses começaram o cerco a Beirute, onde se encontravam 15 mil combatentes da OLP e seus aliados libaneses e sírios. O presidente dos Estados Unidos, Ronald Reagan, enviou, no início de julho, Philip Habib – acompanhado por Morris Draper – para resolver essa crise, que podia incendiar o Oriente Médio e ameaçar os interesses norte-americanos. Imediatamente, Habib constatou que a solução da crise passava pela retirada dos combatentes palestinos e de Yasser Arafat de Beirute. Este logo se convenceu de que não havia outra solução.
O compromisso tripartite
“Fui ferida na cabeça e na coxa e fiquei em baixo de uma pilha de cadáveres. Havia 23 mortos…”, conta Kemla Mhanna, dona de uma mercearia
As discussões se complicariam porque os israelenses e os norte-americanos se recusavam a negociar diretamente com os palestinos6: Elias Sarkis, presidente cristão do Líbano, e seu primeiro-ministro sunita, Chafiq Wazzan, serviriam de intermediários. Isso porque os israelenses continuariam, com uma pressão militar brutal, exigindo de Arafat uma rendição total e vergonhosa. Este multiplicou suas propostas, tentando obter garantias de segurança para as famílias palestinas que permaneceriam no Líbano. Receava extorsões por parte dos soldados israelenses e de seus aliados falangistas. Para Arafat, as garantias só podiam ser norte-americanas e internacionais.
Habib conseguiu, finalmente, a garantia do primeiro-ministro israelense de que seus soldados não entrariam em Beirute Ocidental e não atacariam os palestinos dos campos de refugiados; a garantia do futuro presidente libanês, Béchir Gemayel, de que os falangistas não fariam nada; a garantia do Pentágono de que os fuzileiros navais se responsabilizariam pelo cumprimento desses compromissos. Fortalecido por essas promessas, o representante de Reagan se comprometeu, por escrito, quanto à segurança dos civis. Duas cartas seriam, então, enviadas ao primeiro-ministro libanês. O compromisso norte-americano constaria na quarta cláusula do acordo para a retirada da OLP, publicado no dia 20 de agosto pelos Estados Unidos, isto é, na véspera do embarque dos primeiros combatentes palestinos7.
O assassinato de Gemayel
“Criei meus filhos sozinha… Fui obrigada a pedir esmola. Jamais o esquecerei. Quero me vingar de tudo isso. Meu coração é como a cor de meu vestido. Contarei o que vi a meus filhos, a meus netos…”
No entanto, Arafat estava cada vez mais preocupado com o destino dos civis palestinos. Habib8 iniciou uma nova negociação junto a Béchir Gemayel, que renovou suas promessas. Insistiu no papel da força multinacional composta por 800 franceses, 500 italianos e 800 norte-americanos. O primeiro contingente – francês – chegou no dia 21 de agosto e deveria assegurar a retirada e o recolhimento das armas. Essa força permaneceria uns trinta dias, para impedir qualquer quebra de compromisso e proteger as famílias palestinas. Finalmente, Arafat aceitaria deixar Beirute…
Mas ninguém respeitaria a palavra dada. A começar pelo governo norte-americano. Caspar Weinberger, secretário da Defesa, deu ordem aos fuzileiros navais para deixarem o Líbano, enquanto as milícias cristãs tomaram posição, no dia 3 de setembro, no bairro Bir Hassan, ao longo dos campos de Sabra e Chatila. A partida dos norte-americanos acarretou, automaticamente, a retirada de franceses e italianos. No dia 10 de setembro, o último soldado saiu de Beirute, embora Habib tivesse planejado uma retirada entre os dias 21 e 26 de setembro.
No dia 14 de setembro. Béchir Gemayel, o novo presidente libanês colocado no poder pelos israelenses, foi assassinado. Ariel Sharon usou sua morte como pretexto para invadir Beirute Ocidental, cercar os campos de Sabra e Chatila e estimular as milícias libanesas a arrasá-los.
Israelenses denunciam massacre
“Os palestinos são o bode expiatório da guerra no Líbano e são regidos por leis como as de Vichy, em relação aos judeus”, diz o escritor Elias Khoury
Até hoje, foi feita uma única investigação oficial, a da comissão israelense dirigida por Itzhak Kahane, chefe da Suprema Corte, que foi divulgada em fevereiro de 1983. Ela denuncia os falangistas e, em menor proporção, Ariel Sharon. O relatório fala, primeiro, de um grave erro de Sharon que não “tomou nenhuma medida para controlar e impedir os massacres”. Diz ter ficado “perplexo” com a atitude de Ariel Sharon, que não informou Begin a respeito de sua decisão de fazer os falangistas entrarem nos campos. Para concluir, admite que Sharon teve “a responsabilidade de não ter dado ordens para que fossem tomadas as medidas adequadas para impedir eventuais massacres”. Sharon tem uma “responsabilidade pessoal” e “dela deve tirar as conclusões pessoais”.
Os jornais israelenses publicaram – principalmente em 1994 – inúmeros artigos confirmando e ampliando essas conclusões. É o caso de Amir Oren que, a partir de documentos oficiais, afirmou, no jornal Davar de 1° de julho de 1994, que os massacres faziam parte de um plano definido por Ariel Sharon e Béchir Gemayel, que utilizaram os serviços secretos israelenses, dirigidos então por Abraham Shalom – que recebera ordem para exterminar todos os terroristas. As milícias libanesas eram nada menos que agentes na linha de comando que levava, através dos serviços secretos, às autoridades israelenses.
“Sharon foi o responsável”
Ariel Sharon usou o assassinato do presidente libanês como pretexto para cercar os campos de Sabra e Chatila, estimulando as milícias libanesas a arrasá-los
O programa “Panorama”, no episódio intitulado “O acusado”, transmitido pela BBC no dia 17 de junho de 2001, divulgou novos dados a respeito dos massacres, graças, em especial, ao depoimento, dificilmente contestável, de Morris Draper, assistente de Habib. Lembrando afirmações de Sharon de que ele não podia prever o que ocorrera nos campos, Draper se contentou em fazer um breve comentário: “Completamente absurdo”. E narrou seu encontro, em Tel Aviv, no Ministério da Defesa, com Sharon e Amos Yaron, seu chefe do Estado-Maior, na quinta-feira, quando os israelenses já tinham entrado em Beirute Ocidental apesar de sua promessa. Yaron justificou a decisão dizendo que fora para impedir os falangistas de se vingarem dos palestinos depois do assassinato do presidente Béchir Gemayel. “Nosso grupo, de mais ou menos vinte pessoas, ficou em silêncio. Foi um momento dramático”. Esclarecendo que os Estados Unidos tinham recusado a proposta israelense de colocar os falangistas em Beirute Ocidental – “porque sabíamos que seria um massacre se essa gente entrasse lá”, -acrescentou: “Não há dúvida alguma de que Sharon é responsável [pelos massacres]; mesmo se outros israelenses tiverem de dividir essa responsabilidade.”
O ex-diplomata norte-americano não foi interrogado sobre as responsabilidades norte-americanas, nem sobre as da Itália e da França, que retiraram seus soldados depois da saída dos fuzileiros navais…
Vinte anos depois, as famílias das vítimas e dos desaparecidos dos campos de Sabra e Chatila têm direito à verdade. Para poderem, finalmente, despedir-se de seus mortos. Isto não diz respeito somente às famílias. Todo mundo tem o direito de saber por quê, como e quem organizou e executou atos de tamanha crueldade.
(Trad.: Celeste Marcondes)
1 – Principais livros consultados sobre os massacres de Sabra e Chatila: Rapport de la Commission Kahane, ed. Stock,1983: Sabra et Chatila, Enquête sur un massacre, de Amon Kapeliouk, ed. Le Seuil, 1982; Israël: de la terreur au massacre d?Etat, d?Ilan Halevi, ed. Papyrus, 1984; Genet à Chatila, ed. Babel, 1992, Opération Boule de neige, de Shimon Shiffer, ed. J.C.Lattès., 1984, Revue d?Etudes palestiniennes, n°6 e n°8.
2 – Comendante do exército do Sul do Líbano, que trabalhava com os israelenses.
3 – Ler, principalmente, Les Portes du Soleil, publicado por Le Monde diplomatique, e Actes Sud, que narra cinqüenta nos do drama palestino. Sua peça Les mémeoires de Job fez muito sucesso em Paris.
4 – Deir Yassin é um pequeno vilarejo, mais ou menos a dez quilômetros de Jerusalém, onde foram massacrados mais de 100 habitantes na primavera de 1948. Em Qibya, na Cisjordânia, em outubro de 1953, por ocasião das operações de represália dirigidas por Ariel Sharon, o exército israelense explodiu quarenta e cinco casas com seus habitantes dentro. Sessenta e nove pessoas, metade mulheres e crianças, morreram sob os escombros.
5 – Elie Hobeika é considerado o principal carrasco de Sabra e Chatila. Foi assassinado no dia 24 de janeiro deste ano, em Beirute, quando se preparava para ir depor em Bruxelas. Segundo Chebli Mallat, advogado libanês da acusação, não eram as revelações de Hobeika que eram perigosas para Sharon, mas sua simples ida a Bruxelas. Desde que estivesse diante do tribunal, onde seria obrigatoriamente acusado, o problema da competência do tribunal deixaria de existir.
6 – Discussões diretas, mas discretas, existiam há muitos anos em Beirute, entre dirigentes palestinos e a embaixada norte-americana, bem como com a CIA. Em 1979, por exemplo, Arafat conseguiu que libertassem 13 reféns norte-americanos no Teerã.
7 – In American Foreign Policy 1982, Departamento de Estado, Washington: “…Os palestinos não combatentes, obedientes à lei, que permaneceram em Beirute, incluidas as fam ilias dos que partiram, serão submetidas às leis e regulamentos libaneses. O governo libanês e os Estados Unidos lhes assegurarão garantias apropriadas de segurança. (…) Os Estados Unid