Hoje tem espetáculo? Tem sim sinhô!
Atualmente a lona do circo não faz parte do cenário urbano da maioria das cidades brasileiras. Mas décadas atrás sempre havia um palhaço que marcava a vida das crianças. Sem falar nos trapezistas, parlapatões e cavalinhos. Tomem seus lugares que o espetáculo já vai começar!
É sabido que os ingleses inventaram o futebol, mas o Brasil brindou o maior esporte de massas contemporâneo com a magia de um Pelé e a ginga de um Garrincha: nascia o futebol-arte. O circo moderno – redondo, com picadeiro, música e show de variedades – foi idealizado por Astley, na Inglaterra, em 1770. Mas assim como fizemos com o futebol, oferecemos a essa arte milenar duas inovações tupiniquins: o palhaço brasileiro e o circo-teatro.
Todos os palhaços do mundo fazem rir, mas enquanto os palhaços europeus tinham no século XIX a mímica como principal expressão, nossos palhaços se especializaram em ser parlapatões – falantes, debochados, além de tocar, cantar e compor modinhas.
De acordo com estudiosos, os grupos circenses que circulavam no Brasil oitocentista apresentavam, na segunda parte do espetáculo, uma pantomima. Coube ao palhaço negro Benjamin, na passagem para o século XX, substituir esse “teatro mudo” por comédias ou dramalhões onde não podia faltar a loquacidade de uma figura cômica. Estava criado o circo-teatro, que durante meio século fez sucesso estrondoso em todos os rincões brasileiros.
O jeitinho brasileiro de praticar o futebol, a palhaçada e o circo-teatro têm raízes na nossa cultura popular, uma mistura de negros, índios e portugueses que se fundem no cadinho que Darcy Ribeiro batizou de um povo novo, “novo, inclusive, pela inverossímil alegria e espantosa vontade de felicidade”1.
Se a mímica europeia tinha a precisão do anglo-saxão, a nossa malemolência bebeu nos folguedos populares do reisado, pastoril, folia de reis, cavalo marinho, bumba-meu-boi, caboclinho, entre outros. Em todas essas festas populares há figuras de mascarados que dão gritos e fazem danças exageradas provocando medo e fascinação, levando o público ao riso com seus improvisos desconcertantes, como os dribles de Garrincha.
O brincante está presente em todas as culturas e rituais sagrados como válvula de escape das tensões do grupo. Os palhaços Mateus e Birico, personagens do bumba-meu-boi, entabulam a conversa:
Eu subi de pau acima
pra tira um caju
escorreguei de pau abaixo
e rasguei as pregas do … bolso!2
Esse verso pode ser encontrado ainda hoje na boca de um palhaço em qualquer circo de periferia. Na verdade, quem influenciou quem?
Atualmente a lona do circo não faz parte do cenário urbano da maioria das cidades brasileiras. Ou, dito de outra forma, o circo não ocupa um papel significativo na nossa atual vida cultural. Mas décadas atrás sempre havia um palhaço que marcava a vida das crianças: Carequinha, Arrelia, Piolin, Picolino, entre outros infindáveis anônimos do riso.
Num circo de pano roto,
minha infância se escondeu,
em todo circo há um garoto,
e esse garoto sou eu3.
E hoje? Se questionadas, as crianças vão falar das louras globais, mais preocupadas em cultuar o corpo e vender suas marcas do que em promover a ludicidade fortuita. Entretanto, o circo já foi o maior veículo da nossa identidade nacional. Artistas de rádio e TV faziam questão de se apresentar nos circos para consolidar a sua projeção no cenário cultural. Intelectuais, políticos e até um presidente da República foram assíduos frequentadores de circo. Poxa, meleca! Como é que foi isso?
Um salto tríplice na historia
Memorialistas apontam a existência de artistas perambulando pelos povoados e cidades em formação durante todo o Brasil Colônia. Misturados aos caixeiros viajantes, encontrava-se de ilusionistas a apresentadores de teatro de bonecos. Traziam a verve dos saltimbancos europeus, artistas de feira que “saltavam num banco” para ganhar a atenção dos frequentadores e para conseguir uns trocados após o estrepitoso espetáculo. Mas é da união dos artistas mambembes com os ciganos de tradição nômade que surgiram os “circos de cavalinhos”, como eram batizados4.
Os ciganos vieram fugidos da Europa por perseguições étnicas e religiosas e mostravam intimidade com as artes circenses ao apresentar espetáculos com cavalos, ursos domados e truques de mágica. Viajando de carroça ou em lombo de burro e montando estruturas de pau-a-pique, pau-fincado ou pavilhão, essas trupes circenses vagavam pelo interior do Brasil causando receio, mas também deslumbramento. “O circo chegou!” e o povoado entrava em polvorosa com a curiosidade da montagem, especialmente a partir de 1830, com a circulação de companhias estrangeiras com panos de roda ou lonas circulares. A gritaria infernal das crianças batendo palmas atrás do palhaço montado de costas num jumento anunciava o espetáculo da noite.
Hoje tem espetáculo?
Tem sim sinhô!
E o palhaço o que é?
É ladrão de muié!
Normalmente os circos funcionavam lotados, pois constituíam a melhor diversão para todas as classes sociais. O fascínio dos belos corpos das artistas, o ilusionismo dos mágicos, a destreza e a força dos acrobatas e o encantamento pelos animais atraíam um público diversificado. O circo não tinha nenhuma pretensão educadora, como fazia o nascente teatro nacional, que se impunha um papel de formador de uma moral cívica. Ao contrário, no circo se estimulava a gritaria, a participação da plateia e a comunhão pelo gozo. O público reagia e dava um retorno imediato ao espetáculo. Depois que ia embora, sobravam saudades e alguns bordões dos palhaços que a cidade passava a repetir, deixando um eco de alegria no cotidiano da comunidade.
Com o retumbante sucesso, os circos se proliferaram e ocorreu a miscigenação dos circenses estrangeiros com os artistas da terra, gerando famílias de circo brasileiras.
O circo tradicional é talvez o único lugar onde o nepotismo seja lei. Sem sólidos laços familiares o circo não sobrevive à provisoriedade do convívio social nas cidades, à instabilidade financeira e à precariedade das acomodações. E as famílias consolidaram a classe artística em formação. Waldemar Seyssel, o famoso palhaço Arrelia, exemplo dessa linhagem, conta num livro autobiográfico que nas primeiras décadas do século passado, não raro, havia a concorrência de dois circos na mesma cidade, já na época facilitados pelo deslocamento por via férrea5.
Em 1940, o Circo Seyssel construiu a primeira casa circense com cadeiras estofadas e arquibancadas com encosto nos baixos do viaduto Santa Ifigênia, no centro de São Paulo. Os artífices da Semana de Arte Moderna de 1922 se encantaram com o palhaço Piolin e o elegeram como portador da genialidade brasileira. Em um almoço no Clube de Antropofagia, os modernistas Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral, Mario de Andrade e Sergio Milliet, entre tantos, “comeram Piolin”.
Menotti Del Picchia escreveu que “o circo é a matriz ingênua e limpa da arte cênica sem convenção. Ou há talento espontâneo, socialista, ou há burrice chata”6.
Washington Luís, quando presidente da República de 1920 a 1924, tinha cadeira cativa no circo toda quinta-feira e, usando de suas prerrogativas do cargo, ia ao camarim exigir de Piolin algum quadro que este havia suprimido.
E a lona colorida se espraia
Em 1925 foi criada a Central Federação Circense Unidos Seremos Fortes, que lutava para manter “um lar e um hospital para amparar o artista na invalidez”. O boletim da Federação estimava, à época, a existência de cerca de 70 circos, 49 associados a ela: 30 localizados no estado de São Paulo, 10 em Minas Gerais, cinco no Rio de Janeiro e apenas um circo no Acre, Paraíba, Paraná e Rio Grande do Sul. Outro dado publicado nos primeiros números do boletim, chamado “Movimento Associativo”, relacionava o número de sócios de cada delegacia, totalizando uma média de 1 200 associados7.
Se considerarmos a demografia e toda a sorte de dificuldades de comunicação vigentes à época é um feito notável. O circo ia se constituindo no polo artístico e de entretenimento mais forte da cena republicana. Tanto é assim que os primeiros cantores a gravarem disco no Brasil eram palhaços de circo. O palhaço Bahiano foi quem cantou o primeiro samba gravado: “Pelo telefone”.
Naquela época, afirma Alcir Lenharo, “cantar no circo significava pisar o palco mais cobiçado pelos artistas do rádio e do disco, o meio mais fácil de [se] apresentar a públicos diversos das cidades do interior pelo país afora”8.
Dois palhaços que vieram de circo e popularizaram o cinema brasileiro foram Oscarito e Grande Otelo. Oscarito teve um programa na TV Tupi, como também os palhaços Arrelia, Fuzarca e Torresmo, Pururuca e Carequinha, entre outros. O Carequinha, George Savalla Gomes, que morreu recentemente, chegou a gravar 26 discos e fez vários filmes. Passaram pelo circo pessoas de renome como Catulo da Paixão Cearense, Pixinguinha, Araci de Almeida, Bibi Ferreira, Orlando Silva, Plínio Marcos e Marília Pêra. O célebre cantor Vicente Celestino ficou conhecido em todo o Brasil na época em que não existia nem rádio e nem televisão rodando debaixo de lona.
Nesse processo de antropofagia cultural típico da brasilidade, o circo digeriu varias manifestações populares, até como estratégia de sobrevivência. Incorporou o carnaval em algumas cidades, peças religiosas na Semana Santa, quadros do teatro de revista, lutas de boxe, show de duplas sertanejas, exibição de filmes e outras programações criativas para manter vibrante “o maior espetáculo da terra”. O circo teve seu auge na década de 1950 com o circo-teatro, que chegou a influenciar a televisão, lançada nessa época. Mas diga, diga, mequetrefe, então a coisa degringolou…
Afinal, o circo está morrendo?
Com o aprofundamento da sociedade tecnológica, a mídia e a indústria cultural roubaram a cena com a expansão do rádio, cinema e a televisão, relegando o circo cada vez mais a um papel secundário. Nas cidades visitadas, os circos passaram a enfrentar taxas e restrições, além da dificuldade para conseguir terrenos nas áreas centrais, restando, quando havia, espaços periféricos de pouca rentabilidade. Os circos foram minguando e começou uma dispersão dos artistas circenses. Em 2002, uma notícia trágica acendeu o sinal amarelo. O Circo Garcia, que circulou inclusive no exterior e chegou a ser o quarto maior do mundo, fechou as portas, pondo fim a uma estória brilhante de 80 anos de atividades.
Além da disputa desigual com a indústria do entretenimento, das exigências draconianas como as da cidade de São Paulo, onde se demanda o cumprimento de 18 itens para a concessão do alvará de instalação, o circo ainda enfrenta a ira dos ambientalistas, que lutam pela proibição dos animais nos espetáculos. “É um equívoco por parte dos ambientalistas. A simples proibição deixa o problema de lado e desconsidera que boa parte dos circos, cerca de 90%, não lida com maus-tratos”, afirma Hugo Possolo, do grupo Parlapatões, Patifes e Paspalhões e ex-coordenador de circo da Fundação Nacional das Artes (Funarte)9.
Apesar desses reveses e da onda de criminalização, o circo resiste e se mantém vivo. Uma estimativa do governo federal aponta a existência de quase 500 circos de pequeno, médio e grande porte no Brasil. Há desde companhias familiares, com cerca de 20 empregados, até grandes trupes, com 150 profissionais de vários países. Os preços de bilheteria variam de R$ 3 a R$ 2010.
Os circenses hoje têm se organizado em algumas cooperativas, especialmente na região Sudeste. A Rede de Apoio ao Circo, com base em Minas Gerais, e a Associação Brasileira de Circo (Abracirco), entidade nacional, fundada em 1977, são exemplos de entidades que representam os artistas do picadeiro.
Atualmente a Abracirco está empenhada em aprovar no Congresso a Lei do Circo para que a atividade circense seja regulamentada como um dos bens do patrimônio cultural brasileiro.
Do ponto de vista das políticas públicas, há certo avanço no governo do presidente Lula. A Funarte, ligada ao Ministério da Cultura, tem hoje uma coordenação de circo que promove a premiação para aquisição de lonas circenses e acessórios, oficinas de capacitação para gestores de empresas circenses, bolsas de incentivo ao aperfeiçoamento e à pesquisa das artes circenses. Em 2008 foram lançados três editais de fomento ao circo no Brasil.
Essas boas iniciativas contrastam com o fato lamentável de que a nossa atual Lei Rouanet possibilitou que a canadense Cirque du Soleil, a maior companhia de circo do mundo, ficasse 10 meses em cartaz no país o ano passado com ingressos custando até R$ 400 e um faturamento médio de R$ 130 milhões, metade desse valor advindo da lei de incentivo à cultura!11. Nessa lei, a iniciativa privada faz marketing cultural sem despender um centavo sequer e os impostos devidos, que deveriam ser utilizados no fomento e na fruição da nossa cultura nacional e popular, são canalizados para o aumento da visibilidade e do lucro.
Ainda assim, diante desse contraditório das iniciativas federais, estamos assistindo nas últimas décadas ao advento de dezenas de escolas de circo, inúmeras experiências de circos sociais, festivais de circo, pesquisas acadêmicas e publicações e à proliferação de grupos que fazem uma simbiose do circo com o teatro, gerando o que é denominado de “novo circo”.
Falar sobre essa nova onda é papo para outro artigo, mas não deixam de ser alvissareiras as notícias que nos permitem vislumbrar o circo voltando a pulsar na alma do brasilei
ro. E então nos aprazermos com essa arte espetacular, pois, como afirmou Ariano Suassuna, “o circo é a imagem mais completa da representação da vida”.
*Rodolfo Alexandre Cascão Inácio é palhaço, educador e coordenador do Grupo Parangolé Arte Mobilização.