Homem negro não é um homem? Entre ser tema e ser vida: Eis a questão
Ao fim e ao cabo, nós homens negros de todas as cores e orientações, buscamos formas de existir no debate público sem sermos acusados a todo momento
O objetivo do artigo em tela é estabelecer um diálogo, com ênfase nos contrapontos, ao texto da socióloga Fabiane Albuquerque “Frantz Fanon usado para justificar o machismo de homens negros”. Nele a autora contesta a ideia de que ao não usufruir de “ganhos estruturais, em termos de poder” em uma sociedade patriarcal supremacista branca, os homens negros seriam incapazes de reproduzir machismo. E que uma estratégia recorrente que muitos homens negros, possivelmente ativistas e intelectuais, têm usado para negar seu machismo seria uma famosa frase de Fanon: “O negro não é um homem, é um homem negro”.
Bom, em primeiro lugar, é claro que precisamos rever nosso machismo ou qualquer outra prática discriminatória que desvalorize e rebaixe a humanidade do outro, em especial das mulheres negras. De fato, o uso desta rica reflexão do psiquiatra martinicano para se eximir de práticas machistas não nos parece razoável teórica ou empiricamente. Na verdade, nenhum grupo social historicamente oprimido está livre de reproduzir preconceitos e discriminações em suas relações interpessoais. Assim como homens negros podem ser sexistas, traidores e abusivos, como apontado pela autora, outros gêneros também o podem. E isso, na verdade, é humanizá-los, porque não há segmento isento do exercício da violência, legítima ou não. Nenhum grupo é intrinsecamente virtuoso e/ou passivo devido a determinados processos de subalternização. O processo de agenciamento mesmo limitado por dinâmicas sociais é parte de nossa construção como seres humanos.
Nos parece que isto é pressuposto para qualquer análise sobre as interações sociais. Sendo assim, um entendimento corrente sobre a expressão de Frantz Fanon é de um alerta, no sentido de comparações indevidas entre homens negros e brancos a partir da categoria “homem”. Por exemplo, se diz muito sobre a política como um domínio de homens no Brasil, mas de que homens estamos falando? Não são dos homes negros. Não são homens negros não-heterossexuais. Não são homens negros cisgêneros. Quantos são fundadores e/ou líderes políticos partidários? Qual a ingerência deste grupo na gestão do orçamento público e indicações políticas? Do mesmo modo, é comum a ideia de que os homens dominam o mundo corporativo, da ciência e tecnologia. De novo, que homens são estes? Quantos homens negros são donos de bancos, indústrias, escolas, startups e big techcs? Ou seja, é preciso racializar esse “masculino” e “enviadecer” a raça como forma de iluminar as nuances e hierarquias entre os homens.
Na verdade, um desdobramento a partir da frase de Fanon ainda pouco elaborada, mas importante para o nosso raciocínio é que o homem negro seria uma real ameaça ao patriarcado, porque entendido como a contraparte masculina racializada e subalternizada do homem branco. Com isso os estereótipos historicamente construídos pela colonialidade para representá-lo ostentam os signos do medo, da brutalidade e da selvageria. Ou seja, um grupo externo aos moldes idealizados da civilização branca ocidental, e, que, portanto, deve ser contido e morto se preciso.
A título de criticar o machismo dos homens negros, o que é absolutamente fundamental, Fabiane Albuquerque, entretanto, apenas reforça estigmas e fomenta velhos estereótipos em torno do caráter e intelectualidade destes homens. O texto, a partir de casos particulares das poucas personalidades negras masculinas, naturaliza o homem negro como um sujeito delinquente, que busca compensar sua falta de poder através da hiper violência e mau caratismo contra as mulheres, emulando aspectos patológicos da masculinidade do homem branco, ao mesmo tempo que é privilegiado por este mesmo patriarcado que o subalterniza. Em outras palavras, um grupo essencializado, tóxico por excelência e insuficiente, visto que incapaz de produzir formas originais e potentes de ser homem baseadas em suas experiências afrodiaspóricas, como, por exemplo, homens negros não-heterossexuais e transexuais ou de outros arranjos socioculturais.
No entanto, esta é não é uma visão isolada da autora em questão. O machismo serve aqui como um ponto de partida para expressar o que, infelizmente, parte relevante do ativismo negro e antirracista “mainstream”, sobretudo nos debates do mercado editorial-publicitário, pensa o homem negro como sinônimo de todos os males da população negra: violência, preterimento, dissimulação, abandono, enfim o “degenerado perfeito”. Todo o repertório construído nas últimas décadas nesta plataforma sobre o homem negros, mais do que relevantes categorias analíticas, se tornaram categorias acusatórias à disposição do freguês. Qualquer homem negro sabe que uma defesa enfática a seus modos de produção sociocultural para seu interlocutor, ou até mesmo a sustentação de uma demanda para seu próprio grupo, pode se transformar em acusações de machismo, misoginia, toxidade, dentre outros insultos.
O homem negro parece ser o único grupo que diante de toda violência racista e sexista não consegue oferecer uma resposta alternativa e emancipatória para si e sua coletividade, apenas a reprodução da própria violência que sofre. Assim, ele precisaria se “desconstruir”, como os brancos “esquerdo-machos da zona sul”, fingindo expurgar seu machismo que aprendeu passivamente com o patriarcado, entidade onipresente, de cima para baixo, e que tudo explica. Esta é uma estratégia muito eficiente para censurar nosso pensamento e opiniões dissidentes do mainstream ativista e do senso comum acadêmico. Não é nem mesmo necessário contra-argumentar, acusações ad hominem já bastam para que haja suspeição, como a socióloga soube fartamente utilizar. O “bom homem negro”, na verdade, é aquele que se torne branco. A autora precisa entender as implicações subjetivas, talvez irreversíveis, da raça na construção das identidades masculinas normativas ou não-normativas para, então, compreender que “negro” não é apenas um substantivo vago. A sua crítica à Fanon é bem ilustrativa do nosso argumento.
Ao se referir ao sofisticado e contundente capítulo “A mulher de cor e o homem branco” do famoso livro Pele Negra Máscaras Brancas, a autora, sem reservas, o classifica como machista e misógino. No entanto, é importante reconhecer processos de responsabilização pelas escolhas, tanto de homens negros, quanto de mulheres negras em seus relacionamentos, e não somente imputar culpas aos homens negros. O fato é que, qualquer acusação contra um homem negro, seja ela verdadeira ou não, é quase que prontamente aceita como verdade. O imaginário que associa este grupo a todos os vícios morais é tão profundo que até mesmo segmentos dos movimentos negros organizados compactuam com estas ideias. O homem negro heterossexual é o mais violento e abandonador de lares, o homem negro gay é o mais promíscuo e histriônico e o homem negro trans é o que mais reproduz machismo.
Ao fim e ao cabo, nós homens negros de todas as cores e orientações, buscamos formas de existir no debate público sem sermos acusados a todo momento. Não apenas como alvos e/ou reprodutores de violência. Somos muito mais que todos os ismos que nos atribuem. O “homem negro vida”, e não o homem negro tema”, é múltiplo, polissêmico, humano, demasiadamente humano. Nossa história é a história do Brasil e do mundo com suas contradições e potências. Pensemos nisso.
Henrique Restier é Professor de Sociologia (CEFET-RJ), Doutor em Sociologia (IESP-UERJ) e organizador do Livro Diálogos Contemporâneos sobre Homens Negros e Masculinidades (HUCITEC). Vinícius Zacarias é Professor de Ciências Sociais Aplicadas (UFS) e Doutor em Estudos Étnicos (UFBA)