Onde a musa inspira a poesia
A cultura irradia o cantar da Imperatriz
É um palácio, emoldura a beleza
Abrigou a realeza, patrimônio é raiz
Que germinou e floresceu na colina
A obra-prima viu o meu Brasil nascer
No anoitecer dizem que tudo ganha vida…
(Samba-Enredo 2018 – Uma Noite Real No Museu Nacional. G.R.E.S. Imperatriz Leopoldinense – RJ)
Um dos mais belos e sensíveis sambas-enredo já executados no Carnaval do Rio de Janeiro conta-nos sobre a história e importância científica do Museu Nacional, homenageando assim os 200 anos de fundação do maior museu de história natural e antropologia da América Latina, detentor do quinto maior acervo do mundo. Na noite de 2 de Setembro de 2018, no entanto, esse acervo não ganha vida em baile como relatam os versos desse samba, mas se reduz a cinzas devido a um gigantesco incêndio que começou por volta das 19hs e apenas na madrugada seguinte foi controlado. O Museu não possuía sistemas de combate a incêndio, quando os bombeiros chegaram não havia água prontamente disponível, e a que foi obtida foi insuficiente.
Fundado em Junho de 1818 pelo Rei Dom João VI com o nome de Museu Real, e estabelecido no palácio Paço de São Cristóvão desde 1892, o Museu Nacional acumulou ao longo de seus dois séculos um acervo de cerca de 20 milhões de peças, artefatos e espécimes representativos de todos os campos da Zoologia, Botânica, Geologia, Paleontologia, Antropologia e outros, além de mobiliário, pinturas, documentos e artefatos reais e imperiais, e a própria arquitetura do palácio que serviu de residência e sede do poder da Família Real Portuguesa entre 1808 e 1821, e da Família Imperial entre 1822 e 1889. Como unidade da Universidade Federal do Rio de Janeiro, o Museu Nacional sedia ainda seis programas de pós-graduação (Zoologia, Botânica, Antropologia Social, Arqueologia e Patrimônio, Linguística e língua Indígena e Geopaleontológico), somando cerca de 500 estudantes de mestrado, doutorado e muitos estudantes de graduação e do Ensino Médio que ali contribuíam para a pesquisa nesses campos do saber e para a divulgação científica.
Enquanto o fogo consumia todo o palácio e seus incalculáveis tesouros, políticos brasileiros, incluindo o presidente Michel Temer, anunciaram lamentos e intenções de reparar o dano. O edifício poderá ser reconstruído e restaurado, réplicas de partes do acervo podem ser feitas, e um novo Museu Nacional pode, e irá emergir das cinzas. Mas o Museu Nacional Bicentenário, o que tive a honra e sorte de frequentar desde os 2 anos de idade e lá estudar por anos em graduação e pós-graduação, este nunca será recuperado. As coleções mantidas no Paço de São Cristóvão e a exposição pública permanente (que exibia cerca de 10% do acervo total), são insubstituíveis e a maior parte está perdida.
Essas coleções, grandes demais para serem apreciadas aqui em sua totalidade, continham artefatos e espécimes de enorme relevância científica e cultural. Eram testemunhos de tempos, testemunhos de sociedades e costumes, testemunhos de um planeta e suas mudanças. Destaques incluem Luzia (a “Lucy” brasileira), o mais antigo crânio humano das Américas, com cerca de 12 mil anos e proveniente das grutas de Minas Gerais. Juntamente com os únicos vestígios até então preservados dos extintos índios Botocudos e ali resguardados, esses espécimes destacaram a possibilidade de uma ancestralidade Austro-Melanésia para um grupo de paleoíndios americanos e uma leva de migração humana ao continente diferente da que origina os indígenas modernos. A coleção egípcia iniciada por Dom Pedro I, incrementada por Dom Pedro II, e que incluía a múmia de Sha-amon-en-su, a “cantora de Amon”, encerrada em seu esquife e revelada apenas recentemente por meio de tomografias, juntamente com outras múmias e centenas de artefatos egípcios, a maioria vinda de Tebas (atual Luxor). A coleção de afrescos e outros itens escavados em Pompéia sob patrocínio e zelo da Imperatriz Tereza Cristina. O trono do Rei Adandozan, governante de Daomé, um reino africano que existiu entre os séculos 17 e 19 na região do atual Benin. Manto e colar reais oferecidos ao imperador Dom Pedro I em 1824 pelo Rei Kamehameha II e Rainha Kamāmalu, governantes do então reino do Havaí, fabricado com penas de aves havaianas, algumas atualmente extintas. Coleções etnográficas de povos mediterrâneos, africanos, polinésios, andinos e amazônicos, com materiais e registros que acumularam um catálogo único, com contribuições e estudos feitos por pessoas como Heitor Villa-Lobos, Edgar Roquette-Pinto, Marechal Candido Rondon, Curt Nimuendaju, Claude Lévi-Strauss e outros tantos. Esses são só alguns exemplos dos tesouros humanos e civilizatórios agora perdidos.
As vastíssimas coleções de entomologia (cerca de 5 milhões de exemplares), de aracnologia, crustáceos e outros grupos de animais invertebrados, incluindo milhares de espécimes-tipo e espécies inéditas que estavam sob pleno trabalho de descrição e nomeação. O acervo de invertebrados e dados afins acumulados desde o Brasil Colônia recebeu contribuições de icônicos exploradores e naturalistas, incluindo Charles Darwin, Fritz Muller, Hermann von Ihering, Emilio Goeldi e muitos outros. As coleções geológicas e paleontológicas eram também impressionantes, remontando aos interesses da Imperatriz Leopoldina de Habsburgo e incluindo uma coleção de minerais organizada pelo próprio pai da moderna Mineralogia, Abraham Gottlob Werner, para ser entregue à Imperatriz. Inclui a maior coleção de meteoritos da América Latina, com espécimes icônicos como o meteorito Angra dos Reis e o grande Bendegó, e milhares de espécimes fósseis de todos os grupos, coletados por notáveis como Jean Louis Rodolphe Agassiz, Charles Frederick Hartt, Orville Adelbert Derby, Llewellyn Ivor Price, Carlos de Paula Couto, e muitos outros. Dinossauros, pterossauros e mamíferos da Megafauna Quaternária eram particularmente bem representados, com dúzias de espécimes-tipo. A maior parte das coleções geológicas e paleontológicas está alocada em robustos armários de aço no Departamento de Geologia e Paleontologia, o último a ser queimado. Isso traz esperanças de resgate de uma boa parte desse acervo após a remoção dos escombros que se acumulam sobre ele. Todo esse diverso, centenário e enorme acervo não eram relevantes apenas para a UFRJ, nem relevantes apenas para o Rio de Janeiro ou o Brasil. Por suas dimensões e singularidades, a sua perda é uma catástrofe mundial, sem nenhum exagero nessas palavras.
Lamentavelmente, esse inaceitável desastre estava anunciado: desde décadas sucessivas administrações do Museu e da Universidade, bem como o Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM), apontavam e denunciavam necessidades, e clamavam por recursos para que projetos de segurança contra incêndios, reparos e expansão das exposições no palácio fossem executados, bem como para a construção dos necessários novos prédios para administração, pesquisa e guarda das coleções. Esses projetos foram apresentados a todas as esferas do poder público, bem como à iniciativa privada em busca de apoio, e todas as principais demandas foram sucessivamente negadas ou ignoradas. A culpa por todo esse desastre tem nome e sobrenome: negligência generalizada. Com um orçamento anual destinado ao Museu Nacional vinha de cerca de 550 mil reais, e rapidamente caindo nos anos recentes, o maior museu latino-americano não recebia a devida atenção de políticos e empresas, com poucas, esparsas e insuficientes exceções. O Museu Nacional também não recebia a devida atenção da elite nacional. Ele tem sido visitado principalmente por estudantes de escolas públicas e trabalhadores de renda baixa e média desde sua incorporação à UFRJ, em 1946, enquanto as elites dirigentes fazem loas aos museus europeus e americanos, mas não valorizam o patrimônio nacional e evitam frequentar os mesmos espaços proletarizados com as pessoas comuns (em 2017 mais brasileiros visitaram o Museu do Louvre, em Paris, do que o Museu Nacional, no Rio de Janeiro).
O orçamento do Museu Nacional é tão embaraçoso como são as macro-políticas científicas e educacionais atuais no Brasil, e como será o destino da nação se tudo permanecer como está. Em 2003 o então ministro da cultura, Gilberto Gil, apresentou a Política Nacional de Museus, que promoveu um incremento de até 900% no investimento feito em museus brasileiros, bem como vários programas de reparo de museus existentes e de criação de novas unidades museais. Aquele foi um forte encorajamento e esperança de uma devida atenção oficial à herança cultural, histórica e científica do povo brasileiro. Entretanto, os museus universitários (como o é o Museu Nacional) sofreram entraves nessa Política. Em 2006 o então Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação destinou cinco milhões de reais em um edital público específico para coleções biológicas, e 105 projetos foram submetidos por pesquisadores e curadores de instituições de todo o país. A demanda apresentada foi cerca de 13 vezes o valor disponibilizado (que contemplou apenas oito projetos), sendo este um claro sinal da profunda necessidade de maiores investimentos em coleções biológicas nesse país megadiverso que é o Brasil. Tais pequenos acenos governamentais e esperança para uma melhoria no tratamento da ciência e patrimônio cultural nacionais tornaram-se apenas lembranças poucos anos depois. O pacote de austeridade que congela os investimentos públicos por vinte anos aprovado pelo Senado e pela presidência em 2016 vêm estrangulando as universidades, as instituições culturais e científicas do país, bem como todas as iniciativas de bem-estar social. O incêndio catastrófico do Museu Nacional é, portanto, uma consequência de tais políticas de corte. É ainda sintomático que, entre as 13 candidaturas à próxima eleição presidencial no Brasil, em outubro, apenas dois candidatos citem a preservação de museus em seus planos de governo (Fernando Haddad, do PT, e Guilherme Castro Boulos, do PSOL). Lamentável e preocupantemente, um dos candidatos líderes nas intenções de voto, Jair Bolsonaro (do PSL) anunciou publicamente no dia seguinte ao incêndio que não planeja alocar recursos adicionais em museus caso venha a ser eleito, criticou apresentações teatrais (que nada têm a ver com o Museu Nacional) e politizou a tragédia, culpando diretamente a administração atual do Museu Nacional e da Universidade pelo ocorrido. A destruição do Museu Nacional tornou-se assim o maior símbolo do desrespeito e desinteresse das autoridades constituídas e de muitos dos tomadores de decisão contra a cultura e a ciência do Brasil.
Celebrando o bicentenário de todo esse patrimônio, a escola de samba Imperatriz Leopoldinense levou o Museu Nacional para o Sambódromo no Carnaval de 2018, cantando-o magistralmente. Cientistas, exploradores e estudantes, trabalhadores que dignificaram a história do Museu e projetaram seu futuro agora sofrem, no mesmo ano, inimaginável dor e temem inseguros sobre seus destinos e legados. Embora nenhuma vida humana tenha sido tirada pelo incêndio, muitas vidas tornaram-se menores e mais tristes por causa do desastre. Milhões de pessoas que se maravilharam com as exposições ao longo da história do Museu Nacional, incluindo todas as crianças que, como eu mesmo, ali idealizaram seus próprios futuros como cientistas, até vindo a contribuir um pouquinho para seu grandioso acervo e sua produção científica. Para todas essas pessoas, pelo patrimônio mundial que o Museu Nacional representa, urge que as mais altas autoridades brasileiras assumam uma postura completamente diferente quanto à atuais políticas científicas, educativas e culturais da nação. Chamamos as autoridades a olharem para esse horror, a perceberem que cada uma dessas pessoas em posição de poder também perdeu muito de sua própria história e herança, e que elas coloquem seus “pensamentos de planilha” em perspectiva e passem a tratar nossos equipamentos culturais, nosso patrimônio histórico, nossas universidades, nossos museus universitários, nossas instituições de ensino e de pesquisa como investimentos cruciais para a nação, e não como descartáveis e desprezíveis gastos. As medidas provisórias (criação da Agência Brasileira de Museus e dos Fundos Patrimoniais para captação de recursos privados) assinadas pela presidência no dia 10 de setembro como meios de mitigar essa crise causam mais temores e dúvidas do que alívio: continuam não olhando para os demais museus universitários, que são importantes detentores do patrimônio museal do país, lança os museus federais como competidores contra nove entidades detentoras de missões e visões muito diferentes (Sistema “S”: SENAI, SESI, SENAC, SESC, SEBRAE, SENAR, SEST, SENAT e SESCOOP), e afastou da construção de uma solução todo o setor museológico nacional. Continuamos, na primeira oportunidade de guinada, a sermos submetidos a um “pensamento de planilha”.
Algumas coleções estavam em construções anexas ao Palácio, erguidas desde 1995 graças à única modernização que agraciou o Museu Nacional em sua história recente, e, portanto, nada sofreram. Inclui-se aí a reserva técnica de vertebrados atuais (com cerca de 460 mil espécimes), o herbário (com cerca de 550 mil espécimes), a coleção de dipterologia, de invertebrados marinhos (com cerca de 100 mil espécimes), bem como a grande Biblioteca Central com seus 500 mil títulos (incluindo 1550 obras raras) em história natural e antropologia. Com mais de um milhão de espécimes, essas coleções têm tamanho e importância para constituírem por si só um grande museu. Junto com a restauração dos artefatos e espécimes que miraculosamente emerjam das cinzas e venham a ser resgatados dos escombros da destruição, e a composição de novas coleções que venham a ser constituídas, tal acervo será o núcleo de um novo Museu Nacional. Mas isso fará sentido apenas se novas, sérias e eficazes ações sejam tomadas pela União, e toda a sociedade, em apoio constante a esse esforço dos pesquisadores e amigos do Museu Nacional. Vamos ter um novo Museu Nacional, uma nova postura frente a nosso patrimônio, que modo que todos os erros e decisões que levaram a esse desastre sejam corrigidos e jamais se repitam. Restauração, acervo, estudos, pesquisa com investimentos constantes e decentes e divulgação. E respeito por nossa herança! Apenas assim honraremos aqueles que, desde 1818, têm trabalhado para que o Brasil detivesse sua maior joia, a mesma que foi tão severamente maculada e imolada naquela terrível noite de 2 de Setembro de 2018.
Douglas Riff é Paleontólogo, professor e curador da Universidade Federal de Uberlândia, Brasil. Entusiasta do Museu Nacional desde a infância, e seu ex-estudante de graduação, mestrado e doutorado.