Homeschooling: à direita volver
Esvaziamento da Escola, novas funções para um Estado já sobrecarregado e interferência de valores religiosos estão embutidos na urgência da Medida Provisória do governo Bolsonaro. A modalidade de Ensino Domiciliar também é uma das bandeiras e o business do secretário de Alfabetização, Carlos Nadalim.
Sob a justificativa de garantir pronto amparo legal às famílias adeptas à prática do ensino domiciliar, também conhecida como homeschooling, e ignorando quatro projetos que tramitam no Congresso Nacional sobre a matéria (Câmara dos Deputados: PL nº 3179/12 e PL nº 3261/2015; Senado Federal: PLS nº 28/2018 e PLS 490/2017), a medida provisória do governo Bolsonaro já levanta polêmicas antes de chegar às Casas Legislativas. A modalidade, vale lembrar, é uma das bandeiras e o business do secretário de Alfabetização, Carlos Nadalim. Ele é dono da página da internet “Como Educar seus Filhos”, pupilo do escritor Olavo de Carvalho, o “guru” intelectual do presidente Jair Bolsonaro (PSL) e inclusive, foi um dos nomes ventilados, em meio à guerra interna do Ministério da Educação (MEC), para substituir o atual ministro, Ricardo Vélez Rodríguez.
Uma das metas dos 100 dias de governo do presidente Jair Bolsonaro, a proposta foi colocada como fundamental para a defesa dos Direitos Humanos e, com amparo no Pacto de San Jose da Costa Rica, do qual o Brasil é signatário, foi legitimada pelo governo como entrega do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, comandado por Damares Alves, pastora autodeclarada como “terrivelmente cristã”. Às vésperas de completar um mês de atraso, segundo prazo previsto pela própria ministra, a proposta ainda segue com seu texto em finalização e sem previsão para publicação, segundo a assessoria do Ministério de Damares.
Ao senso de relevância e urgência dado ao tema, que ao ser apresentado como MP ganha força imediata de lei (embora ainda dependa de aprovação do Congresso Nacional para efetivamente passar a ser uma lei), se contrapõem aos indicadores da Associação Nacional de Ensino Domiciliar (Aned) e do MEC.
Segundo a Associação, em 2018, havia cerca de 15 mil estudantes adeptos da modalidade – o que equivale a, aproximadamente, 0,3% do total de 48,6 milhões de alunos matriculados nas 184,1 mil escolas de educação básica no Brasil, segundo último Senso Escolar do MEC.
Além da disparidade quantitativa dos universos discentes, com a regulamentação do ensino domiciliar, o Estado, que ainda precisa equacionar o mau gerenciamento crônico da educação pública no país, abarcará a responsabilidade da fiscalização e avaliação dos alunos em homeschooling.
“As famílias já adeptas e as que potencialmente adotariam tal modalidade de educação, notadamente, não estão nos sistemas públicos de ensino. Como as diretorias de ensino das redes estaduais e municipais conseguirão arcar com a supervisão de milhares de estudantes em regime de educação domiciliar? As redes de ensino precisariam de estruturas de supervisão educacional muito mais complexas”, alertou Fernando Cássio, professor de políticas educacionais e direito à educação da Universidade Federal do ABC.
A transferência da responsabilidade do ensino às famílias pode ainda, segundo educadores, colocar em risco a garantia do direito à educação, previsto na Constituição Federal (artigo 205) e respaldado na Lei de Diretrizes e Bases da Educação.
“O Estado precisa ter uma atuação contundente para a garantia desse direito. A Escola tem grande relevância para as interações sócio emocionais, cognitivo/linguísticas e psicomotoras – absolutamente necessárias para que Crianças e Adolescentes constituam conhecimentos e valores éticos (autonomia e responsabilidades), políticos (direitos e deveres de cidadania) e estéticos (experiências e apreciação da diversidade de manifestações culturais)”, atestou a professora Regina de Assis, Doutora em Educação pela Universidade de Columbia e atual Diretora de Educação, Comunicação e Cultura da TV Escola.
Ex-secretária municipal de Educação do Rio de Janeiro, na gestão de Cesar Maia, Regina de Assis coordenou, na época, através da criação de uma macrofunção de políticas sociais, ações integradas para a oferta de atividades lúdico-pedagógicas fora do período escolar regular para os cerca de 800 mil alunos da de educação infantil e fundamental.
“Articulamos trabalhos da secretaria municipal de Educação com a de Saúde, Desenvolvimento Social, Esporte e Lazer e Cultura. Eram mais de 1000 escolas, quase 30 mil professores e inúmeros profissionais das demais áreas. Foi possível fazer. Seria desejável uma iniciativa com esse norte para a esfera federal”, destacou.
Embora os gastos por aluno no Brasil tenham aumentado em mais de 300%, entre 2000 e 2015, de acordo com o Banco Mundial, os resultados no Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa) revelam evolução instável e estagnação.
“Os investimentos em educação infantil trazem retornos sociais mais altos, mas o Brasil optou por um caminho contrário invertendo a prioridade: embora atenda uma quantidade de alunos seis vezes menor, nosso ensino superior recebe três vezes mais recursos do que a educação básica. O fator de fracasso da alfabetização no Brasil é o baixíssimo nível de institucionalidade da escola pública”, destacou o cientista político Guilherme Garcia Marques, da Diretoria Internacional da Fundação Getúlio Vargas.
Para o cientista político, além do melhor gerenciamento do erário público dispensado à Educação, a valorização e qualificação dos professores também precisa ganhar prioridade.
“Em Cingapura, na China e no Japão, que ocupam as primeiras colocações no PISA, ser professor é sinônimo de prestígio social”, ressalvou.
Homeschooling – Os primeiros Homeschoolers foram inspirados por um movimento de reforma educacional, nos Estados Unidos, na década de 70. Uma década adiante, a prática de Ensino Doméstico ganhou a adesão de grupos evangélicos que queriam conteúdos escolares de acordo com seus princípios cristãos.
Adiante, casos de violência nas escolas e a má qualidade no ensino incorporaram as motivações para adesão à prática e o movimento ganhou ainda mais adeptos nos Estados Unidos e mundo afora. No Brasil, a prática teve início nos anos 1990 e vem ganhando cada vez mais adeptos, segundo a Aned: em 2016, o número de famílias adeptas era de 3,2 mil e, em 2018, de cerca de cinco mil.
De acordo com o advogado Édison Prado de Andrade, doutor em Educação pela Universidade de São Paulo (USP) e gestor da Associação Brasileira de Defesa e Promoção da Educação Familiar (ABDPEF), o Movimento Social pela Educação Familiar Desescolarizada é composto por pais “profundamente comprometidos com o bem-estar e o futuro de seus filhos e que levam em conta o desenvolvimento deles em sua integralidade”.
“De modo geral, entre eles há a crença de que os valores tradicionais da civilização cristã ocidental são bons e devem ser respeitados. Essas famílias querem educar seus filhos segundo seus próprios princípios, valores e crenças. Entre as motivações dos adeptos, também se incluem a qualidade precária das escolas públicas e casos de bullying”, certifica Édison Prado de Andrade.
Subsídios ao Estado – Ao contrário do que acontece nas escolas públicas nos Estados Unidos, referência mundial na prática de homeschooling, no Brasil não há qualquer aceno do governo sobre possíveis subsídios às famílias, por aluno em homeschooling. Ao contrário, fontes do governo já sinalizaram que deverá haver a cobrança de uma taxa para as famílias que optem pela modalidade. Além do pagamento da referida contribuição ao Estado, todas as despesas com material, aulas e atividades extras ficarão ao encargo das famílias.
“A equação não fecha. A possibilidade de ensinar em casa vai de encontro à realidade social e financeira da maior parte dos brasileiros, que tem rendimento médio domiciliar per capita de R$ 1271,00, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua de 2017 (PNAD Contínua), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatítica (IBGE)”, frisou Guilherme Garcia Marques.
Simone Ronzani é jornalista, pesquisadora em Mídia e Educação, pós-graduada em Gestão do Entretenimento, criadora do www.recontando.com, autora da Comunicação Científica ‘As crianças, os Meios de Comunicação e o processo de formação da Cidadania’