Homo Notitia: indivíduos como vetores de dados para consumo
Como a ressignificação da privacidade permitiu novas políticas de vigilâncias e alternativas abordagens de consumo
O título para esse artigo é uma provocação para chamar a atenção de algo que trouxe uma ruptura em nossa sociedade de consumo, o uso de dados e informações para compreender comportamentos e compras. Notitia está em latim e expressa a ideia de informações ou dados, aquilo que é possível de ser transmitido através de alguma forma de comunicação. Assim, Homo Notitia está aqui como uma transformação – e não, necessariamente, evolução – do Homo Sapiens no século XXI, cuja a marca é a capacidade de tornar coisas em alguma forma inteligente.
No fim dos anos 1990, os celulares eram dispositivos utilizados para fazer ligações telefônicas, apenas. Tanto que seu prenome era telefone e para os íntimos, era conhecido como celular. O máximo que era possível, na época, era uma agenda telefônica digital limitada ou jogos de baixa complexidade tecnológica. Os anos 2000 trouxeram novas possibilidades e o aparelho passa-se a chamar smartphone, deixando claro que o momento era outro, uma máquina potente e inteligente, deixando de ter o tamanho descomunal e passando a caber em qualquer bolso.
Os smartphones têm uma capacidade que aumenta a cada lançamento e consegue agrupar uma série de ferramentas como, câmeras fotográficas, bússolas, relógio, GPS e o principal, acesso à internet. Eis aqui um avanço impressionante: acessar sites ou e-mail não necessitava mais de um computador, tudo estava compactado em um retângulo de algumas polegadas e extremamente leve.
A internet em qualquer lugar e com uso massivo, permite que smartphones armazenem dados diversos como, histórico de compras, viagens, encontros, reuniões, buscas na internet, sites que mais acessa, conversas e tudo mais que seja relevante. Por outro lado, percebia-se uma lacuna: diversas informações não estavam ao alcance dos aparelhos, logo, era preciso criar mais coisas inteligentes. A indústria tecnológica descobre que a maior fonte de lucros não é, necessariamente, a venda de tecnologia e sim, a fonte inesgotável de dados que eles forneciam.
Na busca por novas fontes, ou vetores de dados, os relógios inteligentes foram a nova aposta da indústria. Saber, apenas, o horário tornou-se algo um pouco demodè e era preciso mais de um relógio. Os smartwatches são capazes de medir temperatura do corpo, batimento cardíaco, quantos passos são dados em um dia, quantas horas de sono e o melhor, isso pode ser integrado ao smartphone e ambos podem enviar notificações entre si. Quem não demanda de alta verba para investir nessa tecnologia, pode comprar smartbands, que são como pulseiras capazes de fazer algo parecido dos relógios inteligentes. O próximo campo a ser conquistado pela tecnologia eram as casas, assim, lojas passam a vender TVs, geladeiras, fogões e até cafeteiras inteligentes. Isso sem falar dos carros que incorporaram dispositivos para trazer uma percepção de segurança e conforto.
Os usuários passam a ter “recompensas” para utilizar todos os apetrechos possíveis como, por exemplo, saber a que horas se entra em sono profundo, quantas abdominais são necessárias para ter o corpo perfeito, que as cápsulas de cappuccino estão acabando, que aquele cupcake, cuja foto foi curtida em um perfil no Instagram, está em promoção na loja próxima de casa e que aquela série que alguém estava comentando com seus amigos no Whatsapp está disponível na Netflix. Tudo parece ser trivial aos olhos de muitos, mas para alguns, esses são o grande motivo para que se encantem com esses produtos.
O mercado dos dados: vigilância, trabalho e consumo
Não há problema algum que informações pessoais sejam utilizadas para si. Seja qual razão for, seus dados, suas regras em seus ambientes. Agora, o que acontece se as empresas de tecnologia passam a ter acesso às informações confidenciais? Aliás, apenas alguém com grande inocência não observa que seus dados são compartilhados com outras empresas.
O Homo Notitia quis criar um ambiente inteligente e não soube delimitar o que seria público e privado. Empresas e governos podem e estão obtendo informações pessoais de cada usuário de dispositivos inteligentes. Afinal, por que uma empresa quer saber quais músicas um indivíduo ouve, quais séries assiste ou em qual ritmo corre em seu jogging diário?
Imagine que antes, para você saber qual a melhor marca de tênis para corrida, era preciso um grande investimento de mídia. Que para saber se o show dos Rolling Stones iria ter boa aceitação, era preciso uma pesquisa de mercado. Que para disponibilizar um curso de MBA, era preciso anúncios em revistas executivas. Veja que tudo era comunicação em massa e de alta dispersão.
Obter informações específicas faz empresas comunicar seus produtos e serviços de forma eficiente, mais barata e com alta probabilidade de venda. Se o Google sabe qual time que um indivíduo torce, uma loja de produtos esportivos jamais anunciará a camisa do time adversário. Se alguém gosta de séries de comédia, a Netflix não irá convidá-lo para assistir a um filme de terror. Se a sua playlist contém música eletrônica, o Spotify não enviará anúncios de novas duplas sertanejas. A Uber e Waze já sabem onde é a sua casa, o local do seu trabalho e, caso tenha um affair, saberá onde essa pessoa pula a cerca. A Alexa, da Amazon, já sabe quais as notícias do dia interessam ao seu usuário e ela as lê, enquanto ele bebe seu Nespresso fresco feito via aplicativo.
Zygmunt Bauman disserta sobre a utilização desse controle por meio de dados e mostra preocupação ao que chama de “tecnologias da vigilância”. Ele exemplifica que a Amazon conhece mais seus hobbies e preferências melhor que ele mesmo, passando a ofertar produtos capazes de gerar algum tipo de tentação de compra no indivíduo. É sabido e lembrado por Bauman que esses bancos de dados são alimentados de forma deliberada pelos usuários desses sites. Então, é pecado o marketing ofertar tentações aos seus clientes em forma de produtos e serviços?
O pecado não está na tentação simplória do consumo pois as empresas sobrevivem de suas vendas e sim, na exploração do consumo intermitente dos seus clientes. A todo momento, as empresas notificam por e-mail ou aplicativos uma oferta imperdível e nem o sono é permitido pois diversos e-commerces lançam promoções durante a madrugada. Qualquer pessoa é vista como um consumidor 24/7, ou seja, disposto a comprar 24 horas por dia e 7 dias na semana.
Diante da necessidade de extrair o máximo de lucro de consumidores, as empresas não demarcam suas fronteiras em sites e aplicativos próprios, é preciso estar em qualquer lugar que os olhos de seus compradores alcancem e isso inclui redes sociais e sites parceiros. Basta abrir o Instagram ou Facebook para que um indivíduo seja bombardeado de conteúdos patrocinados. A partir do momento em que qualquer objeto torna-se smart, eles passam a ser novos espaços para que empresas ofertem seus produtos e serviços de acordo com as preferências dos clientes. A compra está ao alcance de um clique e entregue no conforto do lar altamente “smartizado”.
O tal conforto do consumo explora o trabalho, por outro lado. A comida preferida comprada no Ifood é entregue por alguém de bicicleta. O executivo não perde seu voo pois o motorista da Uber o leva em tempo e ainda é possível realizar uma sessão terapia via câmera do telefone no saguão de espera do aeroporto. Nota-se que todas as empresas vão intermediar suas necessidades e desejos com profissionais que trabalham mais de 10 horas por dia e ganham muito menos que seus pares fora dos aplicativos de trabalho.
O cenário se agrava quando esses trabalhadores são monitorados e terão ganhos variáveis de acordo com aquilo que produzem, em um sistema de gamificação. Mais corridas, mais entregas, mais pacientes atendidos ou mais clientes dando máximo de estrelas lhe darão status dentro dessas plataformas. O controle é total e ininterrupto e faz essa massa de trabalhadores a não parar suas atividades, seja na madrugada ou em um feriado, para ter um trabalho (precarizado) é preciso abdicar-se de descanso e convívio familiar.
O mercado desruptivo, como alguns gurus empreendedores gostam de dizer, não possui regras claras para definição de preços de seus produtos e serviços. Ou seja, cada cliente pode pagar um preço diferente, dependendo do seu status em um aplicativo. Se isso já causa desgosto em viagens de carro, imagine se serviços básicos passarem a utilizar a lógica de dados que esses consumidores vetorizam.
Com diversas informações à disposição, uma seguradora de carros pode definir o preço de acordo com os dados obtidos no GPS. O plano de saúde pode variar seus valores caso o smartwatch informar que o cliente faz atividades regulares ou se sua pressão arterial está na média. A polícia pode ser alertada se alguém receber amigos em casa, pois, há informações que alguns deles gostam de rock e, de acordo com Dante Mantovani, o rock ativa as drogas. Se alguém quiser hipotecar sua casa, a empresa pode saber que o fogão não funciona muito bem e isso pode gerar uma explosão. A TV por assinatura pode oferecer vendas casadas em forma de combo, pois sabe que cliente é um assíduo espectador de filmes adultos e, inclusive, sabe a hora que mais assiste.
Homo: sapiens, notitia ou smart?
O status de um smartwatch, smartcar, smarthouse, smart-everything tem o preço da privacidade. Empresas como Google, Facebook e Amazon são capazes de controlar todos os dados que uma pessoa repassa através de dispositivos inteligentes. Essas empresas vendem informações para que produtos e serviços sejam ofertados e isso fortalece os monopólios, basta observar a participação de mercado da B2W e Uber, por exemplo. As informações de todos estão nas mãos de poucas empresas e elas sufocam pequenos empreendedores e exploram trabalhadores informais.
Ainda, esses dispositivos são capazes de fortalecer as bolhas digitais e fazer que conglomerados midiáticos possuam altas audiências, enfraquecendo veículos alternativos e locais. Exemplo claro disso é, que há mais dados sobre o consumo nas favelas que a quantidade de mortos por Covid-19 nessas comunidades, pois ONGs e entidades presentes por lá não possuem o poder de emissão de grandes empresas de comunicação. As bolhas são alimentadas por notícias baseadas em seus históricos de leitura, captados de celulares e smart TVs e estão suscetíveis a manipulação de notícias e Fake News.
O Homo Notitia conseguiu transformar máquinas em dispositivos inteligentes e está lucrando com tantas informações extraídas neles. Foram capazes de criar uma prisão panóptica e estão em uma falsa liberdade e privacidade. O consumo está condicionado e entregue para poucas empresas e é preciso refletir o quão sustentável é esse modelo. Os dados estão semeando o monopólio mercadológico e estremece bases democráticas. Pode-se concluir que o Homo Sapiens mostrou-se não ser tão sábio ao desprezar sua privacidade em troca do controle de si.
Herbert Salles é doutorando em Economia (UFF).