Hora da verdade
Para desespero dos partidários do “sim”, está cada dia mais transparente para os eleitores que o que está em questão no plebiscito é a continuidade de duas décadas de desregulamentação dos serviçosFrédéric Lordon
“?Modelo social europeu??
não entendo bem o sentido desta expressão.”
Frits Bolkestein,
France Inter, 6 de abril de 2005
Atormentado por algumas leves angústias eleitorais, o governo francês conseguiu de seus parceiros europeus que o espantalho do projeto de diretriz européia chamada Bolkestein1 seja adiado pelo tempo que se fizer necessário. Evidentemente, é necessário ter o senso do fantástico para conceber a diretriz “serviços” totalmente derrubada, ou uma certa tendência à imaginação criativa para negar que ela reaparecerá novinha em folha tão logo tenha passado a “bagunça” popular. Como a propensão a fazer promessas nas situações extremas é a coisa mais bem dividida do mundo, eis que, por sua vez, os socialistas tentam trazer seu óbolo e prometem um “grande tratado social”? para “depois”. Será somente o terceiro ou o quarto, pois, agora, adquiriram o hábito de jurar em quase todas as eleições que, aprovado Maastricht, a Europa seria social com certeza; Amsterdã não teria tido êxito sem as quatro condições apresentadas por Lionel Jospin etc., e muitas outras promessas. É a irracionalidade barulhenta do povo que faz lamentar a falta da doce tranqüilidade das cúpulas européias entre amigos: Barcelona em março de 2002 e a desregulamentação da energia sem gritaria, Lisboa em março de 2000 e a perspectiva de um mercado de trabalho liberalizado sem dificuldades, para não falar nada sobre as felicidades simples da Comissão, diretrizes em fogo brando e decisões sem alvoroço inútil.
Sob o signo do mercado
A diretriz que trata de serviços sem dúvida reaparecerá novinha em folha tão logo tenha passado a “bagunça” popular
Bolkestein posto de lado, a pedagogia um tanto exasperada do sim vai poder poupar-se do trabalho de mostrar aos eleitores que a diretriz Serviços não está no tratado – eles perceberam o fato sozinhos. A bem da verdade, seria necessária uma dose perigosamente crescente de má-fé – ou então de providencial cegueira – para afirmar que um texto não tem nada a ver com o outro. Por meio de um argumento bastante infeliz, os partidários do sim acreditam realmente dissipar os temores lembrando que a problemática parte III é apenas a compilação dos tratados anteriores. Mas como se poderia expressar melhor a identidade liberal-concorrencial de uma construção européia cujo projeto desregulamentador remonta às próprias origens? A referência ao tratado de Roma de 1957, feita visivelmente para tranqüilizar as preocupações por meio da feliz reminiscência da década de 60, também é factualmente fundada e, ao mesmo tempo, politicamente inepta. É verdade que é mais fácil anestesiar o corpo eleitoral levando-o para um passado simples e suave do que tentando esclarecer para ele uma história cheia de paradoxos e de ameaças.
Paradoxal realmente, um tratado de Roma muito liberal redigido no auge de uma época muito keynesiana. Paradoxal, ainda, uma norma jurídica européia reconhecida como superior e que, no entanto, permaneceu letra morta durante quase trinta anos. É uma história não linear que mereceria ser contada – história de um longo sono do princípio da concorrência européia; em seguida, de um progressivo despertar e, agora, de um imperium impiedoso2. Pode-se, portanto, apelar ao tratado de Roma para fins ansiolíticos, mas somente mediante a condição de esquecer que o texto tolerante só tardiamente revelou sua verdadeira identidade e a transformou de forma endógena numa máquina de desregulamentar que se tornou meio louca. Como aquela, recente, destinada a facilitar as OPA hostis, a diretriz Bolkestein apenas ostenta a essência mesma da construção européia, com a imperturbável lógica de um signo físico exprimindo um código genético. Do inocente tratado de Roma à agressiva desregulamentação dos serviços, há a íntima solidariedade da realização do primeiro pela segunda e a co-participação de uma mesma idéia: a idéia da concorrência, cuja consagração constitucional reforça, se realmente houvesse necessidade disso, o dinamismo invasivo.
A caminho da desregulamentação
Do inocente tratado de Roma à agressiva desregulamentação dos serviços, há como base uma mesma idéia: a idéia da concorrência
Elisabeth Guigou, ex-ministra socialista, clama que o ?não? nada compreendeu e que o prodigioso avanço democrático constitucional permitirá barrar as futuras diretrizes Bolkestein. Em primeiro lugar, não se vê muito bem através de que repentina revolução mental os governantes franceses, seus comissários e seus parlamentares – sejam eles socialistas ou liberais – se oporiam, subitamente, às desregulamentações que não cessaram de ratificar. Jornada de trabalho, energia, OPA, correio, serviços, a lista não será longa o bastante para tornar mais provável a hipótese de seu prolongamento que a de sua derrubada? Não se vê com muita clareza como negar que o princípio da concorrência se tenha tornado a força transmissora das políticas públicas européias, o pano de fundo sobre o qual as isenções frágeis da educação, da saúde, da cultura e dos serviços públicos estão destinadas a funcionar como obstáculos derrogatórios do direito comum. O destino de uma isenção, incessantemente ameaçada de ser tragada pela onda principal, é ser reduzida – e o empreendimento de abertura da concorrência generalizada só se deterá quando sua matéria estiver definitivamente esgotada.
Entre negação pura e simples e profecia do apocalipse, a resposta social-democrata a essa perspectiva faz sonhar. Muito seguro de si, Julien Dray, porta-voz do Partido Socialista, garante que as pesquisas desfavoráveis do “sim” não devem “apavorar”, mas derrapa no momento seguinte, quando adverte a vitória do “não” equivaleria a um “novo 21 de abril”. Na verdade, seria necessário tomar o contrapé exato desse calamitoso alerta: a vitória do “não” é o meio mais seguro de afastar a perspectiva de um novo 21 de abril.
Como, através de repentina revolução mental, os governantes franceses se oporiam, subitamente, às desregulamentações que não cessaram de ratificar?
Porque, contrariamente ao que pensa Dray, a patologia específica dessa data não está tanto na eliminação do candidato socialista – peripécia quase indiferente – quanto na possibilidade do candidato de extrema-direita ir para o segundo turno. Ora, os êxitos da Frente Nacional nada mais são que a desfiguração de uma questão social que, por não encontrar as forças políticas capazes de expressar segundo suas verdadeiras significações, ressurge apesar de tudo, mas sob formas monstruosas e irreconhecíveis: as lutas identitárias substituem as lutas salariais, a figura do imigrante é promovida para fazer esquecer a do desempregado, os interesses securitários em jogo recobrem os das desigualdades. A negação radical daquilo que a raiva de uma sociedade deve à degradação de suas condições materiais de existência cobra seu preço cedo ou tarde e, se não se tomar cuidado, a muito moderna social-democracia – que pensava ter acabado com a luta de classes, declarada obsoleta – poderia muito bem ter que passar novamente pelo caixa.
A experiência frustrante
É preciso, portanto, que o Partido Socialista se encontre na mais profunda desorientação ideológica para nem sequer perceber a virtude inerente a esse plebiscito europeu, ou seja, a virtude de recolocar o debate nos trilhos de onde nunca deveria ter saído. Dessa vez, não será possível escapar com histórias de “jovens delinqüentes” ou de situações complicadas, como numa eleição presidencial de base que não serve para nada e não faz senão alternar social-liberais e liberais-liberais. Pelo menos desta vez, uma votação coloca, sem escapatória possível, a questão cuidadosamente afastada por ocasião de todas as consultas anteriores: a do capitalismo liberal-concorrencial.
Em vinte anos de promessas de prosperidade, a concorrência generalizada só generalizou o ajuste salarial e o trabalho precário
Os eleitores se sentem bem, não vão deixar escapar a oportunidade. Não só lhes foi oferecida a oportunidade de se pronunciarem sobre o projeto de uma política européia que, explicitamente, colocou em seu cerne o princípio da concorrência generalizada, mas também lhes é possível fazê-lo com o distanciamento de vinte anos de uma experiência cujos efeitos eles estão, certamente, bem capacitados para avaliar? e para antecipar o futuro provável. Vinte anos de promessas de prosperidade, de certezas de economistas e de especialistas categóricos. Quem se lembra das consideráveis vantagens anunciadas às vésperas do “grande mercado” de 1993? A diretriz Bolkestein promete isso novamente, com a mesma fé granítica na universal eficácia da concorrência. Mas, pressionando as empresas entre preços industriais que baixam e exigências de rentabilidade financeira que sobem, a concorrência generalizada só generalizou o ajuste salarial e o trabalho precário. Por um extraordinário privilégio ideológico, o modelo do mercado goza, portanto, da possibilidade de prolongar indefinidamente suas experiências em grandeza real, a despeito de seus repetidos fracassos: décadas de liberalização sem o menor efeito, a não ser sobre o poder de negociação das empresas; igualmente redução do custo do trabalho sem a menor alteração específica da taxa de desemprego. Enquanto espera, reservando o eventual excedente da riqueza criada para alguns à custa da preocupação de todos os outros, a concorrência generalizada devasta a sociedade. Ora, pela primeira vez desde que, independentemente de sua vontade, foi lançada na aventura neoliberal, a sociedade está diante não mais apenas dos sintomas, mas das verdadeiras causas de sua devastação.
O povo com a palavra
Os partidários mais moderados do “sim” explicam que seria irracional recusar um tratado que, evidentemente, não está acima de qualquer crítica mas cujo avanço marginal continua sendo positivo apesar de tudo. É necessário ter um curioso senso do “positivo” para achar – entre outras coisas – que “a economia social de mercado altamente competitiva” substitui de modo vantajoso a “República indivisível, laica, democrática e social3” como nova forma de nosso destino coletivo… Mas será que os social-democratas de hoje sabem pelo menos que a “economia social de mercado” é um achado de economistas liberais alemães, recuperado pela democracia cristã do pós-guerra imediato? Ela se deve principalmente a Alfred Müller-Armack, nomeado diretor do “departamento das questões fundamentais” (não se inventa isso) do Ministério da Fazenda por Ludwig Erhard4, Ora, para Müller-Armack, a economia social de mercado se define “como uma ordem econômica cujo objetivo é combinar, numa economia aberta à concorrência, a livre iniciativa e o progresso social garantido precisamente pelas performances da economia de mercado5” – precisamente… é, pois, o próprio mercado – e somente ele – que é o operador do progresso social, sob a generosa direção do “consumidor”, único piloto legítimo da economia, pois “essa orientação sobre o consumo equivale, de fato, a uma prestação social” 6. O progresso social é uma coisa tão simples como a felicidade do consumidor…
Hoje, uma oportunidade excepcional e provavelmente sem futuro próximo, o corpo social, mantido em silêncio por décadas, tem a palavra
Ainda que se tivesse a gentileza de apreciar esse tipo de “avanço” que, na verdade, constitui uma dupla regressão – histórica e política -, a “racionalidade” do “sim” continuaria sujeita à caução. Porque somente uma leitura descontextualizada e despolitizada da Constituição pode convencer de que é preciso estar atento somente à contribuição do “novo” e que a compilação do antigo, por definição reconhecida sem contestação, é por conseqüência sem interesse. Sem dúvida, é esse tipo de aberração que leva os defensores do tratado a acreditarem que algumas declarações de princípio sociais e ambientais sem o menor começo de força política vão escamotear o resto e ter ganho de causa. Erro grave: não é porque as populações se prepararam, desde há muito tempo, para uma tarefa difícil que se deve considerar que a pílula foi engolida, digerida e esquecida. Se o corpo social nada disse até o momento, é porque nada lhe fora perguntado, e seria um equívoco acreditar que esse silêncio equivaleria a um consentimento! Hoje, uma oportunidade excepcional e provavelmente sem futuro próximo, ele tem a palavra.
(Trad.: Iraci D. Poleti)
1 – Recebeu o nome do ex-comissário europeu para o mercado interno.
2 – Ler “L?Europe concurrentielle,
Frédéric Lordon é economista, autor de Jusqu’à quand? L’éternel retour de la crise financière (Até quando? O eterno retorno da crise financeira), Raisons d’Agir, Paris, 2008.