Hora de redirecionar os recursos
Tentar restabelecer o sistema, irrigando-o com grande volume de verbas públicas não tem muito sentido. Não se trata mais de assegurar apenas que a intermediação financeira funcione, mas que a ajuda flua para onde é necessária, para o bem da humanidade e do planeta
Em poucas palavras: trata-se de aproveitar a crise financeira global para redirecionar as capacidades financeiras em função dos desafios reais do planeta, que são o drama ambiental e a desigualdade.
Exemplo prático, que é mencionado por uma das propostas mais interessantes, o Global Green New Deal das Nações Unidas: a Coreia do Sul montou um programa de US$ 36 bilhões, destinado a projetos que reduzem as emissões de gases de efeito estufa, por meio de transporte coletivo e outras iniciativas. O projeto cria 960 mil empregos, o que gera impacto social positivo pelo emprego e pela renda. Outro impacto positivo é que essa renda gera consumo e, portanto, tende a dinamizar a economia, enquanto a demanda dos equipamentos correspondentes dinamiza o setor de bens de investimento. Assim, temos simultaneamente o impacto ambiental desejado, o avanço social e os efeitos anticíclicos que reduzem os impactos da crise.
Falta alguma coisa? Sim, falta ver por que o governo da Coreia, manejando recursos da população, pode decidir a sua utilização inteligente, enquanto o setor privado, ao se apropriar dos recursos que também são da população, vai brincar no cassino financeiro internacional.
O cerne do problema está no que em economia chamamos de alocação racional de recursos, e nos mecanismos que presidem essa alocação. Há problemas no governo e há problemas no setor privado, mas o essencial é entender o objetivo, que é a aplicação final dos recursos para que o Homo, curiosamente chamado de sapiens, viva um pouco melhor, com razoável equilíbrio no acesso ao bem-estar e, de preferência, sem destruir o planeta.
O desajuste global entre uma economia que se transforma e uma governança ainda ancorada na visão do faroeste econômico herdada do século passado, se materializa nas duas principais tragédias estruturais que temos de enfrentar: a ambiental e a social.
O gráfico 1 constitui um resumo de macrotendências, no período histórico de 1750 até a atualidade. As escalas tiveram de ser compatibilizadas, e algumas das linhas representam processos para os quais temos apenas cifras mais recentes. Mas, no conjunto, o gráfico permite juntar áreas tradicionalmente estudadas separadamente, como demografia, clima, produção de carros, consumo de papel, apropriação da água, liquidação da vida nos mares e outros. A sinergia do processo torna-se óbvia, como se torna óbvia a dimensão dos desafios ambientais: o planeta simplesmente não aguenta o atual vale-tudo econômico.1
Quanto à dimensão da desigualdade no planeta, a melhor representação é a “taça de champanhe” apresentada no gráfico 2. A concentração de renda no planeta está atingindo níveis absolutamente obscenos.2
A imagem da taça de champanhe é extremamente expressiva, pois mostra quem toma que parte do conteúdo, e em geral as pessoas não têm consciência da profundidade do drama. Os 20% mais ricos se apropriam de 82,7% da renda. Como ordem de grandeza, os dois terços mais pobres têm acesso a apenas 6%. Em 1960, os 20% mais ricos se apropriavam de 70 vezes a renda dos 20% mais pobres, em 1989 são 140 vezes. Os dados mais recentes da ONU (2005) mostram apenas agravamento. A concentração de renda é absolutamente escandalosa, e nos obriga a encarar de frente tanto o problema ético, da injustiça e do drama de bilhões de pessoas, como o problema econômico, pois estamos excluindo bilhões de pessoas que poderiam estar não só vivendo melhor, como contribuindo de forma mais ampla com a sua capacidade produtiva.
Sobra dizer que, mesmo sem crise financeira, nenhum desses quesitos era atendido. Não se trata de um bom sistema que por alguma razão entrou em crise. Era, e continua sendo, um sistema burro em termos de objetivos, que além do mais foi pessimamente gerido e entrou em crise. A derrapada de um sistema que nos empurra para impasses planetários não é necessariamente negativa. Nesse sentido, quando se fala na reformulação ou transformação do sistema, trata-se de atender a um triplo objetivo: dinamizar as atividades econômicas numa visão anticíclica, reformular o paradigma energético-produtivo para resgatar um mínimo de controle ambiental, e assegurar de maneira mais justa o pão cotidiano de cada cidadão. E isso exige recursos.
O papel estratégico do Estado
É fundamental entender que a alocação de recursos é feita por intermediários, seja governo, bancos, seguradoras, fundos de pensão, planos de saúde, ou os gigantes planetários que chamamos de investidores institucionais. Toda essa gente recolhe recursos sob diversas justificativas. E a alocação se dará segundo interesses extremamente diversificados.
O governo os aloca segundo um orçamento discutido no Parlamento e aprovado por lei. E tem mais: o governo tem de assegurar a captação dos recursos que vai investir. A política fiscal (Fazenda) e a aplicação (Planejamento) têm de estar casadas na peça orçamentária. No conjunto do planeta, os governos são os maiores gestores de recursos, e quanto mais rico o país, maior é a participação do governo nessa mediação.
A tabela abaixo é interessante, pois mostra que, inversamente, quanto mais pobre o país, mais fraca é a base financeira pública: nos países de baixa renda, a parte do PIB que cabe ao governo central é de 17,7%, elevando-se numa progressão regular à medida que chegamos aos países de alta renda.3 Os países ricos também falam mal do governo, é um esporte predileto da mídia, que curiosamente nunca acha problemas no setor privado, que banca a sua publicidade. Mas não deixam de expandi-lo, até mesmo nos Estados Unidos.
Note-se que se trata, na tabela acima, apenas dos gastos do governo central, os gastos públicos totais são bem mais amplos. “Há uma década, os gastos do governo americano eram de 34,3% do PIB, comparados com 48,2% na zona europeia, uma distância de 14 pontos; em 2010, o gasto americano esperado é de 39,9% do PIB comparado com 47,1%, uma distância de menos de oito pontos percentuais.”4 Lembremos que a cifra equivalente no Brasil é de 36%. Na Suécia, que ninguém vai acusar de ser mal gerida, é de 66%. E são cifras anteriores à intervenção do Estado para salvar os bancos.
Seja qual for a política adotada, portanto, é essencial assegurar a qualidade da aloca
ção de recursos por parte do maior ator, o governo.
Essa correlação rigorosa entre nível de prosperidade do país e participação do setor público não é misteriosa, nem vem de uma conspiração estadista que tanto assusta Yves Gandra Martins: simplesmente o mundo está mudando.
Antigamente, éramos populações rurais dispersas, e as famílias resolviam muito dos seus problemas individualmente, como a água no poço e o lixo no mato. Na cidade generalizam-se os investimentos sociais, pois precisamos de redes de água e esgoto, de guias e sarjetas, de redes escolares, de sistemas de segurança, destino final de resíduos sólidos e assim por diante, evidentemente assegurados com forte presença do setor público.
Há que levar em conta, igualmente, nessa presença crescente em todo o planeta do setor público, a mudança da composição intersetorial das nossas atividades.
Há poucas décadas, o que chamávamos de atividades produtivas eram essencialmente atividades industriais, agrícolas e comerciais. Hoje, passam a ocupar a linha de frente as políticas sociais. Vale lembrar que o maior setor econômico dos Estados Unidos não é a indústria bélica, nem a automobilística, mas a saúde, com 16% do PIB e crescendo. No Brasil, somando a população estudantil, os professores e gestores da área educacional, estamos falando de 60 milhões de pessoas, quase um terço da população do país.
As políticas sociais estão se tornando um fator poderoso de reestruturação social, pelo seu caráter capilar (a saúde tem de chegar a cada pessoa) e a sua intensidade em mão-de-obra. São áreas nas quais, com a exceção dos nichos de alta renda, o setor público tem prioridade evidente, frequentemente articulado com organizações da sociedade civil.
Um terceiro eixo de transformação social é a evolução para a sociedade do conhecimento. Hoje, quase todas as atividades envolvem uma forte incorporação de tecnologia, de conhecimentos dos mais variados tipos, do conjunto do que temos chamado de “intangível” ou “imaterial”.
Quando o essencial do valor de um produto está no conhecimento incorporado, temos de repensar as formas de organização correspondentes. O avanço científico-tecnológico pode se tornar visível no produto que compramos, e a empresa fabricante se apresentará como “inventora”, mas na base está um amplo processo social que envolve pesquisas dos mais diferentes setores, a generalização do acesso à educação, e os sistemas de difusão de informações que elevam a densidade de conhecimento no conjunto da sociedade, com fortíssima participação de recursos públicos em todos os níveis.
A tendência natural é do conhecimento se tornar bem público (creative commons), pela facilidade de disseminação que as tecnologias modernas permitem, e pela compreensão que gradualmente penetra na sociedade de que o conhecimento se multiplica melhor quando se compartilha.
Estes são os megatrends, as macrotendências que transformam a sociedade, e que exigem de nós sistemas de gestão muito mais diversificados, descentralizados e flexíveis. Estamos evoluindo para a sociedade em rede, para sistemas densamente interativos e colaborativos. Alianças e parcerias entre diversos segmentos sociais, envolvendo áreas tanto públicas como privadas, nos diversos níveis de organização territorial, estão se generalizando.
A urbanização leva a uma ampliação acelerada das dinâmicas da gestão local, em que as comunidades se apropriam do seu desenvolvimento. As políticas sociais geram processos participativos, a sociedade do conhecimento nos leva para processos colaborativos em rede.
Não são sonhos. É como funciona a sociedade quando funciona, e aí temos exemplos desde o Kerala, muito pobre, na Índia (pobre, mas com uma mortalidade infantil que é a metade da nossa), até a Suécia, muito rica.
No nosso Democracia econômica fizemos uma revisão da literatura que aponta nesse sentido, envolvendo desde Manuel Castells e Robert Putnam até obras recentes como Wikipédia, de Don Tapscott ou A revolução necessária, de Peter Senge. Um guru da administração como Peter Drucker escreveu um livro que se chama A sociedade pós-capitalista, David Korten, outro, que se chama A sociedade pós-corporativa. Stiglitz já deu o seu recado com os limites evidentes do cassino financeiro. Está se construindo, sim, uma nova visão, no sentido mais amplo. Não corresponde às nossas “opiniões formadas sobre tudo, tudo” de antigamente, pois a realidade não costuma obedecer à academia, mas são caminhos novos, ainda que incipientes. E a crise está colocando os desafios com muito mais força em nossa mesa.
O que está acontecendo na realidade é um choque do futuro generalizado, e tanto a queda do muro de Berlim como a pilantragem irresponsável de Wall Street apenas despertaram, inicialmente na esquerda, depois na direita, a compreensão de que as mudanças precisam ser sistêmicas. O business as usual (BAU), de ambos os lados do espectro político, está saindo de cena.
Resgatando uma categoria de análise sempre útil de Marx, são as relações de produção no sentido amplo que mudam e, com isso, os mecanismos atuais de regulação tornaram-se, em boa parte, obsoletos. Não se trata mais de assegurar apenas que a intermediação financeira funcione. Trata-se de assegurar que os recursos fluam para onde são necessários.
O papel do Estado aparece, assim, como central, até mesmo na dimensão mundial da crise. Dada a extrema fragilidade dos instrumentos planetários de governança, o eixo estratégico de construção dos novos sistemas de regulação passará mais pela articulação de políticas nacionais do que propriamente pela esfera global. Essa visão é claramente formulada por Dani Rodrik, da Universidade Harvard, que sugere “uma arquitetura que respeita a diversidade nacional”, na qual “a responsabilidade de regular a alavancagem, a fixação de níveis de capital, e a supervisão de mercados financeiros repousaria claramente no nível da nação”.5 O Estado aparece, assim, com uma função reforçada no plano do equilíbrio interno, e no plano da con
strução inter-nacões das regras do jogo.
A regulação financeira
O que representam, nessa transformação, as megaestruturas piramidais de financiamento geradas pela cultura especulativa do setor? Esses gigantes que drenam a poupança das populações por meio de juros obscenos, empurram produtos não desejados como “reciprocidades”: inventam níveis intermináveis de derivados de derivativos; complexidades atuariais nas quais o dono do dinheiro, o poupador, fica completamente perdido; sistemas de tarifas que vencem de longe a complexidade de qualquer imposto; a selva financeira onde os próprios autores do sistema se perdem.
Quando falamos em alocação racional de recursos, estamos implicando um sistema de regulação que seja mais democrático no próprio processo decisório. Os grandes intermediários financeiros, em vez de servir bem, passaram a bem se servir. Engoliram, primeiro, as grandes empresas de auditoria através de contratos cruzados de consultoria. Engoliram as instituições de avaliação de risco, ao financiar as suas opiniões. E engoliram os sistemas públicos de regulação, ao financiar as campanhas eleitorais e, portanto, o sistema que aprova as leis que definem as formas de regulação. A autonomia dos bancos centrais virou pretexto para a sua apropriação por interesses privados. Chamou-se a isso, por alguma misteriosa razão, de “mercado”, como se a cartelização, a fraude e a corrupção política tivessem alguma coisa a ver com Adam Smith e o bom padeiro.
Esse sistema está em crise porque é ganancioso demais para se conter, e suficientemente burro para quebrar. Tentar restabelecê-lo, irrigando-o com rios de dinheiro público, não tem muito sentido. Porque até mesmo o próprio sistema imediatamente passou a usar os novos recursos para financiar paraquedas dourados aos seus executivos, e para sentar em cima do dinheiro para reduzir a alavancagem. Não restabelece o financiamento da produção. No caso brasileiro, o aporte de liquidez pela redução do compulsório ou outras medidas levou simplesmente à compra de títulos públicos (A. Khair). A crise não foi um acidente de percurso, a lógica é que é burra.
Temos, assim, quatro desafios básicos na construção de mecanismos minimamente racionais de alocação de recursos:
I) Assegurar a apropriação mais equilibrada da renda no planeta, coisa que faz todo sentido em termos éticos, econômicos e de medida anticrise, ao abrir um novo horizonte de expansão econômica (distribuição de renda, investimentos em infraestrutura social etc).
II) Investir fortemente em tecnologias e medidas necessárias ao reequilíbrio ambiental do planeta, objetivo cuja premência está se tornando cada dia mais evidente como questão de sobrevivência, nossa e das futuras gerações.
III) Assegurar que cada pessoa possa, querendo trabalhar, contribuir simultaneamente para a sua sobrevivência e da sua família e para as inúmeras tarefas necessárias à nossa sobrevivência no planeta, que envolvem desde saneamento básico até rearborização e manutenção urbana.
IV) Aproveitar a conectividade planetária que as novas tecnologias permitem e o fator urbano e a centralidade das políticas sociais e ambientais para gerar sistemas descentralizados e participativos de gestão. Nada como associar aos processos que queremos dinamizar as populações envolvidas nos seus impactos.
Estes são eixos elementares para o funcionamento mais equilibrado do planeta, e a canalização dos recursos deve se dar segundo essas prioridades. É bom lembrar que está na lei. A nossa Constituição, nesse plano, é clara: O sistema financeiro nacional será “estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do país e a servir aos interesses da coletividade” (Art. 192). Quanto à cartelização do setor, “a lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise a dominação dos mercados, a eliminação da concorrência e o aumento arbitrário dos lucros” (Art. 173, 4º). O enquadramento adequado do caos financeiro que impera está na ordem do dia. E os desafios sociais e ambientais são graves demais para ficarmos na cosmética. Os recursos que os bancos manejam são da população, e deve haver um mínimo de coerência no seu uso.
*Ladislau Dowbor é doutor em Ciências Econômicas pela Escola Central de Planejamento e Estatística de Varsóvia, Polônia, e professor titular da PUC-SP. É autor de A reprodução social e Democracia economômica – um passeio pelas teorias (contato http://dowbor.org).