Humor através das sombras
Para ler “Magia do Desejo Suave”, de Lulu Mendes, devemos procurar tateando as palavras na sombra. É onde mora a elegância do autor.
Meu primeiro contato com a escrita de Lulu Mendes veio com a leitura de Coisas que Estragam os Dentes: um conto singelo, de aparência inocente e despretensiosa, mas que no parágrafo seguinte vai jogar o leitor nas profundezas do personagem. A novidade está menos em suas multicamadas e mais em como o autor nos traz de volta à superfície textual, quando já não seremos os mesmos.
Outros textos, publicados em sua antiga newsletter “Fumódromo”, também chamaram minha atenção. Com o tempo, a confiança cresceu e me tornei sua leitora beta, e isso se deu, em grande parte, pela humildade desse fantástico autor em aceitar sugestões.
Não diria que Magia do Desejo Suave (Ed. Minimalismos, 120 págs.) se trata de um livro de contos. Há quem o classifique como um livro de crônicas, mas eu, sinceramente, não sei. Porque os textos de Mendes têm um fio condutor memorialista e até ensaísta que é atemporal.
Cabe mencionar as nuances de autoficção: Mendes é um flâneur do século XXI que, ao observar ou vivenciar uma cena, não se limita a transcrevê-la, mas a internaliza, nos devolvendo seu processo interpretativo.
É verdade que, em alguns trechos, a luz sobre determinada cena é tão ofuscante que pode impactar um leitor mais pudico porque a realidade nua e crua está posta. O que, com frequência, traz para o texto um humor sombrio.
Um exemplo disso é o texto intitulado “Realismo Mágico” (talvez, o meu preferido), em que ele suspende a primeira pessoa presente na maioria das histórias e assume uma posição voyeur ao contar, na terceira pessoa onisciente, o cotidiano banal de dois personagens; que podem ser dois vizinhos, dois amigos ou mesmo diferentes facetas do autor (vai saber).
O texto que nomeia o livro, assim como os demais, também é construído dentro de todas as premissas já destacadas, mas revela, com delicadeza, o mote de todas essas histórias que, no final, são um “presente”.
Mas não se engane: para ler Lulu Mendes, devemos ser um leitor atento, porque, nem sempre, o óbvio é tão óbvio assim. Devemos procurar tateando as palavras na sombra. É onde mora a elegância do autor.
Flávia Medeiros cursou Agronomia em Minas Gerais e, mais tarde, se licenciou em Letras. Tem contos e crônicas publicados em blogs, sites e coletâneas. Atualmente vive em Quatis, uma pequena cidade na região das Agulhas Negras (RJ).