Ideologia do discurso anti-ideologização no Brasil
O que não deveria ser surpresa é que qualquer crítica a qualquer ideologia será, sempre, ideológica, pois a ruptura de um conhecimento e a adoção de um modelo de ideias jamais será neutra
Agentes públicos do Brasil atual têm atacado pelas redes sociais e para redirecionar políticas públicas o que chamam de “ideologização” das universidades, das escolas, de gênero, do meio ambiente, da cultura, da família etc. Mais alto grau da artimanha ideológica de controle social, com o fim de acelerar o domínio social por parte da classe política, minar os lugares e a força do saber popular e reorientar a divisão do trabalho e o comando do território brasileiro.
Porém, o que é “ideologia”? A resposta muito objetiva (mas, fundamentada) a tal pergunta pretende situar o conceito e realocar os argumentos da “ideologização” no Brasil.
A ideologia é uma doutrina, um conjunto de ideias, crenças, conceitos destinados a nos convencer de uma “verdade”, mas, na verdade, serve a algum inconfesso interesse particular de poder, diz Slavoj Zizek. Correspondentemente, Marilena Chauí define que a ideologia significa um conjunto lógico e coerente de representações, de normas que indicam aos membros de uma sociedade o que e como devem pensar, valorizar, sentir e fazer; é um corpo explicativo e prático regulador, cuja função é dar aos membros de uma sociedade dividida em classes uma explicação racional para as diferenças sociais, políticas e culturais, impondo aceitação subalternizada, sem jamais assumir que tais diferenças decorrem da divisão da sociedade em classes que comandam ou são subservientes no âmbito da produção econômica.
A perversidade denunciada por Chauí é que a função da ideologia é ocultar as diferenças sociais, a exploração no trabalho, a dominação política e o preconceito cultural, oferecendo aos membros da sociedade o sentimento da identidade social, fundada em referenciais identificadores como humanidade, liberdade, justiça, igualdade, nação. É certo que tais palavras atingem o mais alto grau de abstração, neste Brasil, devido ao distanciamento entre o sentido concreto de cada um desses termos e a realidade existencial do cidadão nas cidades e no campo.
O que não deveria ser surpresa é que qualquer crítica a qualquer ideologia será, sempre, ideológica, pois a ruptura de um conhecimento e a adoção de um modelo de ideias jamais será neutra, mas constituinte de um novo ou recuperação de um velho aparato de ideias para o controle social ou a dominação política. “Não se escapa do discurso ideológico”, argumenta Gerard Fourez. Há ideologias que, conforme nossas posições éticas e sociopolíticas, queremos rechaçar, e outras que estamos prontos para assumir.
Há uma transferência do lugar original da ideologia, no passado, de instituições como a família, a escola, a Igreja, para ser ditada, no presente, desde os organismos supra-estatais, regentes das leis do mercado, culminando no que M. Chauí trata por ideologia da competência, a qual distingue competentes e incompetentes sociais, ou seja, é proferida por especialistas políticos, organizacionais e cientistas a serviço do mercado.
Por isso, a coerção estatal em favor do mercado é um gesto ideológico por excelência, equiparado à religião (pela difusão de crenças, ritos e doutrinação). Este Estado neoliberal, que é sustentado pelos meios de comunicação, controla a “sociedade do espetáculo” (Guy Debord), de forma que a mídia acrítica corrobora com a ideologia dominante, por induzir nossa percepção da realidade em prol do sistema capitalista retroalimentado pelo consumo dirigido e as necessárias misérias geradas.
A doutrina ideológica de mercado carrega agravantes: ela é parcial, pois desconsidera a totalidade social e, radicalmente enganadora, pois não aborda a real condição dos grupos sociais segregados e de seu imaginário denunciante da situação das classes sociais controladas e usurpadas no trabalho e na vida cotidiana.
Se, para que as mulheres se emancipem, é necessário compreender a estrutura geral do patriarcado; se, para que os grupos sociais objeto de violência histórica (negros e indígenas) se vejam livres da morte, é necessário um conhecimento libertário e de autonomia; se, para que os jovens amadureçam capazes de elaborar pensamento e práxis contra as diferentes formas de opressão, são necessárias escolas e universidades públicas preparadas para lhes dar formação crítica e pesquisa consciente; se…; se…; se…; com conteúdo totalitário, a ideologia que oprime o povo e fere as instituições públicas se abre ao mercado, produz políticas e difunde narrativas destrutoras de qualquer fagulha de resistência ao poder instituído.
Afinal, que ideologia condiciona e está encoberta pelo “Escola sem partido”, o “Future-se”, o “Veto ao gênero”, os “Cortes à arte”, o ataque à Paulo Freire, a aberração da “Terra Plana”, o armamento da população, a privatização de nossos bens, infraestruturas e, no limite, da educação, da saúde e do próprio território?
Não por acaso instaura-se a perseguição aberta e a tentativa de aniquilação dos ideais libertários contidos em correntes filosóficas, científicas, artísticas e culturais. É bom lembrar, o fenômeno ideológico era explicado já no século XIX, quando se dizia que ele se fortalece na difusão, para toda a sociedade, das ideias, dos valores e dos desejos da classe dominante, como se os mesmos fossem universais e, por isso, devem ser aceitos como tais por todas as classes. A crítica à ideologia tem origem em defesa da classe trabalhadora e não aos donos dos meios de produção.
Assim, as representações ideológicas constituem ora o amálgama, ora o conflito dos grupos sociais, pela vontade e artimanhas de poder inerente a todos eles. Há que analisar quais são os conteúdos ideológicos de todos os discursos, pois todos carregam uma representação do mundo e cada qual tem uma, que é influenciada por interesses próprios estabelecidos para condicionar o meio social utilizando-se, muitas vezes, do estigma territorial e da violência, que culminam nas autorizadas chacinas do povo mestiço, dos negros, indígenas e empobrecidos nas periferias urbanas e no campo brasileiros.
Há discursos e práticas ideológicas humanitárias, não totalitárias e não desmoralizantes, e que almejam a totalidade social e a vida sem restrição, ao contrário de outras. Assim, a real diferença entre as ideologias contrapostas está na decisão política de quem pode morrer e de quem deve viver neste país.
Everaldo Batista da Costa é professor doutor do Instituto de Ciências Humanas da Universidade de Brasília – [email protected]
Referências
Chaui, M. A ideologia da competência. Org. André Rocha. Belo Horizonte: Autêntica, 2014.
Debord, G. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
Fourez, G. Introdução à filosofia e à ética das ciências. São Paulo: EdUnesp, 1995.
Zizek, S. Um mapa da ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996.