Impactos da Covid-19 nas periferias
Com o objetivo de contribuir para uma apreensão de aspectos dessa realidade de desigualdades urbanas, este artigo apresenta alguns dados e análises preliminares do abismo que se tornou a vida social em tempos de pandemia
Não é segredo para ninguém que o novo coronavírus evidenciou e potencializou as desigualdades existentes na sociedade brasileira. Desigualdades sociais, econômicas, raciais e urbanas tornaram-se condições para quem morre ou vive ante a pandemia mais grave e aguda do último século, que tem vitimado e está interrompendo milhares de vidas, além da dor, do trauma e da revolta diante dos descasos das diferentes instâncias de governos, da pressão do “mercado” pela “flexibilização” da quarentena e da demora na tomada de medidas de combate a esta nova doença que passou a assombrar a vida dos brasileiros e de toda população mundial.
Desde os primeiros casos confirmados oficialmente, no final de fevereiro, passando pelas primeiras vítimas fatais no começo de março (um porteiro aposentado de São Paulo e uma doméstica no Rio de Janeiro que contraiu a doença dos patrões por não ter sido liberada para a quarentena), os casos e as mortes não param de crescer; confirmando ser esta uma das mais graves pandemias enfrentadas no Brasil: segundo lugar em mortes no mundo. Além de enfrentar a Covid-19, a população precisa lidar com quatro tipos de crises: econômica, política, social e de saúde, ao evidenciar os equívocos das políticas neoliberais de austeridade fiscal desde o golpe parlamentar de 2016. Só para citar as que alteraram a Constituição Federal: aprovação da PEC 95, que congelou investimentos em saúde e educação; a reforma trabalhista de 2017; e aprovação da reforma da previdência em 2019. Essas medidas contribuíram para precarizar de maneira perversa as condições de vida de milhões de trabalhadores no país e a provocar o crescimento do trabalho informal que, na Região Metropolitana de São Paulo (RMSP), ultrapassou os 41% em 2019. Além disso, ampliaram as formas de exploração e os trabalhos intermitentes e temporários, que não garantem proteção trabalhista para milhões de pessoas em tempos de crises agudas, como a situação precária dos entregadores de aplicativos.
No momento em que escrevo este artigo, oficialmente foram confirmados mais de 1 milhão de casos e 52 mil mortes por Covid-19 em todo o país. A situação extrema exige das organizações populares, movimentos sociais e instituições da sociedade reflexão profunda por meio de investigações científicas, mas, sobretudo, de ação política efetiva para mitigar os crescentes óbitos que revelam a necropolítica (política da morte) e reforçam o direito universal à respiração defendido por Achille Mbembe (2020).
Com o objetivo de contribuir para uma apreensão de aspectos dessa realidade de desigualdades urbanas, este artigo apresenta alguns dados e análises preliminares do abismo que se tornou a vida social em tempos de pandemia.
A metrópole de São Paulo tornou-se o epicentro da propagação da pandemia no Brasil, por isso, nossa análise se centrou nesse território. Só para se ter ideia, até 22 de junho, o Boletim Diário Covid-19 da Secretaria Municipal de Saúde registrava 11.727 mortes por Covid no município, num total de 119 mil casos confirmados. Só nos hospitais de campanha do Anhembi e Pacaembu passaram e saíram com vida 4.938 pessoas, registrando apenas um óbito no período. Todavia, a localização central desses hospitais dificulta o deslocamento de quem sai das periferias, ao mesmo tempo em que há uma carência de leitos e UTIs nos extremos da cidade, lugares onde o crescimento é vertiginoso e os óbitos têm ocorrido entre a população trabalhadora de baixa renda, negra e acima de 50 anos. A figura 1, a seguir, mostra dois mapas que explicitam as condições socioespaciais da segregação urbana dessa população preta, pobre e periférica:
Figura 1: População negra 2019 e mortes por Covid – 2020 em São Paulo
Fonte: Mapa Desigualdade 2019, Rede Nossa São Paulo, e Secretaria Municipal de Saúde, 2020.
Os distritos que mais concentram a população negra (preta e parda) localizam-se nas periferias. O primeiro está na periferia sul, o Jardim Ângela, com mais de 60% de negros(as), seguido por Grajaú e Parelheiros; depois três distritos na periferia leste: Lajeado, Cidade Tiradentes e Itaim Paulista, todos esses entre 53% e 56% de negros(as). As mortes e suspeitas de morte por Covid-19 registradas até 18 de junho mostram a incidência de mortalidade nos territórios das periferias: 300 em Sapopemba, na periferia leste; 277 mortes na Brasilândia, periferia norte; 267 no Grajaú, 240 no Jardim Ângela, 237 no Capão Redondo, 235 no Jardim São Luís e 225 na Cidade Ademar, na periferia sul; 218 no Tremembé, 193 em Cidade Tiradentes e 187 em Itaquera, periferia leste; 181 na Freguesia do Ó e 178 em Vila Nova Cachoeirinha, na periferia norte; e 173 no Itaim Paulista,168 em São Mateus, 161 no Lajeado e 153 no Cangaíba, na periferia leste. Na Zona Leste vieram a óbito 4.123 pessoas ao representar 38,4% de toda a cidade, enquanto as mortes na periferia leste representavam 24,4% até essa data.
As desigualdades étnico-raciais estão mediadas pelas socioespaciais, resultado da tríplice segregação socioespacial, étnico-racial e urbana que produziram espaços segregados por classe, raça e território na cidade. As classes podem ser verificadas por aproximação através de indicadores de faixas de renda e vínculos empregatícios levantados pela Pesquisa Origem Destino de 2017 do Metrô de São Paulo. A segregação residencial é uma das fortes expressões da segregação socioespacial e está caracterizada pelas condições de renda familiar domiciliar, condições de moradia (adequada, precária) e localização na cidade (periferia, subúrbio, centro expandido). As desigualdades urbanas são caracterizadas pelas diferentes áreas que concentram maior quantidade de moradias populares; moradias de médio padrão e moradias de alto padrão.
Para uma aproximação das desigualdades urbanas oriundas da segregação residencial por renda domiciliar, a figura 2 mostra dois mapas que comparam essas duas variáveis (renda e moradia), ao permitir relacioná-las também com os mapas da figura 1 (concentração população negra e mortes por Covid). Esses mapas expressam somente uma representação, haja vista que a realidade é complexa, diversa e a precariedade nas condições de vida maior do que as suas possibilidades de apreensão.
Figura 2: Mapas renda domiciliar e proporção de domicílios em favelas
Fonte: Mapa Desigualdade 2012 e 2019, Rede Nossa São Paulo.
Como se vê nos mapas, há maior concentração de domicílios com renda entre 0,5 e 2 salários mínimos nos extremos da cidade, locais onde se concentra o maior número de favela e assentamentos precários. Esses três indicadores apresentados (concentração de população negra, domicílios de baixa renda e favelas/assentamentos precários) mostram três condições de vida da população preta, pobre e periférica em São Paulo e suas precariedades para enfrentar a Covid-19. Tais condições de vida fundamentam a condição socioespacial da classe trabalhadora que se articula a partir de três condições fundamentais para a reprodução dos trabalhadores:
– condições de trabalho e renda, sendo variável e distinta de acordo com os ramos de atividades econômicas e funções exercidas por trabalhadores, ao passo que estratos salariais são determinados pela divisão técnica e social do trabalho, mas também pela ideologia da meritocracia liberal do esforço individual e da valorização de atividades e funções reificadas pelo capital – alto salário de jogadores de futebol, apresentadores de programas sensacionalistas de televisão, entre outras –, enquanto o trabalho doméstico de reprodução, por exemplo, é mal remunerado;
– as condições de moradia, as quais trabalhadoras e trabalhadores enfrentam com pagamento do preço da terra por meio de aluguéis excessivos e financiamentos exorbitantes, ou construindo moradias provisórias e/ou permanentes como puxadinhos em terrenos de parentes ou em ocupações precárias;
– e as condições de deslocamento, definida pelas condições de mobilidade precária e acessibilidade da localização da moradia em contraposição às localizações de emprego.
As condições de trabalho, moradia e deslocamento articulam-se como um enlace contraditório das diferentes condições entre classes sociais desigualmente percebidas na cidade por meio da segregação socioespacial, étnico-racial e urbana que implicam na definição do tempo de deslocamento socialmente determinado entre a residência e o trabalho, resultado das barreiras espaciais para a vida social de trabalhadores(as). Não obstante, a Covid-19 foi propagada por meio do transporte e da circulação das categorias definidas por trabalhadores essenciais, aqueles que não puderam parar para que a outra parte da sociedade pudesse cumprir a quarentena. Em São Paulo, sabe-se que os primeiros distritos com maior concentração de casos de Covid-19 foram os nobres, onde se concentram as melhores condições de vida e reprodução das classes sociais e dos indivíduos que ali habitam, distritos do quadrante sudoeste[1] e centro expandido, doença propagada pelas linhas da Companhia do Metrô, da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM) e linhas de ônibus municipais e intermunicipais.
Nas periferias, as condições precárias de moradia muitas vezes inviabilizam, ao trabalhador que tenha contraído a Covid-19, fazer o isolamento social necessário para não propagar ainda mais a doença. Casas autoconstruídas pequenas, com famílias numerosas e mais de duas pessoas por dormitório mostram uma impossibilidade dada pela desigualdade urbana, resultado das desigualdades sociais entre as diferentes classes. A noção de periferia é ampliada aqui a partir da: 1) distância das moradias em relação aos centros de empregos, universidades e serviços (urbano); 2) condições de trabalho e mobilidade urbana que definem o tempo de deslocamento (cotidiano); e 3) condições dos espaços vividos e percebidos como lugar da reprodução (espaço). Nas periferias e favelas, há entre 35% e 40% das moradias com mais de duas pessoas por quarto, enquanto no Itaim Bibi, distrito nobre, estas não passam de 2%, conforme o mapa a seguir.
Figura 3: Mais de dois moradores por quarto – RMSP – IBGE, 2010.
Fonte: Medida SP e IBGE, 2010.
Não por acaso que outra dificuldade evidenciada nos territórios periféricos, sobretudo em favelas e assentamentos precários, foi das pessoas realizarem a quarentena e o distanciamento social, já que as ruas e praças (quando há praça) tornaram-se a extensão do espaço vivido dentro da moradia: as pessoas vivem relações vicinais na comunidade cotidianamente como extensão dos vínculos familiares, um dos fatores que explicam as ruas e calçadas estarem sempre cheias e com pessoas o tempo todo. Por isso, não se pode culpabilizar por discursos morais esses indivíduos por não cumprirem o distanciamento quando não há condição espacial para realizá-lo em casa.
É no contexto da grave pandemia que os problemas estruturais da sociedade se evidenciam pelas desigualdades urbanas vigentes. Isso mostra os equívocos do governo federal de extinguir o Ministério das Cidades, que visava promover políticas públicas para mitigar tais desigualdades entre moradias e mobilidade urbana de seus habitantes; e o Ministério do Trabalho, que promovia políticas de emprego formal e fiscalizava abusos, entre outras medidas antipopulares.
Problemas estruturais requerem soluções estruturais, ao contrário das políticas neoliberais de austeridade que até então só têm “enxugado o gelo” dos problemas e ocultado suas causas. Com a pandemia da Covid-19, os problemas vieram à tona e até renda emergencial o governo federal – que propunha irrisórios R$ 200 por pessoas e teve que aumentar para R$ 600 e mais R$ 1.200 para mães sozinhas – precisou assumir, após pressão da oposição na Câmara dos Deputados. No município de São Paulo, a não construção de hospitais de campanha, centros de acolhimentos e tendas para atendimentos em favelas nas periferias provocou o crescimento vertiginoso dos casos e mortes da população. Isso evidenciou o descompasso e conflitos entre esferas de governos municipal, estadual e federal, mas também a necropolítica, que vitimado a população em decorrência de conflitos pela condução das políticas em tempo de pandemia e do aumento da violência policial em favelas e periferias, além da flexibilização do distanciamento com abertura do comércio e outras atividades.
O Mapa da Desigualdade de 2017 da Rede Nossa São Paulo já havia evidenciado as diferentes expectativas de vida entre as áreas urbanas da cidade.
Figura 4: Média de Idade ao Morrer 2017 e Beneficiários da Bolsa Família 2019
Fonte: Folha de São Paulo/Mapa da Desigualdade 2017; Prefeitura de São Paulo, SMADS, 2019.
A expectativa de vida na cidade de São Paulo deixou claras as diferentes condições de classes por meio da segregação socioespacial, étnico-racial e urbana. As melhores condições de vida e longevidade estão nos distritos do quadrante sudoeste, centro expandido e em alguns subúrbios. O Jardim Paulista apresentava, em 2017, as melhores condições em relação aos 96 distritos da cidade, com a expectativa média de vida de 79,4 anos, enquanto o Jardim Ângela, na periferia sul, a média era de 55,7 anos – diferença de 24 anos de vida. Esse distrito, em 2019, apresentou a maior concentração de população negra na cidade. Vemos, então, como a segregação incide sobre as condições de vida e reprodução de trabalhadores(as) negros(as) das periferias. Em 2019, o Mapa da Desigualdade da Rede Nossa São Paulo mostrou que, no distrito de Moema, elevou-se a média da expectativa máxima de vida para 80,6 anos, enquanto subiu também no distrito de Cidade Tiradentes a média mínima para 57,3 anos – diferença de 23,3 anos de vida. Enquanto isso, a Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (SMADS) espacializou a distribuição dos beneficiários do Programa Bolsa Família no município ao evidenciar a localização dessa população carente e mostrar que a imensa maioria habita as periferias, exatamente nos distritos com mais casos e mortes por Covid-19 e onde a expectativa de vida não ultrapassa sessenta anos.
Como analisou Flávio Villaça (2012, p.290), populações de diferentes regiões e de diferentes classes sociais de uma cidade têm problemas diferentes e pressionam o Estado de forma duplamente diferente. Em primeiro lugar, com força ou poder político diferentes; e, em segundo lugar, a respeito de problemas diferentes: classes sociais diferentes têm problemas diferentes, têm poderes políticos e econômicos diferentes e formam espaços urbanos diferentes (periferias, subúrbios, centro expandido), tanto os espaços onde moram como aqueles que utilizam. Por isso, destaca o autor, com a segregação urbana dessas diferentes áreas, tudo se passa como se diferentes espaços tivessem problemas diferentes e, por esse motivo, o espaço passa a ser reificado (coisificado) como se ele tivesse poder próprio. Então, a segregação nada mais é do que a estratégia utilizada pelas classes dominantes para otimizar o uso desse poder e controlar o tempo e o espaço da classe trabalhadora.
Com efeito, e à guisa da conclusão, a parcela da população que mais tem sofrido os impactos da Covid é trabalhadora de baixa renda, negra e periférica. Os casos e as mortes atingiram-na em maior proporção, como mostram os indicadores abaixo.
Figura 5: Mortes confirmadas por Covid-19 por idade e renda RMSP
Fonte: DATASUS, Medida SP, Censo IBGE 2010.
Até 18 de maio o total de mortes por Covid-19 na RMSP era de 3.959, sendo 65,9% dessas mortes de trabalhadores com renda até 3 SM (baixa renda), evidenciando mais uma vez que a população mais pobre tem sido a mais atingida. É uma realidade perversa que tem mobilizado movimentos comunitários em Brasilândia, Paraisópolis, Heliópolis, e extremo leste de São Paulo na luta por hospitais de campanha, centros de acolhimento para que moradores de favelas possam realizar o isolamento; além de tendas para testagem em massa da população nessas localidades, haja vista que os casos assintomáticos são altos e difíceis de identificar. Na periferia leste, a Frente Popular de Luta pela Vida, formada a partir de movimentos de cultura, moradia e saúde, passou a atuar com campanhas, manifestações e articulação com as outras periferias para fortalecer as políticas do Sistema Único de Saúde e promover o atendimento da população carente. Com o aumento das redes de solidariedade, por meio de entregas de cestas básicas, marmitas e equipamentos de proteção, essas ações mostram a ausência do Estado e a urgência de auto-organização popular no enfrentamento da pandemia, ao sinalizar a necessidade de reinvenção das lutas e criação de espaços de poder popular com características anticapitalista, antirracista e antifascista. A luta pela vida e contra a necropolítica mostra-se como tendência no ciclo de crise estrutural do capital a partir da pandemia da Covid-19 e exigirá de trabalhadores, população preta, pobre e periférica a construção da unidade para uma nova história e nova memória.
Sandro Barbosa de Oliveira é cientista social, professor e educador popular. Doutorando em Sociologia pela Unicamp, mestre em Ciências Sociais pela Unifesp e bacharel em Ciências Sociais pelo CUFSA. Participa do Grupo Problemática Ambiental e Urbana; do Grupo Trabalho e Classes, ambos da Unicamp; e do Centro de Estudos Periféricos da Unifesp ZL.
Referências bibliográficas
MBEMBE, Achille. “O direito universal à respiração”. In.: N-1 Edições, abril de 2020.
ROLNIK, Raquel; KOWARICK, Lúcio; KOMEKH, Nádia. São Paulo: Crise e mudança. São Paulo: Brasiliense, 1990.
OLIVEIRA, Francisco. Crítica à razão dualista: O ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2003.
VILLAÇA, Flávio. Reflexões sobre as cidades brasileiras. São Paulo: Studio Nobel, 2012.
[1] O quadrante sudoeste de São Paulo, onde se concentra a maior parte da pequena-burguesia, da classe média e da burguesia, é a área onde se concentram oportunidades e benefícios da vida urbana. O quadrante vai desde a Avenida Paulista a Santo Amaro, se estende pelos bairros dos Jardins até o Morumbi, e concentra a maior taxa de motorização e tem o sistema viário mais desenvolvido da cidade, ao reunir a maior concentração de avenidas e vias expressas. (Rolnik, Kowarick & Somekh, 1990: 149).