Implicações nas relações entre Estados Unidos e América Latina
Não há certeza sobre como a administração Trump vai tratar a América Latina – ou qualquer outra região. Mas, se alguém tomar como evangelho obrigatório suas várias declarações de campanha, deve antecipar um período de aprofundamento de conflitos entre os Estados Unidos e seus vizinhos mais próximos na América Latina
Nas Américas e em todos os outros lugares não faltam especulações sobre o que a eleição de Donald J. Trump para presidente dos Estados Unidos vai significar para a nação mais poderosa do mundo e suas relações internacionais. Raramente, ou nunca, uma mudança na política dos Estados Unidos ocorreu com tão pouca certeza sobre as ideias políticas principais e os objetivos do novo presidente e sobre aqueles que o cercam, ou com um interesse maior nas declarações que o presidente eleito fez sobre questões mundiais durante sua campanha.
A eleição de Trump pegou quase todo mundo de surpresa: nos Estados Unidos, incluindo seus pesquisadores e comentaristas políticos, e no resto do mundo, incluindo a América Latina e o Caribe. Dada a longa familiaridade dos latino-americanos com figuras políticas antiestablishment populistas, assim como a experiência com Hillary Clinton e a simpatia que têm por ela, eles em geral não queriam ou não esperavam que Trump ganhasse a eleição.1 Suas reações a essa vitória oscilaram de incerteza a apreensão e preocupação – sentida por governos, líderes políticos, sociedade civil, empresas e cidadãos. O alarme é maior nos países mais próximos dos Estados Unidos, especialmente o México.
A vitória de Trump foi desconcertante para a maioria dos mais bem informados observadores internacionais, incluindo aqueles da América Latina. Essas elites, como seus equivalentes nos Estados Unidos, são em geral bem conectadas umas com as outras, mas não com os interesses e ansiedades daqueles que não têm passaporte, que não tiram férias internacionais e não confiam nos benefícios da globalização. Ao final, parte da esquerda internacional e acadêmica não ficou surpresa de encontrar um descontentamento maior nos Estados Unidos, por causa de suas divisões raciais e de classe. Mas deve estar aturdida com o fato de a revolução política em 2016 não ter sido uma revolta dos afro-americanos, dos hispano-americanos e de mulheres exploradas, e sim dos eleitores homens da classe média branca, muitos deslocados por causa da globalização e da desindustrialização, com uma piora das expectativas e temendo uma mobilidade descendente. Eles se sentem psicologicamente ameaçados pelo crescente sucesso das mulheres e das minorias, com frequência caracterizados por inseguranças e ressentimentos, irritados com mudanças sociais e culturais e, em algumas partes do país, atraídos por movimentos religiosos fundamentalistas.
A desorientação imediata gerada em muitos círculos latino-americanos e internacionais pela campanha altamente heterodoxa, porém bem-sucedida, de Trump levou rapidamente a projeções negativas sobre o que sua administração significará para os Estados Unidos, para as relações internacionais e especialmente para os países do Caribe e da América Latina mais próximos dos Estados Unidos, assim como para suas amplas diásporas naquele país. Jorge G. Castañeda, um dos mais experientes observadores latino-americanos dos Estados Unidos, chamou a eleição de “desastre”. Juan Gabriel Tokatlian, experiente internacionalista argentino, cita o número de declarações de Trump e de seus apoiadores, que significam, em sua opinião, uma nova política de “primazia agressiva” em assuntos mundiais e regionais, com implicações altamente negativas para a segurança internacional, as leis internacionais, a diplomacia multilateral, a proteção dos direitos humanos, a tranquilidade doméstica, a prosperidade no México e em toda parte, a política de combate às drogas e outros temas.
Baseados nas declarações de campanha de Trump, muitos latino-americanos temem o retorno por parte dos Estados Unidos a posturas típicas dos anos 1920 e 1930: políticas comerciais protecionistas e abordagens punitivas da imigração. O maior impacto dessas políticas seria sentido pelos vizinhos mais próximos ao sul dos Estados Unidos, no México e nos países da América Central e do Caribe. Muitos também esperam uma reversão do forte apoio ao processo de paz colombiano oferecido pelo governo Obama; do diálogo com o governo cada vez mais autoritário da Venezuela; da normalização das relações norte-americanas com Cuba; da cooperação com o México num amplo leque de temas; e do trabalho com os países da América Central, especialmente aqueles do Triângulo do Norte (El Salvador, Guatemala e Honduras), sobre desenvolvimento econômico, segurança e reforço das leis. Alguns se baseiam na insistente ênfase de Trump no conceito de “lei e ordem” para antecipar um retorno dos Estados Unidos ao discurso e à prática da guerra às drogas, acompanhado por uma maior militarização das políticas de segurança internas e de uma campanha intensificada contra o terrorismo internacional.
Os poucos líderes e grupos latino-americanos que, por razões políticas internas, ainda favorecem o confronto com os Estados Unidos – especialmente na Venezuela, Bolívia e, talvez, Equador – podem ser receptivos a mais oportunidades de colocar lenha na fogueira, mas também temem uma intensificação das pressões norte-americanas. Aqueles que em outros lugares da América Latina (especialmente na Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, México, Peru e Uruguai) buscam expandir uma cooperação pragmática com Washington sobre mudança climática global, migração internacional, saúde pública, tráfico de drogas, disseminação de armas, investimento em infraestrutura e educação e governança global se preocupam com a possibilidade de que os Estados Unidos não se mostrem inclinados a ajudar nesses assuntos sob o governo de Trump e venham a reverter ganhos já conquistados por esforços conjuntos.
Todas essas são preocupações sérias e não podem ser desprezadas por serem inesperadas e desagradáveis. No entanto, não está claro se todas ou quase todas as mudanças de políticas norte-americanas previstas na América Latina venham de fato a ocorrer, nem que o subcontinente será mais vulnerável ao impacto desse tipo de mudanças ou incapaz de responder a elas de modo eficaz. É muito cedo para concluir que Trump dará início a uma era de conflitos e de destruição nas relações latino-americanas.
Muito dependerá de decisões ainda por serem tomadas – por Trump e sua administração ainda em evolução, com seus múltiplos componentes; pelo Congresso norte-americano, sob o controle dos republicanos, mas sem uma maioria à prova de obstruções no Senado e provavelmente com novas coalizões emergentes sobre temas específicos que cruzam linhas partidárias; por governos estaduais e locais; por tribunais, corporações, sindicatos, organizações da sociedade civil, grupos religiosos e os meios de comunicação nos Estados Unidos; e por organizações transnacionais de diversos tipos, em resposta tanto aos temas previsíveis quanto a contingências até agora desconhecidas. As decisões da administração Trump e seu impacto também estarão sujeitas às ações dos governos latino-americanos e caribenhos e de seus equivalentes em outros lugares do mundo.
É tempo, portanto, de fazer um recuo, evitar uma reação exagerada e pensar calma e estrategicamente sobre o que a administração Trump vai realmente significar, sobre o que vai depender dela e sobre como responder a suas possíveis orientações alternativas. Isso é aconselhável não apenas na América Latina, mas também nos Estados Unidos e em outros lugares no mundo.
Entender e interpretar a eleição de Trump
Apesar de Trump afirmar ter tido um triunfo esmagador, ele não teve uma vitória arrebatadora. Perdeu no voto popular por pelo menos 2,6 milhões, ou 1,9% dos cerca de 137 milhões de votos, embora estivesse concorrendo contra uma candidata que personificava muitas das reservas que os eleitores têm sobre o establishment político: seu senso inadequado de merecimento, falta de integridade, desprezo pelas regras e atividades voltadas para obter vantagens pessoais.2 A margem de vitória de Trump na Pensilvânia, Michigan e Wisconsin – todos antigos bastiões democratas cuja captura lhe valeu os necessários votos no colégio eleitoral – totalizou cerca de 98 mil votos combinados.3 Trump e seus conselheiros políticos precisam estar conscientes de que ganharam uma eleição especialmente acirrada e podem perder muito de sua influência nas eleições de meio de mandato para o Congresso daqui a dois anos se não produzirem resultados.
Trump é o legítimo presidente eleito sob um sistema de colégio eleitoral constitucionalmente estabelecido, que privilegia de forma intencional eleitores rurais de estados pequenos. Ele terá plena autoridade e poder, mas nenhum mandato eleitoral claro e convincente para reverter políticas que atacou durante a campanha, muito menos aquelas que foram apenas tangencialmente mencionadas.
Nas relações exteriores, Trump vai começar sua presidência com uma margem de manobra considerável para projetar e articular políticas amplas da forma como seus principais indicados acharem melhor. Por um processo que pode se tornar mais ou menos deliberado, contencioso ou aleatório, eles vão pesar seus próprios conceitos de interesses nacionais e avaliar compromissos relevantes. A campanha e seu resultado sugerem que eles vão priorizar mais as considerações políticas domésticas do que as internacionais. Tomarão decisões, como é de costume, sob condições de tempo e outros recursos muito limitados e diante de questionamentos contínuos da imprensa, assim como de comentários das mídias sociais. Mas, na maior parte do tempo, não vão estar fortemente atados a compromissos políticos específicos feitos durante a campanha eleitoral nem, ao que parece, a convicções pessoais profundas a respeito de temas internacionais sobre os quais Trump nunca teve até agora necessidade ou ocasião de pensar a respeito.
Não obstante os comentários depreciativos de Trump, não se pode afirmar com certeza que ele vá governar como um racista, misógino, antissemita, antimuçulmano ou antimexicano. Nem que vá se opor à imigração ilegal. O presidente eleito repetidamente usou apelos segregadores profundamente ofensivos para atrair eleitores para sua candidatura, mas suas relações pessoais e de negócios sugerem que estes podem não ser pontos de vista fundamentais; ele se casou com duas imigrantes, contratou várias mulheres para cargos de chefia em suas empresas, deu boas-vindas a um judeu ortodoxo como genro e consultor próximo, e contratou vários trabalhadores ilegais no seu império de negócios.
Como presidente eleito, Trump até agora tem evitado declarações racistas e segregadoras, tendo se distanciado de alguns posicionamentos desse tipo emitidos por seus apoiadores. O perfil de seu anunciado estrategista-chefe da Casa Branca, Stephen Bannon, desperta questões perturbadoras que justificam uma análise contínua e cuidadosa, assim como deve ser feito com atividades e declarações de alguns outros entusiastas de Trump. Pode ser prudente, no entanto, afastar-se do comportamento partidário de campanha de Trump e lidar com ele não como um bufão ou bicho-papão, mas como uma pessoa real, com sérias falhas e tudo o mais, que está se defrontando com enormes responsabilidades e presumivelmente tentará ser bem-sucedido. Pode ser aconselhável conceder a Trump alguma oportunidade de enfrentar o desafio da sua posição, e não se prender de forma irrevogável à sua retórica de campanha se na prática ele desautoriza uma parte dela. Esse é exatamente o espírito das declarações que o presidente Obama e a secretária Clinton fizeram.
Não há evidência convincente de que muitos que votaram em Trump pretendam abraçar o racismo ou posturas repressivas em relação a muçulmanos ou a mexicanos e outros imigrantes. É de fato preocupante que alguns eleitores tenham respondido a esses apelos, como aconteceu antes nos Estados Unidos e em muitos outros países quando o descontentamento gerou uma busca de bodes expiatórios. Se Trump como presidente escolhesse alimentar e estimular essas tendências, ou se aqueles que se veem ameaçados pela eleição dele aumentassem de forma premeditada e incisiva o conflito generalizado, isso seguramente seria perigoso para a sociedade norte-americana e para as relações internacionais dos Estados Unidos.
É prematuro, no entanto, concluir que isso irá acontecer. Nas últimas seis décadas, cresceu na maior parte dos Estados Unidos uma forte oposição ao racismo e ao preconceito contra indivíduos por causa de sua origem étnica ou nacional, ou por sua identidade sexual. Há uma aceitação generalizada da presença e da contribuição dos imigrantes na maior parte dos Estados Unidos, particularmente naquelas regiões do país com décadas de experiência em receber e integrar imigrantes. Esses fatos são demonstrados por dados de pesquisa e pelo comportamento político na Califórnia, no Texas e em outras regiões.
As eleições de 2016 não foram disputadas em terrenos ideológicos – “esquerda” versus “direita” ou “grande governo” versus “orientação do mercado”. Elas foram baseadas, sim, numa percepção difusa, mas incipiente de que os Estados Unidos estão “indo na direção errada” e que eram necessárias mais mudanças do que Hillary Clinton prometeu ou parecia disposta a oferecer. Pesquisas de boca de urna sugerem que a maioria dos eleitores pensava que Clinton era mais qualificada por sua experiência e temperamento para ser presidente, mas que muitos votaram em Trump, no entanto, porque o viram como alguém mais passível de gerar “mudanças”, objetivo considerado mais importante. Os apelos pela “mudança” e pelo retorno à “grandeza”, aspirações vagas e emocionais, foram mais eficazes para ganhar votos do que qualquer proposta política específica. Que programas concretos essas aspirações vão gerar é uma importante incerteza.
Direções e restrições prováveis
A administração Trump ainda está numa fase muito inicial de montagem, com sinais contraditórios sobre que qualidades e orientações o presidente eleito e seus consultores mais próximos querem enfatizar ao escolher seus indicados para pastas e subpastas, se eles serão confirmados pelo Senado e que prioridades políticas estabelecerão.
De acordo com o Washington Post, o presidente Obama, em seus primeiros cem dias de governo, indicou apenas 204 candidatos para os mais de 2 mil cargos abertos a serem preenchidos em sua administração, e destes apenas 64 foram confirmados. A não ser que a paralisia partidária que caracterizou o processo político norte-americano seja milagrosamente quebrada, a administração Trump pode demorar a assumir contornos bem definidos.
Como candidato, Trump criticou veementemente o establishment da política externa bipartidária das últimas décadas. Muitos que pertencem a esses círculos se atacaram de forma agressiva, deixando um grupo relativamente exíguo de candidatos experientes e dignos de crédito para postos de primeiro escalão da segurança nacional e das relações internacionais; muitos deles integram as fileiras de profissionais militares de carreira de alta patente. É plausível que profissionais de carreira em vários departamentos de governo venham a ter influência significativa na elaboração de políticas, como acontece com frequência em novas administrações. Caso isso ocorra no governo Trump, pode ser preciso efetuar mudanças de rumo importantes na política, que serão ainda mais difíceis de realizar do que de costume. Também é possível, no entanto, que profissionais de carreira venham a ser marginalizados por fervorosos indicados políticos que querem marchar no ritmo de Trump; essa dinâmica iria complicar o acompanhamento e a aplicação das políticas.
Muito da política externa da administração Trump vai emergir ao longo do tempo, como normalmente acontece, pela disputa entre os novos indicados; entre as várias e por vezes conflitantes burocracias de carreira; entre o Congresso e suas muitas comissões e grupos; entre governos locais e estaduais, legislaturas e tribunais; e entre diversos grupos de pressão e de interesse. Estes, por seu lado, vão se situar num espectro que vai da Microsoft e do Walmart ao Maldef (o Fundo de Educação e Defesa dos México-Americanos Legalizados); da Câmara de Comércio Americana e de diversas organizações de negócios à central sindical AFL-CIO; da Aipac e da J Street ao lobby palestino. Isso vai incluir grupos religiosos, organizações ambientais e de direitos humanos, organizações pró e contra a imigração e outras ONGs. Haverá pressões e contrapressões dos setores de construção, energia, financeiro e de outras companhias que esperam se beneficiar das posturas de Trump, assim como de empresas que seriam prejudicadas negativamente pelas políticas econômicas e de negócios por ele propostas. As políticas internacionais de Trump também serão moldadas pelas restrições aplicadas por tribunais, internos e internacionais, e por pressões e convites vindos de governos estrangeiros. A orientação e especialmente os detalhes da política externa norte-americana não estão claros.
Mesmo se e quando a política de declarações da administração – seus objetivos articulados e instrumentos escolhidos – emergir, a política colocada em prática poderá vir a ser bem diferente, como já ocorreu muitas vezes no passado. Portanto, o melhor é não partir para conclusões precipitadas. Mas faz sentido pensar em orientações alternativas prováveis e considerar cenários possíveis e qual é a melhor maneira de identificá-los e responder a eles: da pior possibilidade a oportunidades positivas.
As prováveis inclinações da política externa de Trump
Com base nas declarações mais frequentes e vigorosamente articuladas na campanha de Trump, as esperanças e expectativas que estas despertaram entre seus apoiadores e os pontos de vista conhecidos dos primeiros indicados do presidente eleito para os cargos de segurança nacional, parece provável que sua administração será mais nacionalista e unilateral do que foi a de Obama. Se vai existir também uma grande propensão a usar a força militar é algo que precisamos esperar para ver, mas é provável que haja mais cautela do que no primeiro governo de George W. Bush. Trump não é o clássico isolacionista, mas não parece inclinado a promover as instituições e os valores norte-americanos no exterior, nem a se engajar numa “construção de nações” ou na “promoção da democracia”. Ele claramente acredita em fazer acordos, mesmo com concorrentes e adversários, se as condições e os preços forem corretos. Desconfia dos acordos de comércio, mas por outro lado se mostra entusiasmado com os investimentos privados estrangeiros e com alguns tipos de investimento dos Estados Unidos em outros países; as próprias empresas de Trump mostraram o caminho.
A administração Trump parece propensa a fazer uma vigorosa pressão com o intuito de obter acordos mais vantajosos em relação às bases militares norte-americanas no exterior e maiores contribuições dos aliados para custear a defesa mútua, assim como a insistir em sanções mais fortes contra a manipulação internacional da moeda e os subsídios à exportação considerados prejudiciais aos produtores e trabalhadores norte-americanos. Todas essas são propostas razoáveis do ponto de vista norte-americano, e não são novas. É possível que as bravatas de Trump até o momento possam fortalecer o poder de barganha em questões que sempre têm sido, até certo ponto, de toma lá dá cá, contanto que sua administração não leve esses argumentos a extremos.
Durante sua campanha, Trump fez comentários céticos e provocativos sobre as evidências de mudanças climáticas provocadas pelo homem; ameaçou anular o acordo internacionalmente negociado com o Irã que foi concebido para impedir o país de desenvolver a capacidade de produzir armas nucleares; e expressou sua aprovação, e até seu entusiasmo, pelo uso de afogamento simulado e outras técnicas brutais de interrogatório, equivalentes a tortura, a fim de combater o terrorismo. Nas cinco semanas seguintes à sua eleição, no entanto, Trump recuou dessas posições, e pode não estar profundamente comprometido com nenhuma delas, particularmente à medida que ele e sua equipe se concentram nos custos e riscos que elas podem acarretar. É verdade que nem mesmo o presidente eleito sabe o que ele realmente pensa sobre as decisões duras e os compromissos que será convocado a fazer, e seus principais indicados também não podem saber nesse estágio.
É difícil avaliar, portanto, quão firmemente – se é que o fará – uma administração Trump vai aderir à sua vigorosamente declarada rejeição dos acordos de comércio internacionais, um pilar da política externa norte-americana durante administrações de ambos os lados desde a Segunda Guerra Mundial, e se ele vai se manter fiel ao desprezo geral que expressou em relação a organizações multilaterais. Ele falava como se acreditasse que os acordos de comércio atualmente em vigor fossem desvantajosos para os Estados Unidos, se não fraudulentos, e já havia avisado que os Estados Unidos iriam se retirar das negociações para construir o Acordo de Parceria Transpacífica (TPP). Mas é muito possível, ao final, que ele busque melhores condições para a maioria desses acordos, em vez de uma saída real de acordos existentes ou de uma redução no comércio internacional. Ele também vai descobrir, como seus predecessores, que organizações multilaterais e internacionais podem ajudar a fazer avançar os interesses norte-americanos.
Voltando-se especificamente para as relações entre Estados Unidos e América Latina, resta ver se e como ele seguirá sua declaração repetida e vigorosa de que o Nafta (Tratado Norte-Americano de Livre Comércio) é “o pior acordo comercial na história da humanidade”. Se e quando os membros de sua equipe, em consulta com líderes empresariais e sindicais e economistas renomados, estudarem o impacto documentado do Nafta nas exportações, a complexidade das cadeias de produção transfronteiriças e o conteúdo de valor das mercadorias “mexicanas” que são “exportadas” para os Estados Unidos, com frequência por empresas com sede nos Estados Unidos, eles poderão repensar sua abordagem. O Nafta não é a oitava maravilha do mundo, e pode muito bem acontecer que a negociação de algumas de suas disposições venha a ser benéfica para todas as partes envolvidas. Trump e sua equipe talvez olhem no final para formas de ganhar crédito por reformar o Nafta sem interromper seus benefícios substanciais.
Também é difícil prever como a administração Trump vai lidar com as questões espinhosas e tensas da política de imigração, tendo em vista a importância que ele atribuiu a esse assunto desde o primeiro dia de sua campanha. Trump já voltou atrás em suas declarações de campanha sobre deportar 11 milhões de imigrantes ilegais, estabelecendo forças de deportação para levar adiante essa operação, e se distanciou de algumas de suas promessas de construir um muro amplo, alto, impenetrável, intransponível e “bonito” entre os Estados Unidos e o México, que seria pago por este último ou por seus emigrantes. Essas promessas deixaram entusiasmados muitos de seus apoiadores e alimentaram os medos de muitos imigrantes e de países que os enviavam. As declarações mais recentes de Trump enfatizam a deportação daqueles imigrantes que colecionaram fichas criminais nos Estados Unidos (exatamente a política da administração Obama), fortalecendo cercas, iluminação e outras proteções de fronteiras que foram construídas ao longo dos últimos vinte anos e cooperando com o México para administrar melhor a fronteira comum. Se estas se tornassem posições de negociação abertas, elas poderiam levar a uma negociação frutífera e benéfica com o México e os países da América Central e do Caribe, garantindo ao mesmo tempo aos setores descontentes nos Estados Unidos que algo está sendo feito para estabelecer um controle norte-americano em suas próprias fronteiras. No entanto, se campanhas importantes e hostis contra residentes ilegais forem levadas adiante, será possível esperar divisões amargas; possível violência; resistência legal, burocrática e política em múltiplos níveis da sociedade e da política norte-americana; e fortes recriminações latino-americanas.
Alguma combinação de dureza retórica e simbólica e acomodação pragmática ao lidar com a imigração pode emergir, coerente com um padrão recorrente de muitas décadas, embora as esperanças, medos e ressentimentos que Trump já havia despertado possam igualmente criar mais dificuldades. Além disso, a indicação feita por Trump do senador Jeff Sessions para procurador-geral traz para a aplicação das leis nos Estados Unidos um duro defensor da remoção de imigrantes ilegais, e algumas pessoas que foram mencionadas como possíveis indicadas para a chefia da Agência da Alfândega e Proteção de Fronteiras têm pontos de vista semelhantes. Uma cooperação operacional ainda mais forte entre a inteligência, a polícia e forças de segurança norte-americanas e seus equivalentes na América Latina pode acontecer, com riscos previsíveis para a proteção dos direitos humanos no México, na América Central e Caribe e nos Estados Unidos.
Tal como no passado, a forma exata como esses impulsos contraditórios poderão ser conciliados na prática – se o forem – será provavelmente moldada em parte pelo ciclo de negócios, mercados e necessidades de trabalho, negociações internacionais, negociatas do Congresso, ações e recusas à ação por parte do Estado e das autoridades locais, pressões de grupos contrários e favoráveis aos imigrantes, decisões de tribunais e evolução da opinião pública. É muito cedo para ter certeza, mas deverá haver espaço para novos programas de trabalhadores temporários, para programas mais ordenados de unificação de famílias e, com o tempo, depois que temores infundados de fluxos de imigração em massa diminuírem, para um plano destinado a regularizar o status de residentes ilegais e removê-los das sombras que convidam à exploração e impedem a integração.
Se Trump tivesse sido eleito alguns anos antes, sua ascensão e a do Partido Republicano teriam quase certamente levado a um retorno das posturas intervencionistas norte-americanas contra o que alguns círculos conservadores percebem como inaceitáveis movimentos de esquerda, sejam governos ou movimentos sociais e políticos. Nas circunstâncias atuais, no entanto, o presidente eleito pode bem vir a perceber que o retorno a esse tipo de políticas iria despertar desnecessariamente uma ampla e custosa antipatia regional em relação aos Estados Unidos. A América Latina é a única região do mundo onde o terrorismo internacional é virtualmente ausente e de onde nenhum ataque aos cidadãos ou instalações dos Estados Unidos foi lançado. Alguns políticos norte-americanos aqui e ali ainda podem fazer lobby para que Washington os apoie em suas lutas internas, mas o declínio de velhas batalhas ideológicas deve tornar mais difícil para eles ganharem força.
Aqueles que estão pressionando a administração Trump a deter ou reverter a normalização das relações com Cuba vão descobrir que várias agências de governo, organizações privadas e grupos de negócios em agricultura, turismo, serviços farmacêuticos e financeiros, ONGs, a maioria da atual comunidade cubano-americana nos Estados Unidos e muitos outros cidadãos querem que o processo de normalização continue, talvez agora facilitado pela morte de Fidel Castro. As perspectivas de garantir os direitos políticos e humanos em Cuba e a reintegração desse país à sua vizinhança norte-americana devem melhorar à medida que o processo de abertura e engajamento continue, e sem dúvida voltariam atrás se houvesse um retorno a uma política punitiva de negação. A administração Trump vai provavelmente se abrir para esse ponto de vista, em especial se muitos amigos latino-americanos dos Estados Unidos a reforçarem. E, ainda que Trump possa se ver tentado a incomodar Cuba, uma forte oposição regional pode aumentar substancialmente o custo para os Estados Unidos de uma regressão tão evitável. De forma semelhante, apesar do intenso lobby de alguns círculos, a administração Trump seria pouco aconselhada a reverter o acordo de paz do governo colombiano com as Farc, ou a tentar forçar uma queda precipitada do governo chavista na Venezuela. As tendências nos três países já têm se movido em uma direção favorável aos interesses norte-americanos.
Como os latino-americanos podem se aproximar
Em resumo, não há certeza sobre como a administração Trump vai tratar a América Latina – ou qualquer outra região. Se alguém tomasse como evangelho obrigatório suas várias declarações de campanha sobre comércio, Nafta, imigração, deportação, o muro na fronteira do sul, mudança climática global, Cuba e outros assuntos, deveria antecipar um período de aprofundamento de conflitos entre os Estados Unidos e seus vizinhos mais próximos na América Latina. Haveria provavelmente uma crescente solidariedade política e prática na América do Sul entre esses países e um crescente sentimento de rejeição aos Estados Unidos por toda a região. Essas tendências poderiam ser combinadas com alguns esforços pragmáticos, sobretudo pelos países do Cone Sul, para desenvolver acomodações com Washington em temas bilaterais ou sub-regionais, mas as políticas domésticas nesses países tornariam tais esforços mais difíceis de colocar em prática e de sustentar diante de ressentimentos contra os Estados Unidos. Haveria também uma ênfase ainda mais forte na maior parte da América Latina no fortalecimento das relações com outras partes do mundo, e correspondentemente mais esforços assertivos por parte da China e talvez de outros poderes para deslocar as relações americanas e a influência nas Américas. Movimentos nacionalistas latino-americanos e líderes tanto da esquerda tradicional como da direita nacionalista em países como Argentina, Brasil e México também seriam fortalecidos, ameaçando uma reversão do ambiente cooperativo que prevalecia antes da eleição de Trump.
O cenário de uma presença norte-americana que se impõe fortemente no México e nos países circunvizinhos do Caribe, e um tratamento hostil constante conferido aos mexicanos, latino-americanos e caribenhos não são inevitáveis, mas também não podem ser excluídos. Os latino-americanos precisam se planejar para essa contingência por meio de consultas regionais e de cooperação, por meio de atividades consulares melhoradas, assim como de uma maior diversificação de seus relacionamentos internacionais e de uma cooperação diligente e criativa com organizações da sociedade civil nos Estados Unidos. Vale a pena estar preparado para os cenários mais drásticos, mas não produzir profecias autorrealizáveis de desgraça.
É igualmente importante, no entanto, preparar-se para uma eventualidade mais provável: uma administração Trump que não terá uma visão clara das relações do hemisfério ocidental; que irá de encontro à cooperação internacional em matéria de mudanças climáticas globais e outros temas internacionais relevantes; que não será vista como uma liderança presumida em acordos internacionais para expandir o comércio, facilitar a migração ordenada, combater a mudança climática global ou responder aos custos de globalização, mas que não estará empenhada em causar danos nesses e em outros campos. A administração Trump provavelmente não estará disposta a construir parcerias pan-americanas ou sub-regionais nem para investir nelas sem estar convencida de vantagens claras e concretas para os Estados Unidos, mas pode estar aberta para iniciativas latino-americanas que sejam benéficas para o país.
Talvez o maior desafio para a América Latina nos anos Trump – e mesmo para os próprios Estados Unidos – pode vir daquilo que Mario Vargas Llosa chamou de mistura no novo presidente norte-americano de demagogia e ignorância, combinada com sua personalidade e estilo.4 A demagogia de Trump parece refletir uma disposição para ignorar ou mesmo inventar fatos por conveniência política ou ganho pessoal. Sua aparente ignorância demonstra uma má vontade ou falta de habilidade para se concentrar o suficiente para aprender, traço que ele pode facilmente superar, mas que poderia ser contornado por um gabinete e uma equipe fortes. Os Estados Unidos estiveram notavelmente livres de presidentes demagógicos; a ignorância, no entanto, contribuiu para muitos desastres norte-americanos, da Baía dos Porcos à invasão do Iraque. Ninguém deseja esse tipo de desastre para o presidente Trump, mas a possibilidade de dano significativo não pode ser negada. Contingências não previstas poderiam causar sérias crises e prejuízos.
Governos latino-americanos, organizações regionais e sub-regionais, think tanks, organizações de direitos humanos e governamentais, associações profissionais e outras ONGs deveriam estar se preparando para lidar com muitas contingências diferentes. Eles deveriam estar formulando ideias e propostas bilaterais, sub-regionais e para toda a região sobre como cooperar com os Estados Unidos para administrar problemas partilhados e moldar oportunidades mútuas, e também como proceder sem os Estados Unidos ou mesmo contra eles se isso se tornar necessário. Deveriam desenvolver propostas sobre questões específicas que a administração Trump não poderia razoavelmente recusar, ou que ganham a atenção dessa administração por apresentarem com credibilidade os custos específicos de políticas norte-americanas passíveis de objeção. Deveriam reunir informações baseadas em fatos sobre os custos de riscos de abordagens míopes e não cooperativas de questões regionais e internacionais, não apenas para a América Latina, mas para os próprios Estados Unidos, e deveriam também criar instrumentos adequados para responder, da forma esperada, a políticas norte-americanas indesejáveis.
Os indivíduos e as organizações latino-americanos deveriam estar trabalhando para persuadir o governo norte-americano e especialmente os círculos concêntricos de influenciadores de políticas que enquadram debates em Washington sobre as vantagens para os Estados Unidos de se relacionar com a América Latina com base em oportunidades para cooperação em objetivos e interesses compartilhados. Deveriam trabalhar para intensificar seus relacionamentos com as complexas redes de indivíduos e centros de influência norte-americanos. Deveriam aproveitar a oportunidade para investir em suas relações com seus homólogos na Europa, África e Ásia. E deveriam fortalecer suas organizações regionais e sub-regionais pela promoção de capacidades institucionais que poderiam tornar organizações como essas mais significativas e eficazes na determinação de metas e na resolução de problemas.
Governos e organizações regionais latino-americanos mostraram que podem ter considerável influência no mundo atual. O mesmo vale para as corporações latino-americanas, universidades, think tanks, associações profissionais e ONGs. O advento da administração Trump nos Estados Unidos e os desafios que ela representa vão fornecer oportunidades para que essa panóplia de atores possa realizar maiores contribuições para o progresso nacional, regional e global e evitar danos desnecessários. Fazer isso poderá com o tempo fornecer uma base sólida e sustentável para parcerias autênticas do hemisfério ocidental que há tanto tempo têm sido evasivas.
*Abraham F. Lowenthal é professor emérito da University of Southern California e foi diretor fundador do Wilson Center’s Latin American Program e do Inter-American Dialogue.
{Le Monde Diplomatique Brasil – edição 114 – janeiro de 2017}