Índia, avanços e limites - Le Monde Diplomatique

PAÍSES-’BALEIAS’

Índia, avanços e limites

por Jyotsna Saksena
1 de novembro de 2005
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Um ano e meio após voltar ao poder, o Partido do Congresso mantém a política econômica, pouco avança nos programas sociais e vacila na cena internacional. Mas mantém o apoio da esquerda, por sua ação contra o fundamentalismo hindu e a xenofobiaJyotsna Saksena

Diante dos vivos protestos dos partidos de esquerda que sustentam – sem dele participar – o governo de coalizão minoritário dirigido pelo Partido do Congresso, no poder desde maio de 20041, o primeiro-ministro indiano, Manmohan Singh, finalmente suspendeu a venda de 10% das ações do grupo industrial estatal Bharat Heavy Electricals Corporation (Bhel). Ele também anunciou à Frente de Esquerda que renunciava à abertura do capital das empresas públicas muito eficientes – as famosas “Navratnas” – para financiar as medidas sociais. O governo revia, assim, uma opção que representava um ataque fundamental aos compromissos do Programa Nacional Mínimo Comum (NCMP), adotado pela coalizão governamental (a Aliança Progressista Unida, APU), e a Frente de Esquerda. Em junho de 2005, após o anúncio desses projetos de privatização, os partidos de esquerda haviam deixado o comitê de coordenação estabelecido entre os signatários do programa. Voltaram a ele em outubro passado.

Esse programa enuncia seis grandes princípios: combater todos os fundamentalismos e promover a harmonia social através da afirmação do caráter laico do Estado indiano; assegurar uma taxa de crescimento anual de, no mínimo, 7 a 8%, com o objetivo de gerar emprego; melhorar as condições de vida do mundo rural e dos trabalhadores, especialmente dos setores informais; garantir plenamente os direitos das mulheres; assegurar a igualdade de oportunidades em relação a educação e emprego para as “castas baixas”, as “outras classes baixas”, as tribos e as minorias religiosas; permitir o dinamismo de todas as forças produtivas do país e a boa governabilidade. Segue-se uma longa série de medidas detalhadas, formando a ossatura de um programa de governo.

Crescimento e pobreza

O poder beneficia-se de um crescimento de 6,9%, apesar da alta do petróleo e do tsunami. Ele confirma os 250 bilhões de rúpias suplementares (em torno de 4,6 bilhões de euros) consagrados ao cumprimento das promessas eleitorais, o aumento de 47% (em relação ao orçamento inicial de 2004-2005) das dotações para o desenvolvimento rural e de 49% das destinadas ao setor social. Quando do primeiro aniversário de sua chegada ao poder, Singh anunciou um “projeto gigante para o desenvolvimento rural” estimado em 32 bilhões de euros. Seus críticos deploram a insuficiência das dotações, tanto em relação às necessidades quanto em relação aos objetivos fixados no NCMP.

A dificuldade de financiamento afeta outros terrenos considerados prioritários. É o caso da saúde e educação básica

O exemplo mais emblemático dessas dificuldades diz respeito ao compromisso de garantir um mínimo de 100 dias de trabalho por ano a cada família rural. Essa medida-chave, chamada de Employment Guaranty Act (EGA), deveria ser aplicada a partir dos primeiros cem dias de governo. Ela só foi votada em 24 de agosto de 2005, um ano após a data limite. Mas, acima de tudo, sua trajetória é reveladora das tensões que reinam no seio da maioria. As disposições iniciais do projeto revelavam-se muito distantes das recomendações do Conselho Consultivo Nacional criado para esse efeito: tal direito ao trabalho seria extensivo apenas às famílias que vivem abaixo da linha da pobreza; o salário mínimo não seria definido; o governo poderia anular o programa em qualquer zona, segundo sua própria vontade; não haveria nenhuma obrigação de estender o programa, inicialmente aplicável a 150 entre 587 distritos?

Entretanto, mesmo esse projeto atenuado, apresentado em dezembro de 2004 ao Parlamento, não chegou a ultrapassar a fase de exame pela comissão permanente da Assembléia Nacional. Foi preciso esperar uma grande manifestação popular, em maio de 20052, para que a comissão para o desenvolvimento rural decidisse recomendar uma modificação positiva do projeto governamental.

A nova lei garante, a cada lar rural, uma garantia de rendimento irreversível; prevê um salário mínimo de 60 rúpias (1,11 euros) por dia3; e obriga o governo a estender esse programa a todo o conjunto da Índia rural em 5 anos. Em princípio, 30% dos beneficiários deveriam ser mulheres. A gestão do programa é confiada às instâncias eleitas localmente. No entanto, a lei não observa a recomendação da comissão, de estender a garantia de rendimento a cada indivíduo: ela é assegurada a apenas uma pessoa por unidade familiar. É verdade que a medida não figurava no programa comum?

Social em segundo plano

A dificuldade de financiamento afeta outros terrenos considerados prioritários. É o caso da saúde e educação básica

Além disso, o problema do financiamento continua, até o momento, não resolvido: os especialistas estimam que seriam necessários entre 4,65 e 8,36 bilhões de euros por ano. Ora, em 2004-2005, o programa “Alimentação para o Trabalho” (Food for work), precursor do EGA, tinha obtido 334,4 milhões de euros, cifra que chegou a 1 bilhão no período 2005-20064. No total, as dotações para o emprego rural devem atingir 1,67 bilhão de euros em 2005-2006 (contra 1 bilhão no ano precedente), longe das somas necessárias para o EGA.

A dificuldade de financiamento afeta outros terrenos considerados prioritários. É o caso da saúde, cujo orçamento chega a 1,89 bilhão de euros este ano (contra 1,56 bilhão no ano passado). Ora, o NCMP prevê que, até o fim do mandato, a despesa nesse setor deveria atingir entre 2% e 3% do produto interno bruto (PIB), o que deveria se traduzir por uma soma compreendida entre 13 bilhões e 19,5 bilhões de euros por ano, se nos basearmos nas previsões do PIB que constam na lei de finanças de 2005-2006. As dotações para a educação primária – mais de 1,44 bilhões de euros, aos quais é necessário acrescentar 613 milhões para as cantinas escolares – estão também muito distantes do objetivo fixado de 6% do PIB até o fim do mandato.

Mesmo muito insuficientes, essas dotações só puderam ser liberadas ao preço de um passe de mágica. No contexto da orientação fortemente liberal de sua política econômica e fiscal, o governo pretende baixar ao mesmo tempo os impostos e o déficit. O orçamento prevê uma redução do tributo pago pelas empresas de 35% para 30%; exonera da taxa sobre os serviços um grande número de fornecedores (os que têm um volume de negócios abaixo de 7.430 euros por ano); reduz o imposto sobre os rendimentos, embora apenas os altos rendimentos sejam sujeitos ao pagamento de tributos5.

Menos impostos, mais limites

A “lei sobre a responsabilidade fiscal e a gestão orçamentária”, votada no governo anterior e posta em prática em 2004, impõe suas próprias pressões

Ele também baixa o imposto sobre valor agregado [semelhante ao ICMS] sobre produtos considerados de luxo (aparelhos de ar condicionado, fibras de poliéster, pneus?). A alíquota caiu de 24% para 16%. Reduziram-se os impostos aduaneiros sobre diversos bens de produção (a alíquota máxima caiu de 20% para 15%, e, para certos produtos, de 15% para 10%, ou até mesmo 5%)6. No entanto a participação de todas as receitas (impostos e taxas) sobre PIB é ridiculamente fraca: 9,8%. A “lei sobre a responsabilidade fiscal e a gestão orçamentária”, votada justamente antes da queda do governo dirigido pelo Partido Bharatiya Janata (BJP) e posta em prática desde julho de 2004 pelo APU, impõe suas próprias pressões, prevendo a eliminação do déficit orçamentário daqui até o ano 2008-2009, e a redução do déficit fiscal a menos de 3% do PIB. Como financiar, mesmo parcialmente, as promessas do NCMP, mantendo acordos de deixar à vontade as empresas, os focos fiscais de rendimentos elevados, e respeitando escrupulosamente a redução dos déficits?

O “passe de mágica” consiste em mascarar os déficits, utilizando muitas técnicas. Classicamente, o governo faz uma projeção extremamente otimista das receitas esperadas, tencionando ajustar as despesas ao fim do exercício orçamentário. Quem pode garantir que os projetos do NMCP não serão afetados?

O governo tem também recursos nos meios extra-orçamentários. Uma parte das despesas é transferida para empresas públicas. Assim a Food Corporation of India (FCI) deve contribuir para o programa “Alimentação para o Trabalho”, fornecendo 50 milhões de toneladas de alimentos, equivalentes a 930,17 milhões de euros (o que fez o ministro das Finanças dizer que as dotações para esse programa são de fato 1,93 bilhão de euros, e não o 1 bilhão atribuído no orçamento). Ora, essa transferência agrava o déficit próprio da FCI, até o presente coberto por uma subvenção. Nada assegura que, no futuro, ela não será pura e simplesmente desmantelada, em nome do credo liberal, com a redução das subvenções. Como destaca o economista Prabhat Patnaik: “Aumentar o déficit fiscal: do ponto de vista das empresas públicas não há problema, na condição de que haja paralelamente uma política de defesa delas. Mas nós não temos nenhuma garantia de que isso será feito7.”

Enfim, uma parte do déficit é transferida para os Estados. Anteriormente, era o Estado central que disponibilizava empréstimos para financiar seus planos. Agora, eles terão de fazer empréstimos diretamente com o mercado. De sua capacidade de se financiar dependerão os investimentos em muitas áreas, entre os quais o setor agrícola, em grande parte competência desses estados provinciais. Percebe-se o alcance da mudança quando se sabe que as dotações para a agricultura, no orçamento central, são quase insignificantes, apesar de seu grande aumento: 1,15 bilhão de euros para este ano, contra 856,6 milhões no ano passado.
Este cipoal aritmético poderia eventualmente dar a ilusão de que o governo foi bem- sucedido, ao se lançar na trajetória de um “crescimento eqüitativo”, conduzindo as reformas liberais e – ao menos parcialmente – os compromissos do NCMP. Mas se trata de ilusão.

Sob crítica da esquerda

O secretário-geral do Partido Comunista da Índia (marxista) considera que a continuidade da linha política atual poderia levar a Frente de Esquerda a votar contra o primeiro-ministro

As divergências entre o governo e seus críticos antiliberais se aprofundam. Elas dizem respeito às privatizações das empresas públicas eficientes, que acabam de sofrer um primeiro golpe contrário, mas também aos investimentos estrangeiros diretos. O relatório econômico apresentado ao Parlamento pelo ministro das Finanças recomenda reforçar as medidas de incentivo a tais investimentos. A esquerda não foi hostil a priori, mas quer que as inversões externas sejam estritamente reguladas, a fim de aumentar as capacidades produtivas, gerar emprego e contribuir para o progresso tecnológico. Não é o que acontece quando o teto para investimentos estrangeiros é elevado em setores como o de seguros (de 26% a 49%) e bancos (uma lei está sendo preparada). As críticas são mais violentas contra os projetos de flexibilização do mercado de trabalho, quando já não existe nenhuma seguridade mínima garantida.

Em se tratando da agricultura, cuja taxa de crescimento foi de apenas 1,1% – contra mais de 8% para a indústria, no ano passado – o relatório destaca a desregulação do mercado e preconiza iniciar a transição de uma agricultura subvencionada para uma “agricultura internacionalmente competitiva”, conforme a agenda da Organização Mundial do Comércio (OMC).

Ao desacordo sobre essas orientações acrescenta-se o descontentamento ligado ao atraso na aplicação de medidas emblemáticas, que não necessitam de esforço financeiro, mas de uma real vontade política: garantir 33% de representação feminina no Parlamento e nas Assembléias dos estados; estender ao setor privado a política de ação positiva em relação ao emprego em favor das castas desfavorecidas; legislar sobre o direito das tribos de viver nas florestas? Em contraste com essas tergiversações, a alteração sobre o direito das patentes farmacêuticas foi decidida por decreto, em dezembro de 2004, antes de se votar a lei, em março de 2005.

A falta de alternativas

A esquerda não quer derrubar o governo. Falta uma alternativa antiliberal, e os avanços da UPA, no terreno das liberdades públicas e afirmação do caráter laico do Estado, são marcantes

O primeiro-ministro Singh considera necessário obter um consenso em torno de sua política. A ausência de tal consenso, notadamente no que diz respeito à desregulamentação do mercado de trabalho (para retirar a “rigidez extrema”, segundo sua expressão), retardaria as reformas, freando assim o crescimento e os projetos de desenvolvimento8. O secretário-geral do Partido Comunista da Índia (marxista), Prakash Karat, considera, ao contrário, que a continuidade da linha política atual poderia levar a Frente de Esquerda a votar contra o governo. Esse poderia ser o caso para a privatização dos fundos de Previdência ou a modificação da lei sobre a regulamentação bancária, pretendidas pelo governo9.

Entretanto, o sinal de alarme não equivale a uma vontade de derrubar o governo. Primeiro, porque a ausência de uma terceira força, capaz de oferecer uma verdadeira alternativa antiliberal, favoreceria o BJP, de direita. Depois, porque o balanço da UPA no terreno das liberdades públicas e da afirmação do caráter laico do Estado é incontestavelmente positivo, como o testemunham a revogação da lei para a prevenção do terrorismo (POTA) e a retirada dos manuais escolares fortemente embebidos de ideologia nacionalista hindu.
Além do mais, a política exterior do governo, no que diz respeito ao Paquistão e à China, desperta aprovação – mesmo que, recentemente, graves tensões tenham surgido, em torno do voto contra o Irã, na Agência Internacional de Energia Atômica, em 24 de setembro passado (ver dossiê nesta edição). A Frente de Esquerda considera esse voto como um abandono da política externa da Índia independente, sob pressão norte-americana. Enfim, e sobretudo, a aplicação mesmo parcial e insuficiente do NCMP, representa um progresso em relação à política seguida durante o mandato anterior.

(Trad.: Carolina Massuia de Paula)

1 – Das 543 cadeiras, a coalizão dirigida pelo Partido do Congresso obtém 217 cadeiras, entre as quais 145 para o partido em si; a do BJP tem 185, sendo 138 para este último; a Frente de Esquerda 59, sendo 43 para o Partido Comunista da Índia-Marxista, 43 para o Partido Comunista da Índia, 3 para o Partido Revolucionário Socialista, e 3 para o All India Forward Bloc; os outros partidos totalizam 78 cadeiras, e os candidatos independentes, 4.

2 – Mais de 150 organizações cidadãs, partidos e sindicatos de esquerda organizaram uma “viagem pelo direito ao trabalho” através do país.

3 – O salário mínimo varia em função dos estados. Mas ele não pode ser menor que 60 rúpias por dia.

4 – Todos os números de orçamento são tirados do discurso de Chidambaram na Assembléia Nacional, em 28 de fevereiro de 2005, do site do ministério: finmin.nic.in. Ler também Jayati GHOSH, “Promise and performance”, Frontline, Chennai, vol. 22, n°06, março 12-25.

5 – Somente os rendimentos s



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