Ingerência russa, obsessão e paranoia
Uma ingerência de Moscou poderia alterar o resultado da última eleição norte-americana? A hipótese, que obceca a imprensa, é tratada com tanta paixão quanto uma guerra. Do Brexit ao referendo catalão, agora cada votação relevante comporta sua própria versão de uma pilantragem russa. Quanto às provas, bom, é preciso aguardar mais um pouco…
Desde a eleição presidencial, não passa um dia sem que a questão da ingerência de Moscou nos assuntos internos norte-americanos e do conluio entre os círculos de Donald Trump e Vladimir Putin agite a classe política e a grande mídia. Nos Estados Unidos e em outros lugares. Os responsáveis pela inteligência norte-americana sustentam que o governo russo pirateou os e-mails e manipulou as redes sociais com a intenção de favorecer a vitória de Trump. O relatório do diretor da inteligência nacional (DNI) de janeiro de 2017, amplamente citado, contém, é certo, “expressões de impacto e a avaliação mais detalhada possível da peça de acusação”, mas não fornece a “menor prova”, como ressalta a revista mensal The Atlantic (jan. 2017). Já o New York Times (6 jan. 2017) espanta-se com “a ausência de elementos capazes de sustentar as acusações dos serviços de inteligência”. E observa que a mensagem divulgada por estes últimos “se resume a um ‘acreditem em nós’” – constatação que ninguém ousou desmentir depois.
O mesmo se pode dizer da suspeita de conluio. Os investigadores reconheceram, em maio, que não conseguiram “constatar nenhum delito ou ligações que indiquem conluio entre a campanha eleitoral e a Rússia nos contatos examinados até agora”.1 Além disso, mais recentemente, personalidades hostis a Trump – por exemplo, o ex-DNI James Clapper, o ex-diretor da CIA Michael Morrell e a senadora democrata Dianne Feinstein – reforçaram essa conclusão.
Levar em consideração essa falta de provas permite compreender melhor aquilo que as substitui. Os autores de Shattered, trabalho de pesquisa consagrado aos bastidores da campanha de Hillary Clinton, relatam que, “nos dias seguintes à eleição, os porta-vozes do Partido Democrata se recusaram a assumir responsabilidade pelo fracasso de sua candidatura”. Segundo uma fonte citada na obra, a estratégia para o sucesso consistiu em “garantir que os elementos de linguagem apropriados seriam corretamente difundidos”. Assim, apenas 24 horas após o reconhecimento da derrota, vários responsáveis do alto escalão “se reuniram para entrar em acordo quanto à ideia de que alguma coisa estava errada naquela eleição”. Os autores acrescentam que a tese de uma ingerência russa já era o fator central do dispositivo.2 De resto, a candidata democrata consagrou a essa ideia um capítulo de cinquenta páginas em seu último livro, publicado em setembro deste ano.3
Thriller de espionagem
A insistência em Moscou não joga somente a favor do campo de Clinton. Coincide também com os interesses da fração do aparelho estatal que rejeita a perspectiva, há muito defendida por Trump, de uma melhoria nas relações entre Moscou e Washington, e que, para lhe pôr obstáculo, acena com os espantalhos da Guerra Fria.4 As investigações sem fim e as fugas anônimas constituem igualmente um meio de refrear as disposições atribuídas a um presidente temperamental, cuja retórica anti-intervencionista – sem dúvida, um estratagema eleitoreiro – assustou a diplomacia norte-americana ao longo da campanha presidencial. Ávida de cliques e audiência, a indústria midiática não deixou de farejar um ótimo negócio: um filme de espionagem digno de Hollywood, ainda mais sedutor aos olhos de uma parte do público por alimentar sua esperança de ver destituído o malfadado presidente. A combinação desses fatores explica por que, no caso “Russiagate”, as regras elementares do trabalho jornalístico foram tratadas com tamanha desenvoltura. Pegam-se umas informações não verificadas, isolam-nas e dramatizam-se os elementos convenientes, e minimizam-se ou ignoram-se os outros. Com frequência, as manchetes se revelam bem menos espetaculares, ou inexistentes, no corpo do artigo que elas introduzem. À falta de fontes confiáveis e fatos estabelecidos, tapam-se as brechas com insinuações hipotéticas – “parece que”, “não nos surpreenderíamos se”, “sem dúvida”, “provavelmente” – e com expressões em tom condicional.
Acolhidos de início como verdades evangélicas, inúmeros relatos que deram substância à tese do conluio entre o Kremlin e a equipe de campanha de Trump põem agora em risco esse frágil edifício narrativo. Repisou-se à saciedade, por exemplo, a carta de intenções na qual o candidato republicano, em plena campanha, propunha aos dirigentes russos construir uma torre Trump (Trump Tower) em Moscou. O intermediário escolhido para essa negociação, o promotor – de origem russa – Felix Sater, teve a imprudência de garantir ao advogado de Trump, Michael Cohen, que essa jogada ajudaria o bilionário a ganhar a eleição. “Vou obter as graças de Putin para o projeto e elegeremos Donald Trump”, gabava-se Sater em um e-mail, antes de explicar o que queria dizer: segundo ele, os eleitores só poderiam admirar a capacidade de Trump de concluir um negócio imobiliário com o “inimigo mais inflexível” dos Estados Unidos.
Todavia, o New York Times (28 ago. 2017) precisou admitir: “Nada prova que as promessas de Sater tenham vingado. Um e-mail sugere, além disso, que ele exagerou seus vínculos com a Rússia. Em janeiro de 2016, Cohen escreveu ao porta-voz de Vladimir Putin, Dimitri S. Peskov, pedindo-lhe que reativasse o projeto da torre Trump, em suspenso. Mas Cohen, ao que parece, não tinha o endereço eletrônico de Peskov, pois mandou seu e-mail para um endereço coletivo, reservado aos pedidos da imprensa. O projeto jamais recebeu aprovação governamental nem financiamento, sendo abandonado algumas semanas depois”.
De seu lado, Peskov disse que tomou conhecimento do e-mail de Cohen, mas não respondeu. A história justificaria a suspeita de um conflito de interesses, com Trump acusado de tentar negociar a extensão de seu império imobiliário na Rússia no exato momento em que cantava os louvores de Putin em seus comícios. Não se percebe, contudo, em que um negócio abortado seria mais digno de consideração que os outros, bem reais, conseguidos por Trump na Turquia, nas Filipinas ou no Golfo Pérsico.
À divulgação dos e-mails endereçados a Sater por Cohen seguiu-se outra revelação: em junho de 2016, um ex-jornalista britânico, Rob Goldstone, enviou ao filho mais velho de Trump documentos comprometedores sobre Hillary Clinton – segundo ele, uma prova “do apoio da Rússia e de seu governo”. O e-mail de Goldstone se mostrou mais eficaz que o de Sater, pois terminou num encontro com Donald Trump Junior, o qual este teria encerrado depois de vinte minutos. Impostura? A folha dos dois expedidores permite essa conclusão: Sater é conhecido como “um escroque de alto nível”5 que, para prejudicar antigos sócios, colocou na internet sites com nomes tão poéticos quanto IAmFaggot.com (“EuSouBicha.com”) e VaginaBoy.com.6 Já Goldstone trabalhou para tabloides ingleses de segunda categoria antes de virar relações-públicas de artistas de variedades. Não é preciso ser especialista em inteligência para duvidar da proximidade dessas duas figuras com o Kremlin. Perguntas do mesmo tipo se colocam a propósito do interrogatório, em 30 de outubro, de George Papadopoulos, um ex-consultor de política externa – mas de nível subalterno – da equipe de campanha de Trump. Acusaram-no de mentir aos agentes do FBI sobre seus contatos com indivíduos ligados ao Kremlin. Papadopoulos se declarou culpado. Todavia, a cidadã russa que lhe apresentaram como “sobrinha de Putin” não possui, a rigor, nenhum vínculo com ele: Putin não tem sobrinhas. Chamava-se Olga Polonskaya, de 30 anos – a idade de Papadopoulos –, e exerceria um alto cargo numa empresa distribuidora de vinhos.
E na eleição alemã?
O ex-consultor, além disso, menciona um homem supostamente próximo do ministro russo das Relações Exteriores, com quem teria também ligação. Esse homem, Ivan Timofeev, formado no Instituto de Estado das Relações Internacionais de Moscou, explicou ao FBI, que o interrogava: “A certa altura, [Papadopoulos] me perguntou se seria possível arranjar um encontro de Trump com Putin ou outro dirigente russo de alto escalão. Durante a conversa, pareceu-me que George não conhecia muita coisa do mundo da diplomacia russa. Não é assim que se marca uma entrevista com o presidente, por exemplo”.7
Há outra revelação que causou furor nos Estados Unidos e na Europa. Segundo o Facebook, centenas de contas falsas, “provavelmente criadas na Rússia”, despenderam US$ 100 mil para difundir 3 mil anúncios entre junho de 2015 e maio de 2017 – uma campanha logo considerada pelo New York Times (8 set. 2017) como “prova suplementar de uma intrusão estrangeira sem precedentes na democracia norte-americana”. Mas ela causou um impacto digno de seu tratamento midiático? É de duvidar, se compararmos essa soma de US$ 100 mil com os US$ 6,8 bilhões gastos na campanha de 2016. Além disso, segundo o Facebook, “a grande maioria das mensagens publicitárias não fazia referência à eleição presidencial norte-americana nem a um candidato em particular”, mas visava sobretudo “exacerbar as divisões sociais e políticas do país, discorrendo sobre o conjunto de seu espectro ideológico e assuntos variados, como direitos LGBT, racismo, imigração e porte de armas”. O mastodonte das redes sociais assegura, ademais, que 56% desses anúncios foram consultados “depois da eleição”.
Numerosos comentaristas viram nessa campanha a mão do Kremlin. Segundo o Washington Post (24 set. 2017), que publicou a investigação mais exaustiva a esse respeito, “parece que os anúncios foram difundidos em contas da Internet Research Agency”, uma agência de publicidade on-line ligada ao governo russo. No entanto, sempre de acordo com o Washington Post, uma primeira investigação do Facebook mostrou que essas contas presumivelmente russas “tinham objetivos claramente financeiros, o que leva a crer que não estavam a serviço de nenhum governo estrangeiro”. Não obstante, os automatismos típicos do “Russiagate” exigem a substituição de demonstrações defeituosas por certezas, como nesta frase extraída da investigação do Washington Post: “A sofisticação tática dos russos pegou o Facebook desprevenido”.
Mais adiante, o mesmo jornal explicava detalhadamente em que consistia essa “sofisticação”: “Enquanto o Facebook se empenhava em buscar provas de uma manipulação russa, essa hipótese não cessava de arregimentar adeptos nos círculos influentes. Na tensão dos dias que se sucederam ao pleito, os consultores de Hillary Clinton e Barack Obama mergulhavam nas pesquisas de opinião e nas sondagens pós-eleitorais, procurando explicações para o que consideravam um resultado totalmente anormal. Uma das teorias resultantes de seu trauma post-mortem foi dizer que os trolls russos teleguiados pelo Kremlin haviam utilizado o Facebook e outras redes sociais para influenciar os eleitores norte-americanos nos Estados-chave e modificar assim a relação de forças em favor de Trump. Esses consultores não dispunham de prova alguma para apoiar sua teoria, pelo menos na época, mas julgavam-na suficientemente atraente para partilhá-la com as comissões parlamentares que investigavam os serviços secretos. […] Em maio, no curso de uma visita à sede do Facebook, o senador democrata Mark Warner, vice-presidente da comissão senatorial encarregada das informações, ‘instou a companhia a fazer algumas mudanças no modo de conduzir suas investigações internas’. Anunciando em agosto ter rastreado 3 milhões de mensagens ‘provavelmente’ russas, o Facebook reviveu o escândalo e viu-se convocado a várias comissões do Congresso”.
Nenhum escrutínio parece estar ao abrigo do perigo russo. Em 1º de setembro, o New York Times publicou na primeira página um artigo intitulado “As operações russas de pirataria das eleições são mais amplas do que se suspeitava, mas também pouco fiscalizadas, como sempre”. No corpo do texto, nenhum indício factual de pirataria, apenas um monte de acusações sem base que enganavam o leitor atraído pelo cheiro do furo de reportagem. Sobre irregularidades constatadas na eleição da Carolina do Norte, o jornal reproduzia o comentário de uma observadora que teria “tido a impressão de uma mudança ou de uma espécie de ciberataque”. “Meses depois”, continuava o jornal, “ainda nos perguntamos o que teria acontecido naquele dia na Carolina do Norte, na Virgínia, na Geórgia e no Arizona”. Mas o autor admitia: “Muitas outras razões talvez explicassem essas irregularidades – dirigentes locais apontaram erros humanos e de informática – e até agora não existe nenhuma prova indiscutível de uma sabotagem dos computadores e menos ainda de ingerência russa.”
Dias depois, porém, o terror de uma pirataria moscovita aumentou quando o Departamento de Segurança Interna (DHS) avisou 21 estados de que eles poderiam ser alvo de um ciberataque russo durante as eleições de novembro. Três estados não deram ouvidos a essa hipótese, entre os quais a Califórnia, que anunciou no fim de setembro o resumo de suas próprias investigações: “Sem dúvida, as conclusões da DHS estavam erradas”.
As últimas eleições na França e na Alemanha foram cercadas de receios parecidos, às vezes com os mesmos resultados. Na França, as suspeitas de pirataria russa dominaram a imprensa a ponto de incitar a Agência Nacional de Segurança dos Sistemas de Informação (Anssi) a publicar um esclarecimento. Durante a campanha eleitoral, um ciberataque visou o En Marche!, o movimento de Emmanuel Macron, mas foi “tão genérico e tão simples que poderia ter sido obra de qualquer um”, avaliou em junho o chefe da Anssi, acrescentando que “nenhum indício” permitia incriminar Moscou.8 Na Alemanha, o episódio eleitoral reservou uma frustração ainda maior aos amantes do complô russo: não aconteceu absolutamente nada. “A inexistência aparente de uma campanha russa com vista a sabotar a eleição alemã é um golpe na cabeça dos dirigentes e especialistas que advertiram contra uma provável ofensiva desse tipo”, declarou então, desconcertado, o Washington Post (10 set. 2017) em um artigo com o seguinte título: “Enquanto os alemães se preparam para votar, o mistério aumenta: onde estão os russos?” Dias depois, o New York Times (21 set. 2017) também se espantava: “O mistério da eleição alemã: por que os russos não intervieram?”.
Velhos cordéis macarthistas
A julgar pelo último referendo no Reino Unido, o mistério ainda está longe de ser esclarecido. Mais de um ano depois que os eleitores, por uma maioria de 1,3 milhão de votos, optaram pelo Brexit, o espectro do grande troll russo continua a assustar os espíritos. Em 13 de novembro último, em um editorial do diário iNews intitulado “Precisamos de uma investigação sobre o papel da Rússia no Brexit”, o jornalista Ian Birrell presume que “seria surpreendente se a Rússia não tivesse tentado se imiscuir em nosso referendo, considerando-se o desprezo de Putin pelas alianças ocidentais mais estratégicas, como a União Europeia ou a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan)”. Deputados britânicos não deixaram passar a oportunidade, declarando que contas no Twitter ligadas à Rússia teriam postado mensagens concernentes ao Brexit, uma guinada que, segundo o New York Times (3 nov. 2017), “poderia levantar questões quanto à validade do próprio referendo”. “Minha mensagem à Rússia é muito simples”, advertiu a primeira-ministra britânica, Theresa May, em 15 de novembro: “Sabemos o que estão fazendo e vocês não terão êxito”. Segundo Laura Cram, diretora de Pesquisas da Universidade de Edimburgo, que enumerou 419 contas referentes ao fato, “cerca de 78% das mensagens foram enviadas após a votação do Brexit em 23 de junho de 2016”.9
Ninguém se surpreenderá ao saber que a crise catalã também foi imputada ao insaciável polvo russo: o governo espanhol e a União Europeia acusaram o Kremlin de manipular a consulta popular sobre a independência da região. “Referendo na Catalunha: ganhou a Rússia”, reagiu o Washington Post (2 out. 2017). De seu lado, o El País não hesitou em consagrar quatro manchetes a essa presunção de ingerência na mesma semana.10 Um pesquisador da Universidade George Washington havia informado o diário sobre a “descoberta de um exército de contas ‘zumbis’” nas mídias sociais ligadas à Rússia, destinadas a “divulgar uma imagem negativa da Espanha nos dias anteriores ao referendo [catalão] de 1º de outubro”. Mas se, nesse negócio todo, uma imagem foi “divulgada”, foi sobretudo a da Rússia – um país isolado, submetido a sanções econômicas, muito dependente de seus recursos petrolíferos, sob o impacto de décadas de economia administrada seguida de privatizações desastrosas e que disporia, ainda assim, de um poder tal que lhe permite subverter Estados infinitamente mais poderosos que ele.
No entanto, como só recebe quem já tem, Moscou é igualmente objeto de suspeitas fora das eleições. Em agosto último, por ocasião dos episódios violentos em Charlottesville provocados por supremacistas brancos, a consultora de política externa Molly McKew lançou um apelo amplamente repetido no Twitter: “É preciso discutir o que está para acontecer hoje em Charlottesville e a influência das operações russas nos Estados Unidos”. Em seguida, a especialista foi interrogada por uma comissão do Congresso, que tratou do “flagelo da desinformação russa”.
Na CNN, em 23 de agosto de 2017, uma professora de Direito da Universidade de Yale, Asha Rangappa, declarou que Charlottesville “trouxe à tona o problema da Rússia”. Certo, admite ela, “até o momento não há provas de que a Rússia sustente diretamente grupos de extrema direita nos Estados Unidos”. Mas – pois há sempre um “mas” – os laços entre Moscou e a extrema direita europeia “indicam que os serviços de informação russos estão prontos a agir no território norte-americano, utilizando grupos que propagam o ódio”.
Meses antes, porém, era costume associar os russos ao campo norte-americano oposto. Assim, em março, membros da inteligência dos Estados Unidos testemunharam perante o Congresso que a “ciberinvasão [russa] do século XXI” havia tentado “semear a discórdia no país insuflando movimentos de protesto como o Occupy Wall Street e o Black Lives Matter [Vidas Negras Contam]”. A prova? Esses dois movimentos tinham sido amplamente cobertos pela rede pública russa RT.11
Essas extrapolações dizem muito sobre o estado de espírito dos especialistas e legisladores. Após o caso das 3 mil postagens identificadas pelo Facebook, o Twitter enviou ao Congresso uma lista de duzentas contas “ligadas às interferências russas na eleição de 2016”. Sabendo-se que o Twitter totaliza 328 milhões de contas, dar a entender que duzentas poderiam desnaturar um escrutínio nacional agride o senso comum tanto quanto a matemática. Ou seja, os manifestantes do Black Lives Matter estão sujeitos a agentes estrangeiros que não conhecem e, sem saber, esperam um sinal do Kremlin nas redes sociais para se mobilizar contra o racismo existente em seu país.
Atribuir o ativismo negro nos Estados Unidos à influência nefasta de Moscou não é coisa nova. “Os vermelhos tentam atiçar os negros à revolta”, alardeava o New York Times já em julho de 1919. Nos anos 1960, os partidários da segregação racial classificavam o movimento pelos direitos civis como uma marionete manipulada pelos soviéticos. O FBI chegou a justificar a escuta telefônica de Martin Luther King por suas supostas ligações com o Partido Comunista norte-americano.
Que o momento favorece a retomada dos velhos cordéis macarthistas não é nenhuma surpresa. No auge da sarabanda midiática sobre as pretensas manobras de Moscou nas redes sociais, o Twitter revelou seus novos critérios de identificação das contas suspeitas, entre as quais figurarão as que utilizarem nomes em caracteres cirílicos ou mensagens redigidas em língua russa… A senadora Dianne Feinstein pediu à mesma empresa que informasse às autoridades sobre todas as mensagens enviadas ou recebidas pelo fundador do WikiLeaks, Julian Assange, e por outros internautas considerados próximos dele – incluindo, segundo Assange, as consultas a seu advogado norte-americano. Por seu turno, a deputada democrata da Califórnia, Jackie Speier, conclamou o Google a banir a RT de sua plataforma YouTube. Como o gigante da internet lhe respondeu, por intermédio de seu vice-presidente, Kent Walker, que uma pesquisa “minuciosa” da RT não revelou nenhuma infração à política seguida pelo Google “de condenar os discursos de ódio e as incitações à violência”, Speier não se deu por vencida, argumentando que a rede russa era “uma máquina de propaganda” e “uma arma nas mãos de um dos nossos inimigos”.
Pouco importa que a RT reivindique menos de 30 mil telespectadores por dia: seu veneno não seria menos letal, a julgar pelo relatório do DNI de janeiro de 2017, que acusa a rede de “insistir na crítica às supostas deficiências norte-americanas em matéria de democracia e liberdades civis”.
As investigações das redes RT e Sputnik aumentaram as tensões entre Moscou e Washington. Denunciando um “ataque” à mídia de seu país, o presidente Putin resolveu dar uma “resposta à altura”. O Parlamento russo acaba assim de atribuir às redes públicas norte-americanas Voice of America e Radio Free Europe/Radio Liberty (RFE/RL), mas também à CNN International, o status de “agentes estrangeiros”. Esse ato contra a RFE/RL – fundada no tempo da Guerra Fria para desafiar a União Soviética – desperta algumas lembranças.
As pressões sobre a RT e a Sputnik não emanam somente dos meios governamentais. Durante um encontro organizado recentemente pelo Atlantic Council, um think tank influente especializado em relações internacionais, o jornalista James Kirchick conclamou o setor privado a “envergonhar a RT, isolá-la e expulsá-la dos espaços respeitáveis da sociedade”. A seu ver, os “jovens jornalistas ocidentais de 22 ou 23 anos que a RT tenta atrair” devem pensar duas vezes, “sabendo que, depois disso, não encontrarão jamais emprego numa mídia decente”.12
Uma “resistência” sem riscos
Entre os norte-americanos obcecados com o “Russiagate”, muitos são movidos pelo medo e a instabilidade que lhes inspira o reinado do presidente mais medíocre e imprevisível da história do país. Para outros, em contrapartida, sobretudo os que ocupam uma posição privilegiada, esse é principalmente um modo de “resistência” cômodo e sem riscos. Permite evitar que a pessoa se interrogue sobre seu próprio relacionamento com o sistema econômico e político contra o qual muitos eleitores de Trump se rebelaram. Se, retomando a fórmula de Rachel Maddow, jornalista de destaque da rede MSNBC, em 17 de março último, “a presidência atual é produto de uma operação russa resultante de uma trama entre os serviços secretos russos e uma campanha eleitoral norte-americana”, então tudo se torna simples: resta apenas acabar com Trump e Putin.
Descontentamento com as desigualdades sociais, incentivo à abstenção, incerteza do Partido Democrata quanto à linha a seguir – esses são temas que a fixação nos atos de Moscou põe de lado. Os problemas dos pobres nunca despertaram a paixão das mídias e das elites políticas: o “Russiagate” lhes permite fugir deles ainda mais depressa.
Como a obsessão norte-americana pelos ciberataques russos pôde ser acolhida em países que, no passado, sofreram ingerências bem mais graves? Segundo um estudo publicado em 2016 pela Universidade Carnegie Mellon, em Pittsburgh, os Estados Unidos interferiram em nada menos que oitenta eleições fora de suas fronteiras desde a Segunda Guerra Mundial – cifra que não leva em conta as mudanças de regime mais ou menos sangrentas fomentadas por Washington em países estrangeiros, como Irã, Chile e Guatemala. Ainda há pouco, as autoridades norte-americanas favoreceram a queda de um governo democraticamente eleito na Ucrânia, bem ali na fronteira com a Rússia. Imagine-se a reação da Casa Branca caso aparecessem indícios de que os dirigentes russos estariam tramando para designar o futuro presidente dos Estados Unidos, do mesmo modo que os norte-americanos fizeram para designar o primeiro-ministro da Ucrânia.13
Tais questões são ignoradas, bem como as tensões crescentes entre a Rússia e os Estados Unidos, que decerto nada têm a ver com esse “Russiagate”. Em meio à gritaria ensurdecedora contra “Vladimir, o que mexe os fiozinhos”, quase nos esquecemos de que Trump, discretamente, nomeou “falcões” antirrussos para postos estratégicos e deu boas-vindas a um recém-chegado, o Montenegro, no seio da Otan, a despeito das reticências da Rússia. Também nos esquecemos de que o comandante-chefe das tropas norte-americanas, o general Joseph Dunford, partilha a vontade do Pentágono e do Congresso de fornecer armas suplementares à Ucrânia. O presidente Obama havia rejeitado uma proposta semelhante, com receio de exacerbar o conflito entre Kiev e Moscou.
Essas tensões tendem a se agravar num clima político em que toda abordagem diplomática do caso russo é percebida como uma fraqueza e em que a política das sanções e da escalada armamentista constitui um dos raros pontos de acordo entre republicanos e democratas. Com efeito, eles acabam de se entender quanto a um orçamento militar superior até ao que Trump exigia. “As inquietações da Otan com respeito à Rússia são consideradas um sinal positivo para a indústria da defesa”, observa a imprensa financeira,14 feliz ao constatar que as ações das fábricas de armamentos atingiram um “nível histórico” – tanto quanto as da MSNBC, a rede que mais cobriu o “Russiagate”.
*Aaron Maté é jornalista, correspondente e produtor do The Real News.
O Le Monde Diplomatique e o semanário norte-americano The Nation decidiram fazer uma parceria. Nos termos desta, ambos os jornais publicarão de tempos em tempos textos um do outro. O The Nation fez isso várias vezes. Neste mês, reproduzimos – atualizando-o – um artigo publicado em outubro de 2017.