Integração em vez de divórcio
Apesar das tensões geopolíticas e comerciais, a integração das economias norte-americana e européia aprofundou-se ainda mais, demonstrando sua preocupante autonomia da política. Seria o “fim da história” da democracia?Bernard Cassen
O caos no qual o Iraque (sem falar do Afeganistão) foi mergulhado tem motivos para deixar desesperados os incondicionais de Washington. Mas, agora que o desastre aconteceu, não é necessário que Bush agüente sozinho as conseqüências. Como escreve o diretor do L’Express, “ninguém pode colocar em dúvida a sinceridade americana: a superpotência também luta para desenvolver a liberdade e a democracia”1 . Vamos esquecer o absurdo de uma afirmação como essa – que deixa de lado a longa história das intervenções dos marines e da CIA relacionada à instauração ou à salvação de ditaduras, particularmente na América Latina -, e reter apenas a mensagem subliminar: europeus e americanos, estamos todos no mesmo barco porque dividimos os mesmos valores fundamentais, aqueles de uma espécie de universalismo ocidental.
Não é essa a experiência vivida dos que conhecem bem as duas margens do Atlântico nem, no caso dos outros, o que inspira a leitura da abundante literatura sobre o tema recentemente surgida na Europa ou nos Estados Unidos. 2 Quer se trate da ideologia dos direitos individuais em relação aos direitos coletivos, quer se trate do status da religião, da afirmação nacionalista, do sentimento de superioridade em relação ao resto do mundo, da indiferença das elites em relação às desigualdades, da pena de morte, do respeito à legalidade internacional (Protocolo de Kyoto, corte penal internacional) etc., os cidadãos dos Estados Unidos, em sua grande maioria, e sobretudo seu governo atual, estão muito distantes dos cidadãos da maioria dos países do Velho Continente. Tudo isso salta aos olhos.
O despertar do “atlantismo beato”
A grande maioria dos cidadãos dos EUA, e sobretudo seu governo atual, estão muito distantes daqueles da maioria dos países do Velho Continente
Têm razão de se alarmar apenas aqueles que, por ignorância (muitos americanófilos ignoram completamente o objeto de sua devoção) ou por atlantismo beato, se recusam a ver nos Estados Unidos um país estrangeiro qualquer. Um país com o qual existem convergências, mas também divergências de interesses, da mesma forma como existem com a Índia, a Rússia ou o Brasil. Nessas condições, a “deriva dos continentes”, o “divórcio com a Europa”, o “impasse transatlântico” – para retomar algumas fórmulas recentes e um pouco exageradas – não passam de uma simples atualização de realidades preexistentes.
No entanto, é significativo que a recordação de verdades primordiais se torne mais marcante no dia seguinte ao duplo fracasso – militar3 e moral – dos Estados Unidos no Iraque, que daqui em diante torna fortemente vãs as ameaças de utilização da força armada contra um ou outro Estado, muçulmano ou não: “Um poder que, com todas as evidências, não pode ser utilizado, não é um poder verdadeiro”, como dizem dois pesquisadores da fundação Carnegie Endowment for International Peace. 4 A lição foi entendida pelos dois outros países do Eixo do Mal – a Coréia do Norte e o Irã – que não renunciam (ou não renunciam mais) a suas ambições nucleares. Ela também não escapou a todos os europeus. A proliferação de comentários sobre as diferenças de valores também é uma maneira de justificar um mínimo de tomada de distanciamento diplomático, como vimos, em particular, no dia 20 de julho último, quando os 25 países europeus se pronunciaram unanimemente contra o “muro da vergonha” israelense numa assembléia geral das Nações Unidas, enquanto Washington, com Israel, Palau, a Micronésia e dois outros “Estados” de mesma envergadura sustentavam posição inversa.
O “cão fiel” britânico
Diante da acumulação de tensões transatlânticas, certos comentaristas anglo-saxões já começam a se inquietar com a perenidade da globalização
Mesmo a famosa “relação especial” entre os Estados e o Reino Unido causa risos: apenas os britânicos nunca a consideraram assim, enquanto Washington – onde é preciso mandar avisos para o exterior – viram nisso, de maneira pragmática, sobretudo uma maneira de “envolver” Londres nas iniciativas unilaterais camufladas devido à circunstância como ações “multilaterais”. Foi assim que em 1967 o presidente Lyndon Johnson esforçou-se por convencer o primeiro-ministro trabalhista da época, Harold Wilson, a despachar para o Vietnã tropas britânicas, mesmo que fosse um simples batalhão. Mas Wilson recusou-se então a fazer o papel de “cão fiel” que o “novo trabalhista” Tony Blair cumpriu visivelmente bem no Iraque.
Os conflitos comerciais desses últimos anos entre a União Européia e os Estados Unidos (gado com hormônios, banana, organismos geneticamente modificados, aço, subvenções agrícolas, utilização de paraísos fiscais pelas multinacionais de além-Atlântico e, sem dúvida, em breve, a disputa entre Boeing e Airbus) completam um quadro de aparente enfrentamento entre as duas entidades. Diante dessa acumulação de tensões, certos comentaristas anglo-saxões começam a se inquietar com a perenidade da arquitetura financeira, econômica e comercial mundial, em outras palavras, com o futuro da mundialização neoliberal ou globalização. Não se apóia ela, há um quarto de século, na conversão, resignada ou entusiástica, das elites dirigentes do mundo inteiro e, portanto, em primeiro lugar daquelas da Europa, a um modelo liberal de integração econômica da parte do planeta que tem condições de pagar suas dívidas, concebido em Washington para servir prioritariamente aos interesses das finanças e das empresas dos Estados Unidos?
“Braço armado” do sistema
A globalização se apóia, há um quarto de século nas elites dirigentes do mundo inteiro e, portanto, em primeiro lugar nas da Europa
Esse sistema dispõe de um braço armado, a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). Originalmente criada para conter a URSS, a Otan visava, sobretudo, fazer de Washington o árbitro de todas as decisões do conjunto do Velho Continente. Longe de se dissolver depois da desintegração da URSS, a organização ampliou-se, passando a abranger todos os antigos Estados satélites de Moscou na Europa central e oriental, a Eslovênia, assim como três repúblicas bálticas. Mas as disputas transatlânticas não a pouparam, sendo que a último delas foi a recusa dos governos alemão e francês, na Conferência de Istambul de junho último, de ver a bandeira da Otan tremular no Iraque com o pretexto de formar soldados e policiais iraquianos. 5 Washington tomou de tal forma o hábito de dar ordens, recebidas com uma continência por seus “aliados” nessa organização, que a menor objeção assume dimensões de crise.
Quando se olha apenas para esses fatores, isolando-os de um contexto mais geral, pode-se com efeito ter o sentimento de que o paralelismo dos dois grandes pilares6 políticos e militares da mundialização liberal está prestes a se desfazer, com o risco de fragilizar todo o edifício. Essa impressão é enganadora, como o é aquela de uma globalização ameaçada pela histeria securitária do governo Bush. Um estudo recentemente publicado na França pela Fundação Robert Schuman7 recoloca as coisas em perspectiva, ao mostrar, com base em números, a integração crescente, e que se aprofundou ainda mais depois do 11 de setembro, das economias norte-americana (Estados Unidos e Canadá) e européias.
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A economia transatlântica está estreitamente ligada pelos investimentos no estrangeiro, uma forma profunda de integração comercial
Para começar, devemos relativizar a importância dos conflitos comerciais entre as duas margens: se eles são dramatizados no discurso, não compõem mais que 1% do volume total das trocas. Estes estão, eles próprios, em constante progressão, mas – e é um mérito do estudo lembrar algumas evidências econômicas – “a economia transatlântica está estreitamente ligada pelos investimentos no estrangeiro, que constituem uma forma profunda de integração em relação ao comércio, forma superficial de integração”. Assim, em 2000, as vendas das filiais americanas na Europa atingiram 1.438 bilhões de dólares, enquanto as exportações americanas para a Europa se elevaram somente a 283 bilhões de dólares. Simetricamente, as vendas das filiais européias nos Estados Unidos subiam para 1.420 bilhões de dólares, contra 336 bilhões de exportações da Europa para os Estados Unidos.
Os maciços investimentos na Europa
Contrariamente a uma opinião difundida, não é para os “mercados emergentes” que se voltam prioritariamente os investidores americanos e europeus. Assim, apenas nos Países Baixos, os investimentos americanos em 2000 foram duas vezes mais elevados que no México. Em 2002, para o conjunto da Europa, eles roçaram os 60% de seu volume mundial, e transpuseram essa barreira em 2003, sendo que a França não sofreu de forma alguma por sua oposição à guerra no Iraque, já que os investimentos americanos no país, entre 2002 e 2003, ora ficaram estagnados, ora aumentaram em 10%, segundo os estudos. 8
No outro sentido, uma séria retirada ocorreu em 2003: em relação a 2002, os investimentos europeus nos Estados Unidos diminuíram de cerca de 85% de seu montante mundial, para cerca de 50%. Em volume, passaram de 126 bilhões a 37 milhões de dólares. Nos dez primeiros meses de 2003, os investidores da zona euro foram vendedores de títulos americanos (bônus do Tesouro, ações e obrigações) cedendo 5 bilhões de dólares de ativos, enquanto em 2001 eles eram compradores para 50 bilhões de dólares de ativos.
Reversão conjuntural?
Deve-se relativizar a importância dos conflitos comerciais entre as duas margens: não compõem mais que 1% do volume total das trocas
Essa reversão de tendência é conjuntural ou estrutural? Seja qual for o caso, seria preciso deduzir disso que os detentores de capitais europeus têm menos confiança na gestão de Bush (déficits orçamentário e comercial, aventureirismo no estrangeiro, medidas de segurança etc.) que os investidores americanos têm nos governos da “Velha Europa”… Uma integração crescente entre as duas partes seria acompanhada então de um certo reequilíbrio das relações de forças entre elas.
Como se viu em Genebra, no dia 31 de julho, quando da conferência da Organização Mundial do Comércio (OMC), a União Européia e os Estados Unidos conseguiram finalmente entrar em acordo em relação a um compromisso, inclusive no que se refere à agricultura, diante das reivindicações dos países do Sul agrupados no G-20. Isso, no entanto, não foi suficiente, pelo menos de imediato, para conseguir que esses países “liberalizassem” por mais tempo sua legislação sobre os investimentos estrangeiros. Também nesse caso um reequilíbrio geopolítico se estabelece, dessa vez entre Norte e Sul, mas sempre num contexto de integração crescente ao mercado mundial.
O “fim da história” democrática
No plano militar, e apesar de algumas escaramuças franco-americanas, o defensor da mundialização que é a Otan não se comporta tão mal. Sob pressão de Washington, sua zona de intervenção não conhece mais limites territoriais. Pois no verão de 2003 a organização não tomou o lugar da ONU no comando da Força Internacional de Assistência à Segurança no Afeganistão? De fato, os Estados Unidos aplicam à Otan em geral (assim como a todas as instituições multilaterais) as regras anunciadas no dia 2 de fevereiro de 2002 pelo secretário americano da Defesa, Donald Rumsfeld, referindo-se aos Estados tomados individualmente: “É a missão que deve determinar a coalizão, e não o inverso”. Em outras palavras, a Otan somente será utilizada quando se precisar dela: hoje para participar da reconstrução daquilo que os Estados Unidos destruíram no Afeganistão, quem sabe amanhã no Iraque.
Os “interesses” e os “atores” transnacionais são daqui em diante santificados e colocados fora do alcance do sufrágio e da intervenção dos cidadãos
Alguns se perguntaram sobre a aparente contradição entre a busca da globalização econômica e financeira planetária, que se otimiza num quadro de estabilidade e de liberdade de circulação em todos os campos, e as medidas que entravam essas liberdade tomadas pelo governo americano (vistos, comunicação de dossiês dos passageiros das linhas que servem os Estados Unidos, instalação de agentes das alfândegas americanas nos portos estrangeiros de onde partem navios porta-contêineres em direção aos Estados Unidos, controles minuciosos nas fronteiras) e que são acompanhados no local por uma colocação em tensão da população em termos de segurança. Se existem (e a queda dos investimentos europeus em 2003 poderia bem constituir um sintoma disso), esses efeitos permanecem no entanto limitados. Pode-se ver bem isso, por exemplo, no otimismo exibido pelos dois “grandes” da aeronáutica, setor ultra-sensível às crises internacionais: o imenso A 380 da Airbus (555 lugares) vai começar a ser explorado comercialmente no início de 2005, e a empresa de Seattle se lançou num novo programa de envergadura muito grande, o do Boeing 7T7 que deverá ser colocado em atividade em 2007.
Daniel Hamilton, o prefaciador do estudo da Fundação Robert Schuman citado acima, não hesita em declarar que “chegamos a um novo território em que os interesses econômicos e sociais específicos e os atores transnacionais transgridem as fronteiras nacionais, ultrapassam as formas tradicionais de governança no conjunto do mundo atlântico”.9 Se seguirmos o raciocínio, isso significa que a esfera econômico-financeira atlântica, tubo de ensaio da mundialização neoliberal, é daqui em diante completamente autônoma em relação ao poder, aos projetos e mesmo aos conflitos políticos; portanto que os “interesses” e os “atores” transnacionais são daqui em diante santificados e colocados fora do alcance do sufrágio e da intervenção dos cidadãos. O “fim da história” democrática de alguma forma.
(Trad.: Marcelo de Valécio)
1 – Denis Jeambar, “Après-guerre”, L?Express, 28 de junho de 2004.
2 – Pode-se ler com muito proveito a apaixonante obra coletiva Démythifier l?universalité des valeurs américaines, dirigida por Jean Liberman, Paragon, L?Aventurine, Paris, 2004.
3 – Com certeza há fracasso militar, na medida em que as tropas de ocupação com certeza têm os meios de eliminar Falluja, Al-Sadr City ou Nadjaf do mapa, mas são incapazes de “mantê-las” e de ali instalar um poder civil sob suas ordens.
4 – Joseph Cirincione et Anatol Lieven, “Rethinking the US exit strategy”, International Herald Tribune, 17 de maio de 2004.
5 – No final de julho foi firmado um compromisso, permitindo o envio de uma “missão preparatória” de cerca de 50 oficiais a fim de examinar o princípio e as modalidades de
Bernard Cassen é jornalista, ex-diretor geral de Le Monde Diplomatique e presidente de honra da Atacc França.