Interesses divergentes
Embora o Mercosul seja apresentado, por Fernando Henrique Cardoso, como “uma segunda nacionalidade”, é significativo que, quando da desvalorização do real, em 1999, nenhum de seus parceiros foi consultadoJanette Habel
Em julho de 2000, o Brasil suspendeu o acordo que tinha assinado com a Argentina sobre o setor automobilístico. Ao fazê-lo, Brasília protestava contra o decreto do presidente Fernando De la Rúa destinado a proteger as empresas fabricantes de autopeças argentinas para veículos produzidos naquele país. Desde sua vitória eleitoral, em dezembro de 1999, importantes representantes da indústria argentina vêm exigindo do presidente argentino mais firmeza nas negociações com o Brasil, assim como na cobrança de impostos das empresas públicas privatizadas e compradas por multinacionais. O vice-presidente da União das Indústrias da Argentina reivindica “uma mudança profunda da política econômica”.
Esta é a primeira vez há muitos anos que o empresariado local e as pequenas e médias empresas entram em conflito com bancos e exportadores, reivindicando uma maior intervenção do Estado na economia. O conflito que opõe o setor financeiro, as empresas privatizadas adquiridas pelo capital estrangeiro e os grandes latifundiários, por um lado, e os industriais e as pequenas e médias empresas comerciais, por outro, vem se acirrando. O governo argentino diz pretender “reativar o Mercosul, mas defendendo com firmeza a indústria e a produção nacionais”. [1] Na verdade, o ministro da Economia, José Luís Machinea, e o secretário de Estado das Finanças, ambos estreitamente vinculados ao capital financeiro norte-americano, querem preservar o sistema de conversibilidade peso-dólar. A chegada, prevista para breve, de grandes empresas norte-americanas — entre as quais, a AT&T, que domina o mercado de telefonia fixa — foi preparada por ocasião da viagem do presidente De La Rúa a Washington, em junho de 2000.
Uma abertura excessiva
O Brasil, por seu lado, age em função de seus interesses. Embora o Mercosul seja apresentado por Fernando Henrique Cardoso como “uma segunda naturalidade”, é significativo que, quando da desvalorização do real, em 1999, nenhum de seus parceiros foi consultado, quando se tornou o ponto crucial da atual crise. O Mercosul permite a Brasília negociar com os Estados Unidos numa posição de força e ganhar tempo. Na realidade, o Brasil corre sérios riscos, ao se alinhar intempestivamente com a Alca (Área de Livre Comércio das Américas). Alguns setores empresariais avaliam que se trata de uma abertura excessiva. “A Alca significaria uma maior liberalização. Ora, a liberalização, no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC) e na sub-região, afetou os interesses das empresas do Mercosul.” [2] O economista brasileiro Roberto Macedo, ex-presidente da Associação Nacional dos Fabricantes de Produtos Elétricos (Eletros), também aconselha cautela contra qualquer tipo de precipitação, considerando a competitividade norte-americana, bastante superior não apenas na indústria, mas também na agricultura. “A nossa indústria seria varrida pela indústria norte-americana”, prevê Macedo, citando os setores automolístico, eletrônico e a agro-indústria.
O presidente uruguaio Jorge Batlle tem outra opinião. Para ele, uma aproximação com o Acordo de Livre Comércio Norte Americano (Alena, ou Nafta, segundo a sigla inglesa, mais conhecida) constitui a única solução, uma vez que os esforços para negociar um acordo comercial com a Europa foram em vão.
Uma “aliança estratégica”?
O problema monetário também está no centro do debate. Dolarização ou moeda comum? E, nesse caso, qual? A dolarização liquidaria o Mercosul e deixaria campo livre à Alca. O governo brasileiro opõe-se, embora até recentemente não tomado qualquer iniciativa. Amplia-se o debate e os empresários e as “elites” latino-americanos mostram-se divididos. No Equador, a dolarização vai a todo o vapor, e o sucre (moeda nacional) desapareceu no dia 9 de setembro. Prevendo-se, com a medida, convulsões sociais.
Os doze representantes de governos sul-americanos que se reuniram no dia 1º de setembro em Brasília discutiram o futuro do Mercosul e o problema da moeda. O presidente do Banco Central do Brasil já sonha com a possibilidade de o real se converter em moeda comum no Mercosul. Será que a adesão do Chile, que se dará em dezembro, assim como as declarações do presidente Ricardo Lagos — que se referiu à “aliança estratégica” do Cone Sul como ABC (Argentina, Brasil e Chile) — permitiriam uma aproximação das posições?
Janette Habel é professora-doutora na Universidade de Marne-la-Vallée e no Instituto de Altos Estudos da América Latina (Institut des hautes études d’Amérique latina – IHEAL), de Paris.