Inventar um protecionismo altruísta
A introdução de cláusulas sociais e ambientais no comércio internacional pode ser uma alternativa para evitar que os países do Sul continuem submetidos às transnacionaisBernard Cassen
Em Seattle, em novembro de 1999, os manifestantes deram um grande pontapé no formigueiro do livre comércio. Teme-se, entre os editorialistas que exprimem o ponto de vista da “comunidade” financeira, que, se depois do grande fracasso de Seattle, a máquina de liberalizar não se puser a andar, mesmo que em câmara lenta, ela se enferruje e não possa nunca mais deslanchar. Um cenário catastrófico!
No que concerne às trocas de bens e serviços as negociações comerciais só dizem respeito à superfície das coisas. Elas têm uma outra função, muito mais importante: desarticular a ordem interior dos Estados para moê-la numa ordem “globalitária” [1] destruidora de todas as solidariedades e de todos os coletivos, para conservar apenas como atores planetários os fluxos financeiros e os que os controlam: bancos, companhias de seguro, empresas multinacionais, fundos especulativos e fundos de pensão, bem como riquíssimos indivíduos do tipo Bill Gates. Portanto eles não podem esmorecer nem deixar tocar no livre comércio, que deve continuar o santuário inviolável das “liberdades” do capital. [2] Ainda mais que, contrariamente aos ingênuos ou ignorantes da história, que crêem ainda na ficção do “doce comércio” do qual falava Voltaire, eles têm boa memória e sabem que a atividade mercantil inscreve-se numa implacável relação de forças, em sua essência difícil para os fracos.
As canhoneiras da OMC
Então qual é a diferença de natureza que existe entre a vontade atual de abrir os mercados do Sul — ainda parcialmente fechados, por exemplo, à expansão dos “serviços financeiros”, aos bancos e companhias de seguro do Norte — e a guerra do ópio levada a cabo e ganha pelos ingleses contra os chineses nos anos 40 do século passado? Nenhuma. Apenas os meios empregados ganharam requinte. Na época, as fragatas britânicas tiveram de bombardear Cantão e ocupar Hong Kong para obrigar a China, pelo Tratado de Nankin, a se abrir ao comércio europeu e, em particular, ao do ópio. Hoje é a OMC que exerce o papel de canhão.
A grande contribuição dessa mobilização foi a de colocar à frente da cena pública a questão do comércio e da livre circulação de mercadorias, não apenas como simples fatores das relações entre os Estados, mas como verdadeiras tenazes para arrancar tudo o que reste de legislações nacionais e obrigar o conjunto das sociedades a se subordinar à ordem mundial única das finanças, pensada e executada pelo que foi definido, nestas colunas, como o “Politburo da Internacional Liberal”: FMI, Banco Mundial, G-7, OCDE, OMC, com sua seção “regional” que é a Comissão Européia [3].
Graças à intuição e à experiência, as quase 1.300 organizações do mundo inteiro, que haviam pedido uma auditoria na OMC e uma avaliação dos cinco anos de liberalização desde 1995, conseguiram assim penetrar no código — não secreto, mas nunca abertamente explicitado – do programa dos ultraliberais. De uma parte e de outra sabe-se em que bases se ancora o estatuto real do comércio. Entre os dois lados subsiste entretanto o discurso combinado da mídia e dos políticos, moldando ainda a maioria da opinião pública, para quem qualquer aumento de trocas é bom.
O episódio da carne com hormônios deveria ter despertado os mais letárgicos, de tal maneira ele patenteia o direito de intromissão e de ingerência de que dispõe a OMC nos espaços com os quais ela não tem, em princípio, nada a ver. A OMC põe-se assim a serviço da desregulamentação do setor da saúde pública, e como em outros campos, a imposição do livre comércio coloca em questão as legislações sociais e as ambientais. O comércio transforma-se então em vetor da desconstrução das regulamentações, tal qual a liberdade de circulação de capitais e a liberdade de investimento ao modo AMI.
A reflexão de Keynes
Este era o sentimento comum entre “os de Seattle”, os que lhes haviam delegado representação e um número cada vez maior de cidadãos de olhos arregalados. Se estavam de acordo sobre o diagnóstico e sobre o alvo — a OMC — não tinham ainda posição comum, longe disso, sobre as soluções alternativas às teses de livre comércio. Estas, no entanto, não resistem ao exame teórico nem à prova dos resultados. [4] Seattle foi a oportunidade para um laboratório de reflexões e de acordos internacionais, particularmente em suas implicações Norte/Sul, sobre as quais pode-se aqui apenas explorar algumas primeiras pistas. Faremos isso a partir desta reflexão de Keynes, já citada de várias maneiras: “Tenho simpatia pelos que querem minimizar, e não maximizar, o relacionamento econômico entre as nações. As idéias, o conhecimento, a arte, a hospitalidade, as viagens: são todas coisas que, pela sua natureza, são internacionais. Mas é bom que as mercadorias sejam de fabricação nacional sempre que seja possível e cômodo”. [5]
O grande economista formula aí uma idéia de tal modo evidente que ela acaba sendo esquecida: as únicas relações que contam entre os povos são as que se travam, de um país a outro, entre cidadãos, suas línguas, suas crenças, suas produções do espírito, das mãos e do corpo, e aquilo que há de específico em sua produção material. Estas relações encarnam-se prioritariamente nas pessoas e nas obras, e não em mercadorias e em serviços. Por acaso a fabricação de chips eletrônicos por operárias chinesas de firmas americanas ou européias da zona econômica especial de Shenzen contribui, em alguma coisa, para um melhor conhecimento da China pelos usuários de aparelhos de televisão ou de celulares do resto do mundo? E que imagem do Ocidente podem ter estas trabalhadoras a partir do que percebem, através do comportamento de alguns quadros expatriados impondo, por meio de seus zelosos funcionários investidos de poder local, cadências de trabalho e salários de sobrevivência cuja única finalidade é a “criação de valor” para os acionistas da empresa?.
O único protecionismo aceito pelo seu nome é o da recusa, proclamada ou implícita, de circulação de pessoas, obras e idéias. Em relação a isto, excetuando-se a Coréia do Norte, o país mais protecionista é sem dúvida os Estados Unidos, que importam apenas 2% de seu consumo audiovisual, que traduzem a conta-gotas os livros estrangeiros, cujas publicações e bases de dados científicos só marginalmente levam em conta os trabalhos dos pesquisadores do resto do mundo, e cuja mídia, com algumas prestigiosas exceções, ignora soberbamente – a não ser em caso de grave crise – o que se passa na Europa, na Ásia e sobretudo na África. No entanto, os maiorais de Hollywood e seus porta-vozes em Washington – coadjuvados, é preciso reconhecer, por certas “elites” do velho continente, principalmente francesas – descabelam-se na OMC contra a própria idéia de “exceção” e de “soberania” culturais, de cotas de difusão de obras européias, etc.
Para satisfazê-los plenamente seria necessário que 100% dos filmes projetados nos grandes e pequenos cinemas, bem como 100% das músicas ouvidas na Europa viessem do outro lado do Atlântico. É aliás, praticamente, o que já acontece em certos países da Europa de Leste. Há efetivamente neste caso um “atraso francês” a superar, pois os filmes americanos, conforme as datas de filmagem, representam ainda apenas 40% a 60% das rendas dos cinemas. Resultado: a única cultura popular verdadeiramente comum aos europeus é extra-européia. Isso recoloca em suas justas proporções a alegada ambição dos diferentes tratados fundadores da União Européia — desde o de Roma ao de Amsterdam — ao fixar como objetivo, em seus preâmbulos, uma união incessantemente mais estreita entre os povos da Europa. O núcleo desses tratados no entanto exalta a concorrência e o livre comércio, ou seja, a dissolução no espaço mundial.
No que concerne às mercadorias de fabricação nacional, mencionadas por Keynes quando a globalização liberal sequer era concebível, trata-se de uma reivindicação de total atualidade, com a condição de adaptá-la ao fim do milênio, quer dizer, levando em conta a extensão geográfica dos quadros potenciais de regulamentação econômica. Esta regulamentação, antes apenas possível no perímetro nacional, poderia ser exercida há muito tempo no marco da União Européia, se ela tivesse vontade. Orientada, no entanto, por tratados cada vez mais liberais, ela faz exatamente o inverso: a noção de preferência comunitária e de grandes políticas comuns não está mais em moda e o que subsiste na Política Agrícola Comum está em vias de desmantelamento.
Vantagens da produção local
Mesmo assim, se a União Européia fosse reorientada em um sentido voluntarista – trata-se apenas de uma eventualidade – poderia servir de referência a outros conjuntos regionais constituídos ou em vias de se constituir, tendo em vista a criação de zonas de livre comércio, mesmo de uniões alfandegárias, mas que poderiam também se dotar de certas atribuições políticas. Seria o caso do Mercosul, na América do Sul; de zonas reagrupando, por continente, os países da África, Caribe e Pacífico ligados à União Européia pelas convenções de Lomé; e da Associação das Nações do Sudeste Asiático (ANSEA). Por outro lado não se pode alimentar muito otimismo em relação ao acordo de livre comércio norte-americano (NAFTA), pois é discutível que Washington aceite dividir atribuições políticas com Ottawa e Cidade do México.
Reaproximar tanto quanto possível os lugares de produção dos lugares de consumo – sejam eles nacionais, o que é evidente para os gigantes demográficos como a Índia e a China, ou regionais, no sentido plurinacional do termo – corresponde a uma tripla exigência: democrática, social e ecológica.
A exigência democrática é simples de formular: cada país ou conjunto de países tem vocação para definir, ele próprio, suas escolhas de sociedade, que não são necessariamente idênticas, e para não deixar que elas lhe sejam impostas por meio da arma do comércio internacional. É necessário, portanto, o máximo de adequação entre o perímetro da intervenção dos cidadãos e o dos fluxos econômicos e financeiros, a fim de que uma regulamentação eficaz possa efetuar-se. O contra-argumento dos liberais é bem conhecido: como todos os regimes estão longe do modelo do Estado de Direito, a mão invisível do mercado serviria melhor às liberdades que os governos autocráticos.
Além do fato de que os povos não estão condenados pela eternidade a suportar tiranias, a cumplicidade nunca desmentida entre as finanças e as ditaduras retira qualquer credibilidade de tais discursos. A experiência leva, ao contrário, a pensar que os financistas apreciam particularmente os governos “enérgicos”, que sabem reprimir e prender opositores e sindicalistas, de modo a criar um clima de “confiança” para os investidores. O acordo entre Pequim e Washington – amanhã será com Bruxelas – para a entrada da China na OMC mostra o pouco caso em relação aos direitos humanos quando estão em jogo as únicas coisas que contam: os negócios.
As espirais de Todd
Emmanuel Todd mostrou como, em termos de rendimentos, o livre comércio, através da fusão das nações em um só mercado, conduz o fator de produção abundante – a mão-de-obra pouco qualificada – a uma espiral descendente, e os fatores de produção raros – capital e mão-de-obra muito qualificada – a uma espiral ascendente.
Permite-se, dessa maneira, o aumento de desigualdades importantes nos países desenvolvidos, melhor ainda, a introdução dentro deles das desigualdades mundiais. O autor acrescenta que, separando geográfica, cultural e psicologicamente a oferta da demanda, o livre comércio cria um universo econômico no qual o empreendedor não tem mais o sentimento de contribuir, através dos salários que ele paga, para a formação de uma demanda global em escala nacional [6] . Este desemparelhamento é destruidor das solidariedades e das responsabilidades, portanto dos fundamentos da cidadania. Os reencontros entre a empresa e o território também são uma condição da democracia.
Não é nada surpreendente que o comércio eletrônico, que impulsiona a extrema desconexão espacial entre o produtor, o vendedor e o comprador, se beneficie da solicitude dos liberais – que vêem nele a expressão desse mercado perfeito, mas até hoje presente apenas nos manuais de economia -, bem como da dos cyberbeatniks que, fascinados pela tela e pelo teclado, esquecem que um livro ou uma panela não mudam de natureza, seja se os encomendamos on line, seja se os compramos em uma livraria ou em um supermercado. As conseqüências fiscais desse comércio podem vir a ser consideráveis, se as previsões da OCDE – ou seja, um volume de um trilhão de dólares em 2003, um sexto das trocas anuais mundiais atuais – se realizarem. [7]
Os bens transmissíveis pela via eletrônica — livros, discos, filmes, programas de computador, etc. — e reconstituídos no ponto de chegada, escapam, com efeito, a impostos como o ICMS, e contribuem para a pauperização dos Estados, e portanto dos serviços públicos. As conseqüências sociais não serão menos graves: será o fim do comércio, e não apenas no varejo, dos setores citados, os infelizes que subsistirem sendo submetidos ao pagamento de impostos. O comércio eletrônico, se não for objeto de uma regulamentação muito estrita, vai se transformar em máquina de guerra contra o que resta de coesão social. Dando o tom neste tema, o presidente Clinton assinou, em outubro de 1998, uma lei estabelecendo uma moratória de três anos para a taxação de vendas pela Internet !
Eletrônico ou não, o comércio de bens materiais implica sempre em um encaminhamento em direção ao comprador final. Quanto maior é a distância entre seu domicílio e o local de produção, mais são necessários meios de transporte, mais consumo de energia, em geral não renovável, e mais se emite gás carbônico agravando o efeito estufa. O navio afundado Érika constitui, nesse sentido, um caso exemplar e, por uma vez, estaremos de acordo com Claude Imbert, editorialista do Point, quando escreve: A proliferação do transporte marítimo é apenas uma metamorfose, entre cem outras, da mundialização das trocas; mas não o seguiremos quando acrescenta: É inútil, aí como em qualquer outro caso, diabolizá-la: ela é incontornável [8].
O transporte não é, no entanto, o único fator que contribui para a degradação do meio-ambiente pela “proliferação” – a palavra é exata – de um comércio que transfere os custos ecológicos ao conjunto da sociedade, no lugar de os internalizar nos preços. Os investidores apreciam os países onde se pode saquear impunemente as florestas, as águas, os solos, e onde as legislações ambientais são displicentes, ou não são aplicadas. Afinal não se trata, no caso, de uma “vantagem comparativa” como qualquer outra, suscetível de atrair capitais em direção aos países pobres? Este discurso cínico é feito não apenas pelos capitalistas predadores e seus porta-vozes, mas também por certos governantes de países “emergentes”, cuja firmeza em relação às multinacionais e determinação para resistir a todas as tentações estão, evidentemente, acima de qualquer suspeita… A idéia de introduzir cláusulas ecológicas nos acordos comerciais e a recusa em deixar que as trocas tomem o meio-ambiente como refém não conviriam a estes governantes, mas isso não é uma razão para renunciar a elas.
As cláusulas sociais e ambientais
A aplicação de cláusulas ecológicas tem por base a mesma lógica das cláusulas sociais: trata-se de utilizar o vetor do comércio, o único levado a sério pelos Estados – que permanecem impassíveis face às eventuais observações ou condenações da Organização Internacional do Trabalho (OIT) ou da Sub-Comissão dos Direitos Humanos da ONU. Como no judô, deve-se utilizar a própria força do comércio para fazê-lo desempenhar um papel exatamente inverso do que foi até agora o seu. Ao invés de contribuir para a destruição do meio-ambiente, ele a desencorajaria, através de medidas dissuasivas. Ao invés de fechar os olhos para o trabalho das crianças e dos presos, para a proibição de sindicalização, para as desigualdades entre homens e mulheres, etc., ele neutralizaria as “vantagens comparativas”.
Foi a menção às cláusulas sociais feita pelo presidente Clinton, ao chegar a Seattle, que incendiou as mentes de certas delegações do Sul. A frente de oposição é enorme, tanto no que concerne a esta questão quanto à das cláusulas ecológicas, agrupando parceiros inabituais. Encontram-se aí governos e patronato de numerosos países do Sul, especialmente os da China e da Índia; a totalidade dos dirigentes das multinacionais, como por exemplo Robert J. Eaton, co-presidente da Daimler-Chrysler, que respondeu a Clinton: “Impossível! Não se pode tomar as condições de trabalho e de emprego de um país e impô-las a um outro” [9]; o Financial Times: “Os objetivos sociais ficariam freqüentemente em conflito com os objetivos do livre-comércio” [10], afirmação que ao menos é sincera; cerca de três quartos dos quadros dirigentes das empresas da Ásia Oriental [11]; e intelectuais do Sul, aderentes do programa de Jagdish Bhagwati, professor de economia na Universidade de Columbia e personalidade onipresente na mídia anglo-saxônica, onde desempenha o papel do terceiromundista de serviço à favor do livre comércio. Mas este saco de gatos é composto ainda de sindicalistas do Sul, bem como de pesquisadores e responsáveis de associações do Norte, como por exemplo o jornalista e economista Denis Horman [12].
O fato de que a União Européia e o presidente Clinton – para angariar a boa vontade dos sindicatos – tenham se pronunciado a favor de tais cláusulas, e de que certos sindicalistas do Sul tenham sido contra é suficiente para desacreditá-las? Isso seria absurdo. Toda questão reside em saber quais seriam os critérios levados em conta, o tipo de medidas a tomar e as instituições que as aplicariam. Tal como o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) o fez para o desenvolvimento humano, poderiam ser elaborados pela OIT indicadores apropriados para o respeito às convenções que a maioria dos seus membros assinaram, e pelo Programa das Nações Unidas para o Meio-Ambiente (PNUM), com relação ao grau de proteção ao meio natural. Neste último caso, seria necessário utilizar os trabalhos dos economistas que não se satisfazem com o chocante princípio do “poluidor-pagador” e que integram nos preços a totalidade dos custos, especialmente os do transporte, grosseiramente subvalorizados. É, com efeito, urgente reduzir a circulação de aviões, caminhões e navios transportando a frete, o que é justamente o contrário do que se passa: na França o tráfego feito por caminhões nas auto-estradas aumentou em 6% em 1999!
Quanto às medidas a tomar a partir desses critérios – que poderiam igualmente servir a outros fins, como, por exemplo a taxação dos investimentos diretos no exterior, tal qual propôs em suas colunas o professor Howard M. Wachtel [13] – elas são freqüentemente apresentadas sob sua forma punitiva, alimentando assim a acusação de “protecionismo”. Tal acusação perderia muito de sua pertinência num sistema comercial mundial menos hipertrofiado, no qual seriam privilegiadas as dimensões nacional e regional das trocas.
Sem vantagens para explorar
Há alguns anos, foram feitas propostas por Maurice Lauré, o criador da TVA [14], retomadas especialmente por Pierre-Noël Giraud, professor na Escola de Minas de Paris, de um protecionismo “altruísta” que permita ao mesmo tempo proteger os modelos sociais mais avançados – e portanto os mais ameaçados pela globalização liberal – e os interesses dos trabalhadores do Sul [15]. Seria o caso de introduzir um novo sistema de tributação, através da aplicação de uma combinação de indicadores da OIT e do PNUM, bem como eventualmente os do PNUD, e de transferir as quantias assim obtidas, seja ao país de origem, conforme condições estritas de utilização para fins sociais, ambientais ou educacionais, seja a organizações internacionais e/ou regionais que os utilizariam no país respectivo segundo as mesmas condições.
Esses tributos seriam variáveis conforme os países, ou conjuntos de países, em função de suas “notas” respectivas fixadas pelos indicadores, eles próprios regularmente atualizados para levar em conta os progressos e recuos nas legislações e práticas sociais. Dessa forma, entre dois países ou mercados comuns com as mesmas notas, boas ou ruins, as tributações seriam anuladas. Entre a União Européia e a China elas seriam sem dúvida elevadas. Esse sistema de tributação – que até a conclusão da Rodada do Uruguai era um dos fundamentos da Política Agrícola Comum européia, estabelecida em 1962 – substituiria o das tarifações e o conjunto de regras da OMC, especialmente a “cláusula do tratamento nacional”, isto é, a proibição de dar preferência aos produtores nacionais, devendo os estrangeiros ser tratados da mesma maneira, e a “cláusula da nação mais favorecida”, pela qual é proibido discriminar países que não respeitam o meio-ambiente ou os direitos sociais e trabalhistas. Neutro e transparente, esse sistema harmonizaria as condições de acesso aos mercados e suprimiria os bônus à exportação de mão-de-obra que constituem diferenciais impressionantes nas condições de trabalho e de remuneração entre países. Poderá objetar-se que ele é complicado de elaborar e aplicar. Sem dúvida, porém não mais do que a aplicação das múltiplas tarifas atuais. Além disso, este trabalho ocuparia os funcionários da OCDE e da OMC de maneira mais útil que suas atividades atuais. As instituições adequadas para gerir tal sistema deverão ser imaginadas, tal como as necessárias para a gestão e aplicação do Tributo Tobin, mas estamos diante de um laboratório de discussões internacionais, mais estimulantes para todos, em particular para os sindicatos e movimentos de cidadãos, que as que atualmente se travam nas organizações internacionais. A aplicação mecânica dos critérios quantitativos de tributação deveria ser complementada pelas preferências fiscais concedidas às iniciativas qualitativas, tais como as diversas formas de comércio justo, dotadas do selo internacional Max Havelarr, que favorecem as ligações diretas entre produtores, em primeiro lugar do Sul, e consumidores, sobretudo do Norte. [16]
O reembolso, sob uma forma ou outra, do montante dessas tributações constituiria um poderoso estímulo para o aprimoramento das normas sociais e ambientais, contrariamente ao que se passava entre a Política Agrícola Comum européia (PAC) e os países de origem dos produtos. É que já não seria “vantajoso” empurrar essas normas para baixo. Teria ainda um
Bernard Cassen é jornalista, ex-diretor geral de Le Monde Diplomatique e presidente de honra da Atacc França.