Invisibilidade das pessoas com deficiência
Para idosos e pessoas com deficiência, a sensação de isolamento não é uma fase temporária. Essa experiência diária de confinamento e exclusão é, infelizmente, a norma.
Na terra onde a injustiça social impera, o desemprego aumenta e as políticas de assistência social sofrem com o abandono do governo, o coronavírus chegou de avião, trazido pela classe média, que retornava das suas férias em voos internacionais, mexendo com a estrutura de todo o país.
Desde que a Covid-19 foi declarada, no dia 11 de março, pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como uma pandemia, diversos países adotaram medidas de proteção com base no distanciamento social e, de repente, pela primeira vez em muito tempo, as pessoas passaram a enfrentar o sentimento de isolamento e exclusão da vida cotidiana.
Mas, para muita gente, como idosos e pessoas com deficiência, a sensação de isolamento não é uma fase temporária. Essa experiência diária de confinamento e exclusão é, infelizmente, a norma.
E, à medida que profissionais e especialistas em saúde enfatizam a necessidade do distanciamento social no combate ao novo coronavírus, familiares e trabalhadores que cuidam de pessoas com deficiência são confrontados com essa árdua tarefa.
Em Hubei, na China, o jovem Yan Cheng, aos dezesseis anos, vivia com uma forma extrema de paralisia cerebral, não conseguindo mexer o corpo, falar ou cuidar de si mesmo. Seu pai era o único cuidador. Em meados de janeiro, ele ficou preso em casa, pois seu pai apresentava sintomas da Covid-19, e foi colocado em uma instalação de quarentena. Durante a semana seguinte, ele recebeu apenas duas refeições, apesar do apelo do seu pai na plataforma de mídia social local Weibo. O jovem morreu sozinho em casa, de acordo com o jornal estatal Beijing Youth Daily.
Atenção redobrada
Presidente da Associação Paraibana de Autismo (APA) e mãe de um jovem autista de 14 anos, Hosana Carneiro conhece bem essa realidade. Ela explica que o isolamento social já era uma realidade para quem possui algum parente com deficiência. Mas o que difere o momento atual é o medo de contrair a doença e não dispor de pessoas capacitadas para cuidar de quem necessita de atenção redobrada.
“Meu filho tem um grau de autismo que varia entre moderado e mais grave, a depender da ocasião. O lado mais grave é justamente o convívio social, que me traz muitas dificuldades, por exemplo, quando preciso resolver alguma coisa. Antes do isolamento obrigatório tínhamos uma babá, mas por também fazer parte do grupo de risco, nós a dispensamos. Ela era muito importante, porque me permitia ter tempo para ir à feira, ir ao médico e até me divertir um pouco, mas nesses dias isso não é mais possível. É difícil o isolamento social para a família do autista, porque eles não conseguem entender o que está acontecendo, por mais que a gente tente explicar. Eles querem sair de casa, fazer as atividades, ir à escola, ir à praia e tantos outros aspectos que traziam mais leveza no dia a dia”, destacou.
Hosana ressalta que o Poder Público necessita ter um olhar diferenciado para as mães, pais e cuidadores das pessoas com deficiência. “Nós não podemos adoecer, porque não haverá quem possa cuidar dos nossos filhos. E se eles adoecerem da covid-19, não poderão ficar sozinhos em isolamento ou na UTI, então tudo é uma dificuldade extrema. Precisamos ser prioridade inclusive na vacinação contra a H1N1. Nossas crianças estão sempre com as mãos na boca, levando brinquedos à boca, deitados no chão, então eles não compreendem a importância de higienizar as mãos todo o tempo, o que torna o isolamento um desafio e tanto. Tenho medo pelo meu filho, tenho medo pela economia e a falta de alimentos e remédios para ele, e também para quem precisa”, alerta.
O “distanciamento social” e o “isolamento social” são recomendados para todos. Mas, em algumas circunstâncias, a pessoa com deficiência não conseguirá seguir as medidas, uma vez que muitos desses indivíduos dependem de outras pessoas para atender aos requisitos fisiológicos. É irracional esperar que uma pessoa com deficiência intelectual lide isoladamente com seu tutor.
Comunicação mais acessível
O Relatório Mundial sobre a Deficiência estima que existam mais de um bilhão de pessoas com deficiência no mundo e cerca de 80% dessas pessoas vivam em países em desenvolvimento, como em países da América Latina.
De acordo com a releitura analítica dos dados das pessoas com deficiência no Censo 2010, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística indicou que a proporção das pessoas com deficiência na população brasileira é de 6,7%. Anteriormente era de 23,9%. Após sugestões veiculadas pelo Grupo Washington (GW) de Estatísticas sobre Deficiência (disponibilizado pela Comissão de Estatística da ONU), o Censo passou a considerar o grau de dificuldade enfrentado por essas pessoas para que consigam (ou não) participar da vida em sociedade. Com a linha de corte do GW, a proporção de pessoas com deficiência é 12,7 milhões, diferentemente dos 45,6 milhões (23,9%) representados sem aplicação da linha de corte.
A pandemia do novo coronavírus também trouxe a tona o debate de uma comunicação mais acessível às pessoas com deficiência. A acessibilidade das pessoas com deficiências não se resume a adaptação de prédios, vias e transporte. Ter uma comunicação acessível também é essencial para a verdadeira inclusão. É cada vez mais necessário usar tecnologias digitais, audiodescrição e intérprete de libras nos meios de comunicação, peças teatrais e, principalmente, em serviços básicos de organizações públicas e privadas.
A Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (LBI) “assegura atenção integral à saúde da pessoa com deficiência em todos os níveis de complexidade” e informação adequada e acessível sobre sua condição de saúde (Art. 18. § 4º VIII). A LBI também garante acessibilidade a ambientes diversos, inclusive nos sites “da internet mantida por empresas com sede ou representação comercial no País ou por órgãos do governo […] conforme as melhores práticas e diretrizes de acessibilidade adotadas internacionalmente (Art. 63)”; e nos serviços de radiodifusão de sons e imagem, que “devem permitir o uso de sub-titulação por meio de legenda oculta, janela com intérprete de libras e audiodescrição (Art. 67)”. As regras existem. Mas raramente são cumpridas.
Para Suzi Belarmino, presidente do Conselho Estadual dos Direitos da Pessoa com Deficiência (CEDPD), a simples recomendação de como lavar as mãos corretamente não chega de forma clara às pessoas que possuem deficiência visual. “Há muita informação disponível, isso não pode negar. Mas o que nós, pessoas cegas sentimos falta, é a descrição. Existem vários vídeos importantes alertando sobre os meios de prevenção contra o coronavírus, mas, nós não conseguimos enxergar as imagens, então para nós se torna um vídeo perdido. O óbvio nós entendemos, que é lavar as mãos, as roupas, usar álcool gel, máscara e etc., mas, são muitas as dificuldades que as pessoas cegas encontram nesse processo”.
Suzi também participa de diversos grupos nacionais de pessoas cegas, como o Fórum dos Conselhos Estaduais, e conta que há muitas iniciativas louváveis para incluir as pessoas com deficiência nas informações divulgadas. “Devido às dificuldades que encontramos, resolvi pedir para uma amiga me explicar à forma correta de lavar as mãos, passo a passo. Tive muitas dificuldades para entender coisas que para outros parecem simples. Então, como forma de ajudar outras pessoas cegas, resolvi fazer um tutorial escrito, transformando as imagens em palavras, porque audiodescrição consiste nisso. E esse é um dos nossos maiores desafios diários, pois precisamos nos valer de metáforas”, afirma.
Discriminação estrutural
A Organização das Nações Unidas (ONU) lançou um alerta sobre as pessoas com deficiência e o coronavírus, afirmando que para enfrentar a pandemia é crucial que as informações sobre como prevenir e conter a doença sejam acessíveis a todos. A relatora da ONU, Catalina Devandas, chamou a atenção de governantes em todo o globo sobre a maior responsabilidade com essa população por causa da discriminação estrutural que enfrentam, enfatizando que é fundamental estabelecer protocolos para emergências de saúde pública, a fim de garantir que pessoas com deficiência não sejam discriminadas no acesso à saúde.
A pessoa com deficiência é um segmento da população sujeito a maior risco, sobretudo, em razão das fragilidades físicas, notadamente aquelas que resultam em insuficiência e/ou dificuldade respiratória. Pessoas com condições genéticas ou neurológicas e que tomam remédios específicos têm restrições respiratórias ou dificuldades profundas de comunicação, precisam ser monitoradas com atenção redobrada.
Essa recomendação é voltada principalmente para quem tem seqüelas graves provocadas por paralisia cerebral, síndrome de Down, Transtorno do Espectro Autista (TEA), Doença Pulmonar Obstrutiva Crônica (DPOC), Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA), Atrofia Muscular Espinhal (AME), Esclerose Múltipla (EM), distrofias musculares e outras semelhantes.
Outra parcela que vem sendo bastante prejudicada são as pessoas surdas ou com deficiência auditiva. De acordo com a Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) 2013, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), cerca de 2,2 milhões de pessoas declararam ter deficiência auditiva. O grupo representa 1,1% da população brasileira.
Representante da Associação de Surdos de João Pessoa, Elizângela Lima destacou uma vivência particular recente, em um posto de saúde da capital paraibana. De acordo com ela, não havia ninguém específico para interpretar as informações. Elizângela também ressaltou que a comunidade surda já está formulando uma campanha para solicitar às autoridades que os meios de comunicação possuam intérpretes nesse momento de pandemia.
“Para ser atendida, foi preciso que eu ficasse atenta, pois sequer me colocaram como preferencial. Achei que as pessoas sabiam que a pessoa surda pode ser colocada nessa fila, mas ao contrário, tive que me virar e tentar buscar algum tipo de informação no balcão. Ainda consigo fazer leitura labial, mas me preocupo com quem não consegue. O médico, por exemplo, estava de máscara, conforme recomendado. Foi um teste de paciência para ele e para mim”, frisou.
Única parlamentar estadual com deficiência no Brasil, Cida Ramos revela que não foi fácil ocupar uma cadeira na Assembleia Legislativa da Paraíba e que todos os dias precisa reafirmar sua capacidade humana e profissional, pois os espaços públicos e privados, por vezes, reforçam a discriminação.
“Ao mesmo tempo em que os meios de comunicação informam uma parcela da população, excluem os que não enxergam, os que não ouvem, os que não sabem ler ou não conseguem compreender o significado das notícias, por não praticarem a comunicação inclusiva. Nós já convivemos com a falta de acessibilidade ao sair de casa, andar pelas ruas da cidade e utilizar o transporte público. Somos obrigados a lidar com as limitações e barreiras impostas pelo poder público e pela sociedade, que não proporcionam às pessoas com deficiência políticas públicas inclusivas que nos crie as condições para desenvolvermos nossas potencialidades. Precisamos garantir que todo os meios de comunicação e transmissão de informação sejam totalmente acessíveis, para que as pessoas com deficiência possam usufruir dos mesmos benefícios de qualquer outra pessoa. É dever do poder público assegurar e promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais”, salientou a parlamentar.
O direito à acessibilidade é essencial à dignidade da pessoa com deficiência e o nosso país possui uma das melhores legislações voltadas a essa garantia, contudo, falta aplicação e fiscalização. No período da quarentena, temos a oportunidade de aproveitar os aprendizados dessas últimas semanas e criar novos sistemas que incluam pessoas com deficiência. Temos que reconhecer o valor de todos, para que ninguém fique para trás.
Anne Nunes é graduada em Comunicação Social pela Universidade Federal da Paraíba e Pós-graduada em Comunicação e Marketing Político. Wendel Limeira é graduado em Comunicação Social pela Universidade Federal da Paraíba com habilitação em Rádio e Televisão.