Irã, inimigo número um do Ocidente?
Desde 1948, as relações entre israelenses e iranianos têm momentos de proximidade e distanciamento,
a depender da postura dos Estados Unidos na região. Antes tida como aliada para contrabalançar o peso
dos Estados árabes, há cerca de dez anos Teerã recebeu a alcunha de “ameaça” permanenteAlastair Crooke
Nossas relações com o Irã eram
muito estreitas e bem ancoradas
no tecido social dos dois povos”,
lamentou um alto funcionário do
estado israelense logo após o Aiatolá Khomeini conquistar o poder, em
1979. Na época, Teerã aparecia como um
interlocutor natural, tanto para Tel-Aviv
como para Washington. Trinta anos mais
tarde, porém, as autoridades políticas ocidentais e o governo de Israel consideram o
Irã uma ameaça crescente. O que teria
ocorrido no caminho?
Para David Ben Gurion, fundador de
Israel, seu estado faria parte da Europa e
não do Oriente Médio, onde se encontrava
por um “acidente geográfico”. “Nós não temos laços com os árabes”, afirmava. “Nosso sistema político, nossa cultura, nossas
relações não são fruto dessa região. Não há
afinidades entre nós, nem solidariedade
internacional [1].”
Logo após a criação de Israel, aliás, Ben
Gurion tentou convencer Washington de
que seu país representava um trunfo estratégico no Oriente Médio. Mas o então presidente norte-americano, Dwight Eisenhower
(1953-1961), preferiu ignorar essas pretensões, convencido de que os Estados Unidos
estariam mais tranquilos se defendessem
seus interesses sem a ajuda israelense.
Em resposta, Ben Gurion elaborou o
conceito de “alianças periféricas”, que visava contrabalançar o peso dos Estados árabes por meio da aproximação com o Irã, a
Turquia e a Etiópia. Ele queria, assim, provar
a capacidade dissuasiva de seu país, reduzir
seu isolamento e torná-lo mais atrativo como “trunfo” para os americanos.
Paralelamente a essa doutrina, Ben Gurion desenvolveu outra ideia: a da “aliança
das minorias”. Considerando não apenas os
turcos e os persas, mas também os judeus,
os curdos, os drusos, os cristãos maronitas
do Líbano etc., ele vislumbrava um horizonte onde a maioria da população do Oriente
Médio não seria árabe. Para chegar lá, era
preciso encorajar o desejo de autonomia nacional e criar ilhotas de aliados em um oceano de nacionalismo árabe.
Foi nesse contexto que se forjou a aliança “natural” com o Irã. em seu livro Treacherous Alliance [2], o pesquisador Trita Parsi examina os aspectos concretos da cooperação
entre Israel e o Xá Reza Pahlavi, em particular quanto à ajuda militar aos insurgentes
curdos do Iraque entre 1970 e 1975, que teve
como objetivo enfraquecer este país. Israel e
Irã compartilhavam um sentimento de “superioridade cultural” em relação às nações
árabes, ainda que essa afinidade tivesse seus
limites: o Xá, soberano de um país muçulmano, insistia para que suas relações continuassem discretas, o que provocava a irritação de Tel-Aviv.
Pragmatismo de Khomeini
Por mais surpreendente que possa parecer, tal afinidade perdurou após a revolução
iraniana, incitando até mesmo autoridades
israelenses de direita – especialmente o primeiro-ministro Menahem Begin – a estender a mão aos novos dirigentes de Teerã. o
pragmatismo do Aiatolá Khomeini em relação à política estrangeira justificava sua posição: cercados por árabes hostis – a guerra
com o Iraque havia começado em setembro
de 1980 -, os iranianos só enxergavam a necessidade de uma relação amigável com Israel e as vantagens tecnológicas que poderiam
tirar dali, sobretudo no que diz respeito a armamentos. Para o ex-dirigente do Mossad,
Yossi Alpher, a lógica da periferia estava tão
“profundamente ancorada” na mentalidade
israelense que se tornara “instintiva”. Com
essa certeza, Israel persuadiu os Estados
Unidos a fornecer armas a Teerã nos anos
1980, prelúdio do escândalo do Irã-Contras [3].
A visão que predominava então era a do
dirigente sionista “revisionista” Vladimir Jabotinsky. Este, em seu famoso artigo de 1923
sobre o “Muro de Ferro”, afirmava que o entendimento com os árabes era impossível.
Como Jabotinsky, Begin acreditava que Israel não tinha outra forma de se impor senão
por sua hegemonia militar – com o apoio
norte-americano, claro. Para ele, somente a
consciência, entre os árabes, de sua derrota,
“e somente quando não houver mais esperança de se livrar de nós, somente nesse momento eles deixarão cair seus líderes extremistas e emergirão os moderados que
aceitarão concessões mútuas”.
Por outro lado, a direita israelense continuou tentando pôr em prática a estratégia
da “aliança das minorias” na região. Assim,
em 1982 Ariel Sharon comandou a invasão
do Líbano com o objetivo de destruir a organização para a Libertação da Palestina
(OLP) e instalar um poder maronita em
Beirute – infligindo à Síria uma derrota arrasadora. estratégia perigosa e mal calculada, pois precipitou o declínio dos maronitas e deu impulso à mobilização Xiita no sul
e no Vale do Bekaa, de onde emergiu o Hezbollah. O despertar das minorias iria se voltar contra Israel…
Paralelamente ao fracasso da aventura
libanesa, as relações de Israel com a periferia – pelo menos com o Irã – declinavam. essa virada resultava de uma má leitura, partilhada, aliás, com os Estados Unidos: no
ocidente, a revolução islâmica, entendida
como uma ruptura da progressão histórica
em direção à modernidade laica ou como
uma reação contra essa modernidade, era
considerada uma aberração que seria corrigida com o tempo. Considerava-se que o
fundamento ideológico da revolução islâmica estava “oco” e que os “pragmáticos” logo
a recolocariam no direito caminho do progresso material – única opção imaginável
para os ocidentais. Tel-Aviv e Washington
então procuravam febrilmente sinais de
pragmatismo em Teerã.
Na realidade, a ideia de uma “modernidade” materialista ao modo ocidental era o
que os dirigentes iranianos mais rejeitavam,
desejosos de ver triunfar outra concepção na qual os muçulmanos definiriam seu futuro político e social. Mas, se as autoridades
no poder em Teerã se opunham totalmente
à visão de sociedade dos ocidentais e aos
seus esforços de propagação de uma cultura
laica, materialista e economicamente liberal – para muitos iranianos, era esta, na verdade, a perspectiva arcaica que cheirava a
colonialismo -, isso não era sinônimo de
oposição sistemática aos israelenses. A revolução não tinha ambição regional agressiva
e não ameaçava Israel ou os Estados Unidos
em um plano militar convencional.
Reviravolta Radical
Em 1988, ao término de uma guerra caótica e absurda que durou oito anos, o Irã assinou um cessar-fogo com o Iraque. Entre
1990 e 1992, dois eventos tiveram repercussões em toda a região: a queda da União Soviética e a derrota de Saddam Hussein na
primeira Guerra do Golfo (1990-1991). Desapareceram, assim, ao mesmo tempo, a ameaça russa sobre o Irã e a ameaça iraquiana
sobre Israel. Irã e Israel tornavam-se a partir
de então rivais na região, no momento em
que os Estados Unidos afirmavam-se como
uma superpotência, única e incontestável.
Tel-Aviv temia acima de tudo ser vista como uma desvantagem pelos Estados Unidos
– durante a Guerra do Golfo, Washington tinha pressionado Israel para não revidar os
mísseis iraquianos que bombardearam seu território. Por outro lado, a perspectiva de
uma hegemonia regional iraniana era uma
ameaça para a supremacia militar israelense
e criava a possibilidade de uma reaproximação perigosa entre Teerã e Washington.
Em 1992, quando o governo trabalhista
dirigido par Itzhak Rabin tomou a decisão
de abandonar a estratégia da periferia e promover a paz com os árabes, houve uma reviravolta radical. “O Irã deve ser identificado
como o inimigo número um”, declarou Yossi
Alpher, então conselheiro de Rabin, ao The
New York Times. A partir daí, Israel e seus
aliados na América do Norte não cessaram
de acusar Teerã de tentar desenvolver a arma nuclear. Em 1999, Shimon Peres advertiu
a comunidade internacional de que o Irã teria a bomba atômica.
Entretanto, diversos membros da administração do governo Clinton e certo número de personalidades do Establishment israelense continuavam céticos. Ex-oficial dos
serviços de informação israelenses, Shlomo
Brom explicou a Trita Parsi, em um tom irônico: “Lembre-se de que os iranianos estão
sempre a cinco ou sete anos da bomba”.
Israel decidiu então negociar com Yasser
Arafat e os Estados Unidos desenvolveram
uma estratégia paralela: suscitar o realinhamento pró-ocidental de alguns Estados árabes mobilizados contra os inimigos situados
na “periferia” – bárbaros que atacavam os
valores, as instituições e as liberdades da civilização ocidental, estando em primeiro lugar o Irã. O plano foi acelerado com a vitória
de George W. Bush em novembro de 2000.
Propostas rejeitadas
O poder norte-americano era o instrumento
que iria “anunciar o fim da revolução iraniana”, segundo a fórmula utilizada por William
Kristol, um eminente comentarista conservador, em maio de 2003. A derrota iraniana
permitiria matar dois coelhos com uma cajadada só: enfraqueceria, ao mesmo tempo,
o moral dos árabes e muçulmanos e a resistência islamita. Todo o Oriente Médio cairia,
como numa partida de dominó.
Não é surpreendente, então, que, apesar
da cooperação de Teerã com Washington na
Guerra do Afeganistão (2002) e na Guerra do
Iraque (2003), as tentativas iranianas de
chegar a um “acordo global” com os Estados
Unidos tenham sido todas rejeitadas ou
comprometidas por membros do governo Bush. A proposta iraniana de 2003 de
abrir negociações entre os dois países sobre
diversos pontos – programa nuclear, apoio
ao Hamas e ao Hezbollah, reconhecimento
de Israel, ingerências norte-americanas etc. – foi
apenas a reformulação de uma anterior de
entabular uma discussão sobre todas as
questões que eram objeto de desacordo entre esses países.
Mas a compreensão do episódio de
2003 como o sinal de que “a pressão pesava” sobre o Irã, de que a ocupação do Afeganistão e do Iraque tinha impelido Teerã
a desfazer seus laços com a resistência e
aceitar Israel, se apoia numa má interpretação de Washington, que se fechou em
uma visão maniqueísta: os “moderados”
da região contra o “extremismo” islamita.
Isso resultou na polarização da região em
dois blocos.
Na
Alastair Crooke é ex-conselheiro especial de Javier Solana (1999-2003), ex-membro da Comissão Mitchell nomeado pelo presidente Bill Clinton para investigar as causas da Segunda Intifada (2000-2001).