Jogos perigosos
Em 1977, para compensar a falta de competitividade de suas empresas nos mercados estrangeiros, o governo francês autorizou a prática da corrupção, oficialmente denominada “comissão”, desde que a quantia envolvida fosse paga a um funcionário estrangeiroPierre Abramovici
Envelopes vermelhos na China, bakchich nos países árabes, matabiche na África central, payola nas Filipinas, propina na América Latina, ou simplesmente um trocado, as expressões que designam a corrupção são incontáveis. [1] E como defini-la? Para Daniel Bertosa, procurador de Genebra, trata-se “tecnicamente, do ato que consiste em prometer ou oferecer alguma vantagem a um servidor público, funcionário, ministro, dirigente de uma empresa pública, de forma a que este viole os deveres que tem para com a coletividade pública que representa. O corruptor ativo é quem promete ou paga a dita vantagem. O corrupto é o servidor público que trai seus deveres. Existe um vínculo entre a promessa de vantagens e a traição dos deveres”.
Ninguém sabe ao certo o peso que tem a corrupção na economia internacional. De acordo com uma estimativa do Banco Mundial, a quantia total, por ano, seria de 80 bilhões de dólares — sem considerar o desvio de fundos para o desenvolvimento e a corrupçãozinha meia-boca, bastante praticada nos países emergentes, na forma de impostos suplementares repassados para policiais, agentes alfandegários, funcionários públicos, políticos etc. às custas de seus concidadãos.
Corruptores e corrompidos
Em termos de comércio internacional, a prática é antiga — e, por assim dizer, banal, desde a invenção do escambo. Samuel Pepys, primeiro lorde do Almirantado britânico (1633-1703), achava que um suborno só era sério se fosse discretamente passado “por baixo da mesa”. Uma concepção que, na verdade, pouco mudou. A corrupção continua sendo um dado econômico, nas transações internacionais, como qualquer outro, ainda que o fenômeno se tenha agravado desde a época da descolonização, na década de 60. Isso é particularmente evidente no caso da França, na África. Aliás, os empresários ocidentais tendem a ver a corrupção nos países do Terceiro Mundo como um fato inevitável.
De uma forma sumária, poderia dizer-se que os corruptos são as instituições dos países emergentes, enquanto os corruptores seriam as empresas dos países ricos. Como dizia alegremente, em 1999, um ex-ministro do Chade, “é preciso dois para dançar”.
O direito de corromper
Na verdade, segundo um especialista em negócios africanos, essa corrupção “tranqüila” não passa de um embuste. “Se alguém corrompe, é porque não tem condições de lutar, preferindo assim preservar-se de mercados protegidos — sob a pena de ser afastado do cargo por não existirem condições de pagar as comissões exorbitantes exigidas pelos nossos clientes.”
Em meados da década de 70, o aumento vertiginoso do preço do petróleo levou a França a um déficit comercial crônico. A balança comercial tornou-se um índice mágico e a ideologia das vendas superou uma moral convalescente, bem como qualquer outro tipo de princípio ideológico. Em 1977, para compensar a falta de competitividade de suas empresas nos mercados estrangeiros, o governo francês — acompanhado por todos os outros governos europeus — autorizou a prática da corrupção, oficialmente denominada “comissão”, desde que a quantia envolvida fosse paga a um funcionário estrangeiro. Passou-se, portanto, a ter o direito de corromper legalmente desde chefes de Estado, e seus ministros, até o mais baixo escalão da hierarquia de outro país, em nome de lutar contra os concorrentes — isso graças a um artifício fiscal que permitia, pura e simplesmente, deduzir o suborno dos impostos.
Corrupção com seguro
Uma declaração à administração geral dos portos encarregada de fiscalizar mercadorias envolvidas em negócios comerciais permitia a um empresário depositar parte do pagamento referente aos custos em outra conta — normalmente num banco de outro país, ou do país de venda. Esse mecanismo era designado por um eufemismo: despesas comerciais excepcionais (Frais Commerciaux Exceptionnels — FCE)! Um estudo de jurisprudência feito pelo Conselho do Estado em 1983 confirmou que os valores envolvidos eram dedutíveis, desde que tivessem sido pagos no interesse da empresa. Jacky Darne, deputado que apresentou um projeto de lei contra a corrupção de funcionários estrangeiros, desabafou: “É contra os interesses gerais e é contra a moral. Mas, no sentido estrito do termo, pode ser considerado de interesse da empresa.”
Até 1986, a administração dos portos enviava ao ministro do Orçamento uma carta de transmissão. O ministro dava sua autorização, que permitia a cobertura, através de um seguro-crédito, da Companhia Francesa de Seguros para o Comércio Exterior (Coface). Desta forma, o contribuinte pagava a fatura caso o cliente não efetuasse o pagamento — inclusive a taxa de corrupção. A recusa por parte do Ministério não impedia a transação nem o pagamento da “comissão”, privando apenas a empresa da cobertura pela Coface. Após a extinção do controle de fiscalização comercial em 1986, basta transportar o valor da despesa envolvida para a declaração fiscal anual, invocando para isso a proteção garantida pelo segredo-defesa, mesmo em se tratando de contratos civis.
Subsidiando paraísos
Por outro lado, no setor de exportação de armamento, onde a corrupção é a regra, os empresários tinham que percorrer repartições públicas batizadas de “Escritórios” (Offices), que de dízimo em dízimo, distribuíam as “comissões”: o Office Générale de l’Air (OGA) encarregava-se dos aviões; o Ofema, de equipamentos aeronáuticos, a Sofine, de equipamentos navais e terrestres; e a Sofresa, de armamento para a Arábia Saudita. Em 1989, um relatório redigido pela Inspetoria de Finanças criticou o estatuto público e a opacidade dessas repartições. Só a título de exemplo: o famoso caso dos navios de guerra vendidos a Taiwan em 1991 envolveu vários bilhões de francos de corrupção, tudo declarado ao fisco dentro do prazo regulamentar. O que foi ilegal foi o “retorno” (retro-comissão) de uma parte da quantia para o bolso — público e privado — de franceses.
Justamente na época em que os europeus legalizavam a corrupção no comércio internacional, os Estados Unidos tomavam medidas exatamente opostas. Aprovado em 1977, após o escândalo do caso Lockheed, [2] o Federal Corrupt Practices Act (decreto federal sobre práticas de corrupção) condena qualquer tentativa de suborno de um funcionário estrangeiro. Na realidade — como explica a totalidade dos empresários concorrentes entre si — os Estados Unidos continuaram com essa prática, porém através de filiais das empresas, instaladas em paraísos fiscais. Na verdade, o governo norte-americano ajuda as exportações, incentivando a instalação das empresas em paraísos fiscais, com subsídios que chegam a 2,5 bilhões de dólares ao ano. Essas filiais subsidiadas — batizadas de Foreign Sales Corporations (Empresas de Comércio Externo) — constituem a base de um sistema oculto de pagamento de “comissões” no exterior.
Exportações têm perdas insignificantes
Embora inúmeras empresas norte-americanas tenham sido apanhadas em flagrante, o sistema dos trâmites judiciários permitiu limitar as conseqüências. É o que denuncia a ministra da Justiça francesa, Elisabeth Guigou: “Acho que antes de criticar os outros, é bom limpar a sujeira de sua casa. Existem práticas nos Estados Unidos, inclusive no sistema penal, que são perfeitamente legais e consistem, por exemplo, em aceitar uma negociação com o governo. Isso se chama Plea Bargaining. No sistema penal norte-americano, você pode ser acusado de qualquer coisa; você contrata um procurador e diz: ’Bom, vamos procurar uma saída’.”
E Jacky Darne vai mais longe: “Os fatos levam à conclusão de que o número de empresas suspeitas do delito de corrupção é bastante baixo, nos Estados Unidos. Não mais que umas dezenas. Em algumas coisas, os Estados Unidos são verdadeiros mestres.” As eventuais perdas da indústria de exportação norte-americana — em decorrência da luta anti-corrupção — foram insignificantes: menos de um bilhão de dólares em vinte anos.
O jogo de cena do FMI/BM
Durante décadas, o comércio internacional operou no âmbito das relações Leste-Oeste. Cada lado cuidava de garantir a fidelidade de seus clientes, para que não passassem para o campo adversário. A queda do Muro de Berlim e a abertura que se deu nos ex-países comunistas e seus satélites mudou o quadro. O comércio internacional tornou-se um autêntico bazar regido exclusivamente pelos interesses econômicos — principalmente nos setores de armas e construção civil. Do lado oriental, e nos países ex-comunistas, as grandes obras, os mercados industriais e os grandes contratos tornaram-se pretexto para corrupção em grande escala. Todos os setores que dependem do comando do governo — do armamento ao petróleo, da energia aos transportes, e até o equipamento médico e paramédico — foram submetidos ao princípio do dízimo. A ponto dos próprios empresários terem começado a achar que o esquema da corrupção não compensava os investimentos feitos.
Até meados da década de 90, a corrupção envolvida nas transações internacionais era um assunto tabu. Em organismos como o FMI ou o Banco Mundial não era mencionada senão pelas iniciais (the C word) e apenas em tom de queixa, deplorando sua inevitabilidade quase-cultural em alguns países. Porém, tratava-se apenas de jogo de cena: os “proprietários” do BM e do FMI são Estados que têm outros Estados como clientes. No entanto, em outubro de 1996, por ocasião da assembléia anual do Banco Mundial e do FMI, que se realizava em Washington, o presidente do banco, James Wolfensohn, abordou pela primeira vez o problema. Qualificando a corrupção como um “câncer”, denunciou essa “afronta feita contra os mais pobres”, que “desvia o dinheiro para os mais ricos, aumenta o custo de toda a produção, provoca graves distorções no uso de recursos coletivos e afugenta os investimentos estrangeiros”.
“Comissões” de até 40%
Em julho de 1997, também o FMI mudava de orientação. Prevenia a Argentina que qualquer tipo de ajuda financeira suplementar seria subordinada — além das exigências tradicionais relativas ao equilíbrio das finanças — a progressos concretos nos setores da educação, da saúde, da fiscalização e, principalmente, da luta contra a corrupção. Estas tomadas de posição coincidiram com o início de uma série de discussões travadas na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômicos (OCDE), por iniciativa dos Estados Unidos, com o objetivo de preparar um projeto de convenção para reprimir a corrupção de funcionários estrangeiros. No dia 10 de dezembro de 1997, durante uma reunião de ministros de países membros da OCDE e sob a presidência de Dominique Strauss-Kahn, na época ministro das Finanças francês, 21 países assinaram o acordo. Ficava faltando a ratificação pelos seus respectivos Parlamentos. O que não iria ser coisa fácil.
Para a França, a corrupção atingiu níveis demasiado altos. Altos o bastante, de qualquer maneira, para pôr em perigo as empresas de exportação — ou, pelo menos, suas margens de lucro. Já há vários anos que as “comissões” passaram dos limites. Até chegarem às altitudes do tráfico de armas — onde a corrupção é a regra, pois trata-se de remessas enormes, de 100, 200, 500 milhões de dólares, ou até muito mais. As “comissões”, que nos países desenvolvidos oscilam entre 5% e 6%, podem chegar, em certos casos, a 20%, 30%, e às vezes até 40%. Apesar disso, os meios industriais europeus (principalmente do setor de armas) são bastante hostis à convenção. “Demos um tiro no dedão do pé.” Eles acham que o texto não passa de uma manobra de Washington visando a desestabilizar as exportações européias.
Um cavalo de Tróia?
Foi mais ou menos nessa época que surgiu uma organização não governamental chamada Transparency International (numa referência à Anistia Internacional — leia artigo a respeito, nesta edição). Essa organização se tornaria muito conhecida devido à publicação de uma relação mundial dos países corruptos. A classificação não obedece a critérios muitos científicos, segundo seus próprios criadores, pois apóia-se em pesquisas de opinião baseadas na “percepção” que algumas pessoas têm da corrupção, e não na sua essência, impossível de definir. Essa ONG foi denunciada, imediatamente, como um instrumento político norte-americano. Opinião que foi acolhida por vários jornais que são porta-vozes dos meios industriais franceses, principalmente de armamento, e abertamente contrários aos acordos da OCDE. “Um cavalo de Tróia dos ianques”, anunciava Le Canard enchaîné. [3]
Enquanto aumentava a polêmica entre os Estados Unidos e a indústria francesa, Transparency International organizava em Durban, na África do Sul, na segunda semana de outubro de 1999, uma grande conferência, consagrando a sua credibilidade internacional. Uma organizaçãozinha de ativistas emerge, subitamente, capaz de reunir 1.200 delegados vindos dos quatro cantos do planeta. Dois pontos se destacam durante os debates. Por um lado, a acusação ao Banco Mundial de financiar diretamente os corruptos, ao distribuir, de forma abusiva e cega, fundos destinados ao desenvolvimento. Por outro, o interesse pelos acordos da OCDE.
A “deslealdade” européia
No dia 26 de outubro de 1999, a organização divulga uma relação dos países corruptores. Resultado previsível: a França, como outros países europeus, ocupa um lugar ruim. Ao contrário dos Estados Unidos! A imprensa internacional se excita, reivindica atitudes fortes e percebe que alguns países, particularmente a França, não ratificaram os acordos da OCDE. Espíritos maldosos observam a curiosa proximidade entre a divulgação da posição desfavorável da França e a conferência da OMC em Seattle, em dezembro de 1999. Aliás, Peter Eigen não esconde seu desejo de ver o tema da corrupção inscrito na ordem do dia da OMC, que lhe parece poder desempenhar o papel de “vigilantes internacionais da corrupção”.
A polêmica chega ao auge entre europeus e norte-americanos. Estes, que tanto insistem nas conseqüências da “deslealdade” comercial européia — através de incentivos fiscais — mostram-se, no entanto, bastante discretos quanto às suas próprias subvenções. Curiosamente, as filiais estrangeiras das empresas signatárias da OCDE são excluídas do campo de aplicação da convenção.
Dois anos e meio enrolando
O governo francês levaria dois anos para ratificar sua assinatura.
Primeiro tempo: já com algum atraso, e por sugestão de certos meios industriais, o governo francês propõe um projeto de lei de ratificação dos acordos que, em seu Artigo 2º, autoriza a continuação da corrupção legal nos casos de contratos já em andamento. Fúria dos Estados Unidos, que abrem o berro contra a duplicidade. No dia 30 de janeiro de 2000, no Forum Econômico Mundial em Davos, a secretária de Estado Madeleine Albright ataca a França de modo direto: “Seria difícil aprovar uma mensagem contra a corrupção quando aparentemente alguns países tomam um caminho que vai de encontro ao que foi assinado.”
Segundo tempo: sem relação aparente com a pressão norte-americana, o governo retira o artigo controvertido e, no dia 29 de fevereiro, a Assembléia Nacional (Congresso) vota o texto de ratificação. Esta entraria em vigor a 21 de junho. O que significa que foram necessários dois anos e meio para a conclusão.
Regras devem ser estáveis
E no entanto a polêmica não acabou. A União Européia consegue a condenação dos Estados Unidos junto à OMC devido às suas ajudas disfarçadas à exportação através das filiais das empresas nos paraísos fiscais. Diante da má-vontade norte-americana, no dia 5 de setembro de 2000 a União dá um ultimato a Washington. A novela continua…
Seria realista pensar que a vontade política internacional acaba com a corrupção? O que fazer com alguns países, como a Arábia Saudita, onde o suborno é uma forma tribal de presente? Ou com a Rússia, onde a pobreza provocou o desenvolvimento exponencial da pequena e da grande corrupção? Seria possível imaginar um boicote à Rússia, à China ou à Arábia Saudita? “Todo mundo sabe que a China é um país onde a corrupção é extremamente disseminada”, afirma Jean Cartier-Bresson, professor de Ciências Econômicas na Universidade de Reims. “E isso não impede que continue sendo o principal destinatário de investimentos diretos estrangeiros. Para um país em vias ou em transição para o desenvolvimento, a corrupção maciça não impede as pessoas de fazerem seus negócios.” “Por outro lado”, acrescenta Cartier-Bresson, “a corrupção que existe na Rússia coloca outro tipo de problema: o da instabilidade política. Quando ocorre a corrupção sob controle, num contexto estável, com interlocutores que são sempre os mesmos, isso não impede os empresários de fazerem seus negócios. O que preocupa é a mudança permanente de dirigentes, das quantias exigidas, enfim, a instabilidade das regras do jogo da corrupção.”
O argumento da “probabilidade”
A corrupção zero não existe, mas como observa Daniel Bertosa, o procurador de Genebra, “quanto menos corrupção, mais lucros. Sonhar com uma situação em que se possam considerar como toleráveis comportamentos que por definição não o são, equivale à esquizofrenia ou à impostura”. É verdade que já se começam a buscar soluções. Como confirma um agente comercial de uma grande empresa francesa de exportações, que prefere manter o anonimato, “uma das jogadas é ter filiais em países que não pertençam à OCDE, e então, a operação que se fazia a partir da França, passa a ser feita a partir desse país, de fora da OCDE”.
O que já se confirmou no mês de fevereiro de 2000. Um juiz absolveu o diretor-presidente da empresa Dumez-Nigéria. Este era suspeito de ter repassado, através de empresas-fantasmas, 400 milhões de francos (aproximad