“Justiça social continua sendo uma urgência para o Brasil”, afirma Marilene Felinto
Escritora pernambucana, que estará na Flip, falou sobre literatura, cultural e sociedade. Leia um trecho do conto inédito “Academia”
“É como mexer em defuntos”, diz Marilene Felinto ao folhear exemplares de livros que estão dispostos na mesa de centro na sala de sua casa, em São Paulo. As obras, entre inéditas e novas edições, serão lançadas na Festa Internacional Literária de Paraty (FLIP), que começa dia 10 e vai até dia 14 de julho.
Mesmo aquilo que é novo para o público, garante Marilene, está morto para ela. “Gostem, não gostem, não me importa”, sentenciou ao discutir o apreço do público por seus textos. O mais famoso deles é As Mulheres do Tijucopapo vencedor do prêmio Jabuti na categoria “Revelação”, em 1982, que ganhará uma 4 edição.
Para a Flip, no entanto, outros títulos da escritora estarão disponíveis: Autobiografia de uma escrita de ficção. Ou: por que as crianças brincam e os escritores escrevem, fruto da sua tese de mestrado em literatura na PUC-SP; Sinfonia de Contos de Infância, Contos Reunidos e Fama e Infâmia – uma crítica ao jornalismo brasileiro, que apresenta artigos escritos na revista Caros Amigos e um texto inédito analisando sua passagem pelo jornal Folha de São Paulo como colunista entre 1989 e 2002, e a relação com o diretor de redação Otávio Frias Filho, falecido em agosto do ano passado.
Ao Le Monde Diplomatique Brasil, Marilene Felinto fala sobre o ato da escrita, a emergência da literatura como janela para outro mundo e a situação política do Brasil contemporâneo. “A conjuntura política, a eleição do Bolsonaro, tudo isso permitiu que as pessoas se revelassem como fascistas, protofascistas, e que não tenham nenhum constrangimento em relação a isso”.
Ao final da entrevista, a autora autorizou a publicação de um trecho do conto inédito “Academia”, que compõe o livro Contos Reunidos.
Vi uma entrevista recente sua dizendo que não tem visto os acontecimentos políticos do Brasil. Como se blindar?
Não, eu vejo algumas coisas. Vejo o mínimo necessário para estar informada. Não estou no jornalismo, então não fico mergulhada nesse “hipernoticiamento”. Leio o básico.
Enquanto trabalhou com jornalismo você vivia imersa no noticiário?
Trabalhava para um jornal, então lia não só minha coluna, mas as outras seções. Você está naquele universo, sai com pessoas daquele ambiente, então acaba se envolvendo sem querer nessa loucura.
Em seus textos aparecem o fato de você considerar a ida para o jornalismo um erro. Essa rotina como colunista influenciou na sua escrita ficcional?
Não. O caminho contrário sempre acontecia, porque se trata da postura de quem escreve ficção. Tem escritor que é mais pesquisador nos seus temas, outros são mais impulsivos, criam a partir de sensações. Sou mais o segundo caso, então levava essa postura subjetiva em relação aos temas para o jornalismo. Isso acaba sendo ruim em algumas ocasiões.
Por que?
Porque você não tem a precisão e o rigor jornalístico de quem pesquisa. Óbvio que estou falando do sujeito que faz isso corretamente, porque tem muita gente que pesquisa e escreve porcaria. Não tive nenhuma vontade de ter sido jornalista, não estudei pra isso. O que sempre se manifestou nos meus textos foi a postura de ficcionista.
Você costuma dizer que As Mulheres do Tijucopapo, de 1982, serviu para liberar algo que estava preso, “um romance de juventude”. Mas e depois, o que a motivou para seguir escrevendo ficção?
Escrevo porque tenho a necessidade de elaborar a realidade de uma maneira suportável. Só a realidade como de fato ela é não dá. Mas de onde vem isso? No meu caso, é um trauma.
Já vi você dizer que escrever não é bonito.
É doloroso. O processo, em si, é como se você fosse perseguido por uma história, algo precisa contar. Mas é uma exposição, com elaborações de coisas que, às vezes, são difíceis. Acabo de lançar um livro que discute isso, que se chama “Autobiografia de escrita de ficção ou: por que as crianças brincam e os escritores escrevem”, que fala sobre a importância do brincar na infância. As brincadeiras me salvavam da pobreza, da relação violenta com meu pai. É como se eu tivesse transportado esse ato para a fase adulta, com a escrita e a literatura.
O que significa essa ideia de deslocamento, ao sair de Recife e vir para São Paulo, que aparece no começo do As mulheres.
Na verdade, não é de deslocamento. É a perda de uma referência. Vim para São Paulo aos 11 anos e contra vontade. Meus pais buscavam melhores condições e para mim foi muito traumático. A ausência desse referencial me levou a escrever ficção.
O Raduan (Nassar) tem uma história que ele não escreveu e gostaria de ter escrito, e se arrepende disso, que é As Três Batalhas. Certa vez, perguntei a ele qual era o motivo do arrependimento, e ele disse: “para a história parar de me perseguir”. É difícil explicar o ato da escrita.
Qual o peso do olhar alheio no fazer literário antes e hoje?
Nenhum, a não ser que seja alguém muito importante pra mim. Isso só aconteceu uma vez, no primeiro ano da faculdade, logo após ter publicado As Mulheres, quando minha professora de português fez ponderações que me surpreenderam. Mas isso não importa, porque também não ligo para aquilo que já escrevi. O que foi feito, morreu. Gostem, não gostem, tem o mesmo peso: nenhum.
Sou uma pessoa subversiva nesse mercado editorial. Sempre briguei com editores e tirei meus livros de lugares que achei que estava sendo roubada. Não sou uma pessoa comportada. No início da minha carreira de escritora percebi que precisava me adequar aos padrões, e eu não tinha saco.
Você não gosta de se expor, mas estará na FLIP. Como é isso?
Vou lá como anônima, uma qualquer. Aceitei esse convite em deferência ao pedido da Fernanda Diamant (curadora da FLIP e viúva de Otávio Frias Filho). Não sabia que ela me conhecia e também não tinha conhecimento da doença dele, não nos falávamos há 15 anos. Quando ela me convidou, fiz um alerta do texto que publiquei recentemente fazendo críticas a ele e ao meu período na Folha de São Paulo. Mesmo assim ela manteve o convite e eu aceitei.
É público o fato de você não gostar de dar entrevistas, não aparecer, e o Guimarães Rosa costuma dizer que “o silêncio é a gente mesmo, demais”. O ato de fazer literatura é uma fuga?
O nascedouro de uma história é sempre a partir do silêncio. Não escrevo para romper esse silêncio, mas é só porque nesse silêncio você consegue fazer emergir alguma história.
Você costuma ler os trabalhos acadêmicos sobre a sua obra? Vários descrevem As Mulheres como um livro feminista.
Li muito pouco e prefiro não ler. Não pensei no feminismo para escrever. Não fico confabulando teses, teorias, isso não existe. Seja o feminismo, o racismo. Claro que a minha escrita reflete aquilo que eu vivo. Se sou uma mulher negra, isso vai aparecer de algum jeito. Uma vez, o (Edgar) Degas chegou para o Mallarmé e disse “tenho tantas ideias para um poema, mas não consigo escrever”, ao que o Mallarmé respondeu, “claro, poemas são feitos com palavras, não com ideias”. Isso resume a questão.
Não sei se você gosta desta entrevista, mas estava assistindo ao Provocações, da TV Cultura…
Detesto. Aliás, todas que eu já dei.
Enfim, o Abujamra te questiona sobre um sonho e você diz “justiça social”. Ele, então, completa: “mais uma romântica”. Justiça social é romantismo?
Justiça social era uma necessidade urgente para o país e continua sendo.
Como você tem visto o Brasil atualmente?
Como uma pessoa de esquerda e quem tem o pensamento correspondente, digo que essa situação sempre existiu. A conjuntura política, a eleição do Bolsonaro, tudo isso permitiu que as pessoas se revelassem como fascistas, protofascistas, e que não tenham nenhum constrangimento em relação a isso. Esse ódio de classes é muito evidente para mim desde que me entendo por gente. E, nesse momento da história, está se manifestando desta maneira. Se há um lado bom nisso tudo é o de que as pessoas percebam que isso é algo latente, explodiu e vai continuar aqui. No Brasil é sempre mais surpreendente porque há um mito de cordialidade entre as raças e classes, então é bom que saibamos que a realidade é essa.
Qual o projeto de país que teremos no futuro?
Ah, não sei, esse tipo de análise não faço. Vi o PT se formar muito jovem, acompanhei Lula nas greves de São Bernardo. Para mim, o sonho era aquele que se concretizou em doze anos de governos petistas, com várias falhas e omissões. Mas foi importante que o PT tenha chegado ao poder e tenha deixado outro tipo de administração pública, em relação ao que está aí ou aquilo que estava antes dele. Foi o melhor período já vivido no país, não há dúvida. Para quem é pobre, isso é evidente. Agora, se isso vai se repetir, com quem, não faço ideia, e nem fico pensando para não me angustiar. Já militei contra ditadura, mobilizei a criação do PT, trabalhei no partido, acabei me desiludindo… Mas continuo de esquerda e achando que o Lula está preso injustamente.
Leia o trecho do conto inédito “Academia”:
“Então, de uma hora para outra, ela sempre pensava em uma ou outa obscenidade enquanto malhava, enquanto percorria aquele infinito território limitado que era uma esteira mecânica de academia de ginástica, rolando sobre si mesma, rodando sobre ela própria, para onde? “Qual foi o melhor pênis que já me penetrou e como sinto falta dele?”, perguntou-se, num esforço de memória táctil. Queria conseguir lembrar exatamente os detalhes do toque, do movimento, do roçar nas suas paredes mais internas… Esses pensamentos faziam-na feliz, atenta, leve. Tinha lá suas superstições também: sempre fizeram uma associação desde adolescente, a de que uma mulher com pouca roupa no armário teria poucos homens. Era preciso ter a maior quantidade de roupa possível. Mas ela nunca tinha. Vivia na expectativa, com um misto de medo e desejo de perder o marido, de trocá-lo por outro ou de ser trocada por ele. Uma amiga havia comentado sobre homens de todas as idades, mais jovens ou mais velhos, que pelo menos uma vez por semana tomam dois comprimidos de Viagra e vão fazer sexo com prostitutas chiques, garotas de programa. E a amiga tinha completado o comentário: não, não são impotentes, são todos casados”.