Justin Trudeau e a exibição da virtude como política externa
Para a grande mídia, a ambiguidade do primeiro-ministro surgiu quando foram reveladas imagens suas com o corpo pintado de preto. O dirigente liberal não seria um defensor da diversidade? Existe, contudo, outro campo, muito menos comentado, no qual o gigantesco fosso entre discurso e prática se manifesta: a política externa
Para os canadenses acostumados com os hábitos tristes do conservador Stephen Harper, a vitória de Justin Trudeau, um jovem cool e sorridente, nas eleições de outubro de 2015 representou uma ruptura. Enquanto o antigo primeiro-ministro se recusava a evocar os “problemas das mulheres”, como a desigualdade salarial e a violência sexual, Trudeau prometia fazer de seus filhos futuros feministas convictos. Na contracorrente do cinismo dos conservadores canadenses, o novato anunciava o “futuro ensolarado” (sunny ways) de uma política “positiva”. Sob seu cajado, o país deveria sair da sombra dos Estados Unidos e retornar à cena política internacional, como ele anunciava na noite da vitória.
O discurso seduziu não apenas os canadenses, mas também a mídia do mundo inteiro, que apresentara Trudeau como o exato oposto de Donald Trump, o antídoto para o nacionalismo e o populismo que progrediam tanto na Europa quanto nos Estados Unidos. Trudeau primeiro pareceu comprovar que estavam certos. Assim que assumiu o cargo, ele foi a Londres, onde afirmou que a diversidade constituía uma “força” para o Canadá. Depois ele desenvolveu esse tema diante dos membros do Fórum Econômico Mundial de Davos, em janeiro de 2016, proclamando que a diversidade era boa para os negócios, antes de acrescentar: pagar às mulheres tanto quanto aos homens “é bom”. Na Conferência de Paris sobre mudanças climáticas (20 de novembro a 12 de dezembro de 2015), ele destacou seu gosto pela ecologia, rompendo com uma década de obstrução de seu predecessor sobre o assunto. O Canadá “está aqui para oferecer sua ajuda”, lançou no auditório. Por fim, Trudeau marcou sua diferença sobre a questão da imigração. Enquanto os europeus se dilaceravam a respeito da repartição dos migrantes sírios, ele apareceu, em dezembro de 2015, no aeroporto de Toronto, para acolher os imigrantes que pediam asilo. “Aqui vocês estão em casa”, garantiu.
Quatro anos depois, a estrela do primeiro-ministro perdeu o brilho. Seu balanço, muito distante das promessas de campanha, suscita certo ceticismo junto à população. Diversos comentaristas, antes entusiastas, ressaltam agora uma continuidade com Harper, em particular na questão da política internacional.

“Retorno dos falcões liberais”
Nessa matéria, Trudeau aparece antes de mais nada como um adepto da “exibição da virtude” (virtue signalling), uma técnica de comunicação que consiste em intervir abundantemente nas mídias, principalmente nas redes sociais, a respeito de eventos que se beneficiam de uma ampla cobertura, para defender valores positivos, sem que os atos se alinhem sempre com as palavras. Dentro dessa mesma lógica, na desastrosa viagem à Índia, em fevereiro de 2018, o jovem primeiro-ministro tinha julgado sensato vestir-se com um sári tradicional, usado por uma parte da comunidade indiana no Canadá. Sarcásticos, os comentaristas rapidamente interpretaram essa escolha indumentária como uma mensagem para sua base eleitoral, adepta da diversidade cultural. Os anfitriões indianos apreciaram menos, e a viagem agravou ainda mais as relações já tensas com a Índia.
No que compete ao feminismo, o chefe do governo se orgulha de conduzir uma política de ajuda internacional cujo eixo é o empoderamento (empowerment) das mulheres por meio da educação, da concessão de microcréditos e da ajuda na criação de empresas. No entanto, não apenas o Canadá investiu pouco nessa área, como Trudeau estimou que os objetivos da ajuda ao desenvolvimento fixada há cinquenta anos pelas Nações Unidas (0,7% do PIB anual) eram “muito ambiciosos”. Na prática, quase metade dos valores que ele desbloqueou vai alimentar fundos privados, encarregados, por sua vez, de aumentar os capitais nos mercados. “O discurso do Canadá sobre o desenvolvimento internacional […] não é acompanhado por um real engajamento financeiro”, concluem os pesquisadores Matthew Gouett e Bridget Steele.1
É a mesma coisa no plano dos direitos humanos. “Defenderemos sempre os direitos humanos, defenderemos sempre os direitos das mulheres, e isso não vai mudar”, certificava a ministra canadense das Relações Internacionais, Chrystia Freeland, em conversa com jornalistas em 6 de agosto de 2018, no dia seguinte a uma controvérsia com a Arábia Saudita a respeito do destino dos militantes de direitos humanos no país. A ministra tinha até mesmo acolhido pessoalmente a jovem saudita Rahaf Mohammed al-Qunun, que havia fugido da monarquia, reforçando assim o verniz humanitário e feminista do governo. No entanto, alguns meses antes, o Canadá recusou-se a anular um contrato de 15 bilhões de dólares canadenses (R$ 47 bilhões) assinado com a Arábia Saudita para a entrega de equipamentos militares – equipamentos utilizados na guerra com o Iêmen, país, inclusive, que recebe ajuda humanitária canadense. “É um pouco como ajudar alguém a comprar muletas depois de ter contribuído para quebrar suas pernas”,2 ironiza Cesar Jaramillo, responsável pelo Projeto Ploughshares, uma organização ecumênica canadense que trabalha pela paz. “Em uma democracia”, cada um deve “respeitar os acordos assinados pelos governos anteriores”, explicou o primeiro-ministro como forma de se justificar em uma conferência na Universidade de Regina, em 11 de janeiro de 2019.
A despeito de suas promessas, Trudeau também perpetuou uma tendência de seu predecessor: o alinhamento com a política internacional de Washington. No encontro do G20 organizado em Hamburgo, em julho de 2017, ele surpreendeu a chanceler alemã ao pedir que a declaração pelo meio ambiente se abstivesse de mencionar o Acordo de Paris sobre o clima. A manobra foi interpretada como uma tentativa de amaciar Trump nas vésperas da renegociação do Acordo de Livre Comércio Norte-Americano (Nafta) – o que, no entanto, não foi suficiente. Ainda que o novo texto (Acordo Estados Unidos-México-Canadá, AEUMC), assinado em novembro de 2018, contenha alguns avanços progressistas tímidos – por exemplo, sobre a mobilidade dos trabalhadores ou o comércio dos remédios3 –, ele faz sobretudo importantes concessões a Washington. Uma de suas cláusulas concede aos Estados Unidos um direito de veto sem precedentes a respeito das futuras negociações comerciais entre o Canadá e a China. Sem contar que Washington se reserva a possibilidade de aplicar importantes taxas de alfândega sobre o alumínio e o aço em nome de sua segurança nacional.
Enquanto esperava dinamizar seu comércio com Pequim para aliviar sua dependência de Washington, Ottawa então autossabotou seus projetos, em vez de enfrentar seu aliado. Assim, em dezembro de 2018, o governo canadense prendeu a diretora financeira da empresa Huawei no aeroporto de Vancouver, a pedido de seu homólogo norte-americano, que a acusava de ter violado as sanções decididas pela Casa Branca a respeito do Irã. Uma das raras vozes canadenses dissonantes neste caso, John McCallum, antigo embaixador do Canadá na China, teve de se demitir por ter sugerido, em um encontro com as mídias canadenses e sino-canadenses, que os Estados Unidos utilizavam a extraterritorialidade como uma arma.4 Mesmo que Ottawa invoque o respeito de um tratado de extradição concluído com Washington, as medidas de retaliação contra a Huawei continuam sendo unilaterais, tomadas fora de qualquer resolução do Conselho de Segurança da ONU e sem acordo formal entre os Estados Unidos e seus aliados. A China respondeu prendendo dois canadenses, dando início a uma grave crise diplomática e, por consequência, ao afundamento da estratégia chinesa de Trudeau.
Segundo a revista The Economist, que se situa entre os analistas mais indulgentes em relação ao primeiro-ministro canadense, Ottawa se contenta em adaptar os velhos princípios do internacionalismo liberal à realidade da administração Trump5 – com ainda menos margem de manobra, pelo fato de que a atual crise do sistema internacional cria um obstáculo para as economias de médio porte, como a do Canadá. As duas superpotências, uma bem estabelecida (os Estados Unidos), a outra emergente (a China), dão a nota, enquanto as forças em declínio, como a Rússia e a União Europeia, penam para serem ouvidas. Nesse contexto, as organizações multilaterais que Ottawa colocou no coração de sua estratégia atingem seus limites. A Organização Mundial do Comércio (OMC) funciona mal, o G7 está dividido, a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) se desintegra. Além disso, torna-se cada vez mais difícil enfrentar desafios como o terrorismo, a ciberssegurança, o etnonacionalismo e as desigualdades socioeconômicas.
Alguns comentadores se mostram menos indulgentes. Segundo eles, as escolhas da equipe de Trudeau sugerem que, longe de sofrer a influência de seu poderoso vizinho, ele concorda com sua visão. Enquanto o editorialista do Toronto Star, Thomas Walkom, evoca um “retorno dos falcões liberais”, o ex-diplomata Daryl Copeland nota com inquietação: “A ministra das Relações Internacionais, Freeland […], parece em boa parte cega pelo hard power”.6
Plebiscitada pelos think tanks norte-americanos, bastante hostis a Pequim e a Moscou, a ministra foi coroada diplomata do ano pelo Foreign Policy Group. Por instigação sua, o governo Trudeau colocou a Venezuela, a Síria, a Rússia, o Irã e a Coreia do Norte no topo de sua lista de prioridades, imitando – e apoiando – as iniciativas da administração Trump: encontros, sanções, pressões políticas e emprego militar.7 Freeland descreveu o encontro do Grupo de Lima sobre a Venezuela, convocado precipitadamente em Ottawa, em fevereiro de 2019, como um belo exemplo de diplomacia e de acordo para o continente norte-americano, enquanto essa organização se caracteriza por sua hostilidade ao regime venezuelano e sua determinação em derrubar o presidente Nicolás Maduro. Freeland, inclusive, não julgou necessário convidar para essa reunião a Rússia e a China, principais provedores de ajuda a Caracas. Moscou e Pequim também não participaram do encontro sobre a Coreia do Norte, que o Canadá organizou em 2017, mesmo que os dois países façam fronteira com Pyongyang.
Desviar a atenção dos eleitores
O governo de Trudeau parece assim estimar que as crises que ameaçam o planeta podem se resolver sem a Rússia e a China. No entanto, Ottawa não ganharia mais em iniciar conversas com a primeira se pretende manter uma voz no capítulo a respeito do Ártico? E seus objetivos econômicos – em particular sua aspiração a se libertar de um vizinho espaçoso – não convergiriam com os da segunda? Porém, o diálogo aparentemente não faz parte da ordem do dia. O Canadá sempre se mostrou firme em relação a Moscou na crise ucraniana. Quanto a suas relações com Pequim, elas permanecem minadas pelo aprisionamento de seus dois cidadãos, enquanto o conflito é exacerbado por Trump e pelo ex-embaixador chinês em Ottawa, Lu Shaye, que denunciava em janeiro de 2019 o “egoísmo ocidental” e o “racismo” de seus interlocutores. A isso se acrescenta um princípio de escândalo político que deteriora a pretendida superioridade moral do Canadá em relação à China e sua reputação de Estado de direito, com o escritório do primeiro-ministro sendo suspeito de ter tentado interferir em um processo judiciário a fim de ajudar a gigante empreiteira canadense SNC-Lavalin, acusada de corrupção.
Com as eleições que se aproximam, o governo Trudeau redobra esforços para exibir sua virtude e desviar a atenção de seu balanço diplomático. Enquanto liberais e conservadores estão lado a lado nas intenções de votos, o desabamento do New Democratic Party (centro-esquerda) oferece matematicamente uma vantagem aos primeiros no sistema uninominal de turno único canadense. Fortalecidos por seus avanços nas pesquisas, os Verdes são como elétrons livres. Os eleitores de centro-esquerda e os jovens, que elegeram Trudeau quatro anos atrás, vão punir os liberais por suas promessas quebradas, principalmente no plano ambiental? Ou vão votar neles a contragosto, com o único objetivo de barrar os conservadores? A decisão do Partido Liberal de não participar do debate televisivo sobre a política externa – essa mesma que contou tanto na vitória de 2015 – sugere claramente que ele teme ser colocado diante de suas contradições e de seus fracassos, pois, para além dos belos discursos, o Canadá nem sempre teve lugar na cena internacional.
Richard Nimijean e David Carment são professores, respectivamente, da Escola de Estudos Nativos e Canadenses e da Norman Paterson School of International Affairs, Universidade Carleton, Ottawa (Canadá). Ambos codirigiram Canada, Nation Branding and Domestic Politics [Canadá, construção da marca nacional e política doméstica], Routledge, Abigdon (Reino Unido), 2019.
1 Matthew Gouett e Bridget Steele, “How Canada’s G7 summit fell short for women” [Como a cúpula do G7 do Canadá ficou aquém para as mulheres], Policy Options, 22 jun. 2018. Disponível em: <www.policyoptions.irpp.org>.
2 Citado em Brendan Kennedy e Michelle Shephard, “Canada’s dual role in Yemen: Arms exports to Saudi coalition dwarf aid sent to war-torn country” [O duplo papel do Canadá no Iêmen], The Star, Toronto, 30 abr. 2018.
3 Ler Lori Wallach, “Premières brèches dans la forteresse du libre-échange” [Primeiras brechas na fortaleza do livre-comércio], Le Monde Diplomatique, nov. 2018.
4 Ler Jean-Michel Quatrepoint, “Au nom de la loi… américaine” [Em nome da lei… norte-americana], Le Monde Diplomatique, jan. 2017.
5 “Canada in the global jungle” [Canadá na selva global], The Economist, Londres, 9 fev. 2019.
6 Citado pelo editorialista Thomas Walkom em “The liberal hawk has made a comeback” [O falcão liberal retornou], The Star, 28 jan. 2019.
7 Ler Alexander Main, “Géopolitique de la crise vénézuélienne” [Geopolítica da crise venezuelana], Le Monde Diplomatique, jul. 2019.