Lei Aldir Blanc e Lei Paulo Gustavo: soluções para a crise da cultura?
Especialistas analisam avanços e contradições do fomento à cultura, em meio à aprovação da Lei Aldir Blanc 2 e Lei Paulo Gustavo no Congresso
Uma quantidade ainda indefinida de trabalhadores e trabalhadoras do setor da cultura recebeu recursos da Lei Aldir Blanc. Estes recursos estão em fase final de execução e de prestação de contas. No entanto, o setor amarga enormes prejuízos em quase dois anos de paralisação. Após mobilização da classe de trabalhadores, foram apresentadas as propostas de leis Aldir Blanc 2 e Paulo Gustavo, que foram aprovadas na Câmara dos Deputados, em 24 de fevereiro de 2022.
Segundo um dos relatores da Lei Paulo Gustavo, o senador Eduardo Gomes (MDB-TO), “o setor cultural foi o primeiro a parar em decorrência da atual pandemia e possivelmente será o último a voltar a operar. Daí a necessidade de continuar os auxílios iniciados em 2020 pela Lei Aldir Blanc neste ano e no próximo aos artistas, aos criadores de conteúdo e às empresas, que juntos compõem uma cadeia econômica equivalente a 2,67% do produto interno bruto e são responsáveis por cerca de 5,8% do total de ocupados no País, ou cerca de 6 milhões de pessoas.”
As propostas de leis podem resultar no incremento de mais de R$ 5 bilhões para o setor cultural utilizar entre 2022 e 2023. Ambas as leis têm como objetivo a distribuição de recurso para a cultura, com finalidades assistenciais e de fomento, por meio dos estados e municípios via editais.
Lei Aldir Blanc 2
O PL 1518/2021 cria a Lei Aldir Blanc 2 (LAB2), uma política nacional permanente de fomento ao setor cultural. A autoria é da deputada federal Jandira Feghali (PCdoB/RJ), com a coautoria da presidenta da Comissão de Cultura da Câmara, Alice Portugal (PCdoB/BA) e do deputado Renildo Calheiros (PCdoB/PE) entre outros coautores. A proposta pretende transformar o repasse de R$3 bilhões anual, aos moldes da Lei Aldir Blanc, em um mecanismo permanente de fomento, descentralizando os recursos de cultura no Brasil, conforme ementa da Câmara dos Deputados.
Segundo informações da Agência Câmara de Notícias, “essa política nacional beneficia trabalhadores da cultura, entidades e pessoas físicas e jurídicas que atuem na produção, difusão, promoção, preservação e aquisição de bens, produtos ou serviços artísticos e culturais, incluindo o patrimônio cultural material e imaterial. O texto lista 17 grupos de atividades culturais que poderão ser contempladas por meio de editais, chamadas públicas, prêmios, compra de bens e serviços, cursos e outros procedimentos. Entre eles, incluem-se estudos e pesquisas, concessão de bolsas de estudo no Brasil ou no exterior, aquisição de imóveis tombados, manutenção de grupos, companhias e orquestras e construção e manutenção de museus, centros culturais e bibliotecas. A política terá vigência de cinco anos, e o valor global previsto de R$ 3 bilhões deverá ser entregue no ano seguinte ao da publicação da futura lei”.
Quanto à utilização dos recursos, “do valor que receber, o ente federado deverá aplicar 80% em ações de apoio ao setor cultural por meio de editais, chamadas públicas, prêmios e compras de bens e serviços culturais, entre outros, além de subsídio para a manutenção de espaços artísticos e ambientes culturais que desenvolvam atividades regulares e de forma permanente em seus territórios e comunidades. Os demais 20% devem ir para ações de incentivo direto a programas, projetos e ações de democratização do acesso à produção artística e cultural em áreas periféricas urbanas e rurais, bem como povos e comunidades tradicionais. Para poder receber o dinheiro, o ente federado deverá comprovar a destinação de orçamento próprio ao setor em valor equivalente, no mínimo, à média dos valores desse orçamento aplicado nos últimos três exercícios. Eventuais recursos da União que não forem repassados por perda de prazo para entrega do plano de ação deverão ser redistribuídos aos demais entes”.
Caráter permanente
Diferentemente da primeira etapa da Lei Aldir Blanc executada entre 2020 e 2022, a nova lei pretende ter caráter permanente, sendo algo como o “Fundeb da cultura” – uma alusão ao fundo que promove o financiamento da educação básica pública no Brasil de forma contínua. A proposta surgiu através de pedidos da classe trabalhadora, para que os repasses dos recursos se tornem permanentes, distribuindo recursos para estados e municípios. A primeira proposta neste sentido (de lei permanente) foi apresentada pela diretoria de política culturais do Conselho Federal da Ordem dos Músicos do Brasil, através de relatório de Manoel J de Souza Neto, enviado em 09 de julho de 2020. O documento pode ser lido aqui.
Lei Paulo Gustavo
A Lei Paulo Gustavo (PLP 73/2021), de iniciativa do Senador Paulo Rocha (PT/PA) e da bancada do PT no Senado, propõe direcionar R$ 3,862 bilhões do superávit financeiro do Fundo Nacional de Cultura (FNC) de forma descentralizada aos estados e municípios para fomento de atividades e produtos culturais. Porém, diferente da LAB2, trata-se de uma política de caráter emergencial, equivalente à Lei Aldir Blanc 1, de 2020. A justificativa dessa nova lei emergencial é que os efeitos de devastação econômica do setor serão de longo prazo, mesmo com algumas atividades voltando aos poucos.
Segundo a Agência Câmara de Notícias, a maior parte da verba (R$ 2,797 bilhões) são recursos alocados originalmente no Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), oriundos da arrecadação da Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional (Condecine) e deverá ser aplicada no setor de audiovisual. Na execução dos recursos, os governos deverão realizar ações emergenciais ou oferecer prêmios por meio de chamamentos públicos, editais e outras formas de seleção pública simplificadas. O texto lista condições e permissões para o recebimento dos recursos pelos beneficiários. Assim, uma produção audiovisual apoiada pode receber recursos de mais de um ente da Federação se for previsto no edital. Poderão ser contempladas salas de cinema fora de rede ou de redes com até 25 salas, e as ações de capacitação devem ser gratuitas.
Quanto aos recursos para outras atividades culturais, do total a ser liberado pelo Poder Executivo, outro R$ 1,065 bilhão será repartido igualmente entre estados (50%) e municípios (50%), com rateio segundo os índices do Fundo de Participação dos Municípios ou Fundo de Participação dos Estados e população. A proposta, do senador Paulo Rocha (PT-PA) e subscrita por outros senadores, já foi aprovada pelo Senado Federal, agora aprovada na Câmara, devido às emendas, retornará ao Senado, e somente após aprovada irá para sanção presidencial.
Caráter emergencial
De acordo com um dos relatores da Lei Paulo Gustavo, o senador Eduardo Gomes (MDB/TO), “O art. 5⁰ do PLP prevê que, dos R$3.862 bilhões, R$ 2.797 bilhões serão destinados unicamente para ações na modalidade de recursos não reembolsáveis do setor do audiovisual, sendo que, desses recursos: 65% serão entregues aos estados e ao DF, dos quais 20% de acordo com os critérios de rateio do Fundo de Participação dos Estados e Distrito Federal (FPE) e 80% proporcionalmente à população; e 35%, às capitais estaduais, ao DF e aos municípios com até 200 mil habitantes, dos quais 20% de acordo com os critérios de rateio do Fundo de Participação dos Municípios (FPM) e 80% proporcionalmente à população”.
Esses montantes seguem a mesma linha de distribuição de recursos ocorrida na Lei Aldir Blanc, que são considerados os maiores montantes de recursos da cultura já distribuídos do governo federal, para estados e municípios de uma única vez.
Soluções de problemas ocorridos anteriormente na Lei Aldir Blanc
Autora do PL 1518/2021 (Lei Aldir Blanc 2), a deputada federal Jandira Feghali afirma que, diante de problemas encontrados na aplicação da Lei Aldir Blanc, de 2020, foram feitos ajustes nos textos das novas leis. “A experiência com alguns erros cometidos na lei Aldir Blanc 1 inspiraram algumas soluções nos textos das novas leis, questões relacionadas à burocracia, prazos e propósitos”, afirma. “Resolvemos prazos, limpamos a área em relação aos espaços culturais, o que pode ser pago, porque muito da burocracia que ocorreu na 1 foi querer definir o que era espaço cultural, definir o que era detalhamento de prazo, burocratizaram muito nisso. À medida que a gente limpa a área na lei, a regulamentação não vai complicar muito”, completa.
Para exemplificar, o texto da Lei Aldir Blanc 2 considera como espaços culturais “todos aqueles organizados e mantidos por pessoas, organizações da sociedade civil, microempresas culturais, organizações culturais comunitárias, cooperativas com finalidade cultural e instituições culturais sem fins lucrativos. Entre eles, incluem-se pontos e pontões de cultura; teatros independentes; escolas de música, de capoeira e de artes e estúdios, companhias e escolas de dança; circos; bibliotecas comunitárias; livrarias, editoras e sebos; estúdios de fotografia; e espaços e centros de cultura alimentar de base comunitária, agroecológica e de culturas originárias, tradicionais e populares”.
Ainda segundo Jandira Feghali, “A Lei Aldir Blanc 2 é uma demanda da sociedade. Um pedido de ‘por favor, mantenha isso de forma permanente’. A lei foi aprovada na Comissão de Cultura, teve urgência em plenário e está na pauta para voltar. Assim que aprovada, a lei tem um comando orçamentário e passa a valer em 2023. Ela vai ser ajustada pelo PIB nominal. Ela começa com 3 bilhões e a cada ano é reajustada pelo PIB nominal que é PIB mais Inflação”.
A deputada federal do PCdoB explica as diferenças entre as duas leis. “A Lei Paulo Gustavo surge novamente como uma lei emergencial. Ela não é permanente, não é estruturante, não é uma lei de Estado, não é uma lei para irrigar o Sistema Nacional de Cultura”.
Sobre a origem dos recursos da Lei Paulo Gustavo, somando R$ 3,862 bilhões para a Cultura de recursos já existentes nos Fundo Setorial do Audiovisual e Fundo Nacional de Cultura, Jandira explica que “esses recursos, que estão parados do audiovisual, são para 900 projetos aprovados, que a Ancine não liberou, entre produções de baixo, médio e de alto orçamento, esses recursos estão indo para a Lei Paulo Gustavo”. Sobre esses recursos, a deputada completa eles “precisam ser liberados também senão poderão ir para outra finalidade, inclusive pagamento da dívida pública”
Para se ter uma comparação, Jandira cita os parcos recursos do orçamento da Secretaria Especial de Cultura, discricionário para 2022, que são de R$ 23 milhões para o Brasil inteiro.
Essas melhorias apontadas nos textos das leis Aldir Blanc 2 e Lei Paulo Gustavo, se relacionam, segundo o Observatório da Cultura do Brasil, no campo da institucionalidade. “Ainda que tenham ocorrido avanços, não foram localizados nas leis a efetiva desburocratização, para resolver problemas do excesso de burocracia nos editais locais, que vitimou a ampla maioria do setor, onde muitos ficaram sem condições de competir pelos recursos, portanto ficaram de fora das premiações de editais”.
Manoel J de Souza Neto, do Observatório da Cultura do Brasil, afirma que muito ainda poder ser aprimorado. “Da mesma forma, os mecanismos não foram ainda suficientemente aprimorados para garantir que nos entes federativos ocorra a mais ampla distribuição dos recursos nos mais diversos grupos sociais ligados à cultura. Cotas raciais, de gênero, regionais, ou de localidades com baixo índice de IDH, não estão previstas, falta uma regulamentação dos usos, deixando as decisões, para entes locais, que podem repetir erros anteriores, que causaram exclusão social em algumas regiões do Brasil”.
A aplicação dessas leis e políticas, ainda segundo o Observatório da Cultura do Brasil, foi feita às pressas, especialmente na primeira Lei Aldir Blanc, devido a situação emergencial. Na Lei Paulo Gustavo e na Lei Aldir Blanc 2, já poderiam estar mais avançadas questões técnicas, reconhecimento dos problemas ocorridos, e mais, as proposições inclusivas, ainda assim, a necessidade da existência destes recursos para a recuperação do setor cultural são óbvias.
A aprovação e distribuição destes recursos para a economia brasileira são fundamentais, considerando que a cultura é um setor que gera muitos empregos. Algo que poderá impactar positivamente a recuperação da economia.