Lembra-te de Kwame Nkrumah
Lembrar do legado do ex-presidente de Gana é ter noção de sua criativa e combativa escrita e políticas contra-hegemônicas. Testemunha e habitante de um mundo desigual, racista e que subdesenvolveu não só a África, mas o terceiro mundo por completo, Nkrumah achou no marxismo-leninismo os fundamentos para pensar, discutir, ensinar e agir no mundo
Em fevereiro de 1966, um grupo chamado Conselho de Libertação Nacional tomou o governo da República de Gana. O golpe ocorreu contra o presidente, intelectual, revolucionário e pan-africanista Kwame Nkrumah que estava em viagem ao Vietnã e nunca mais retornaria ao país. Hoje em dia se sabe que os golpistas eram apoiados pelos serviços de inteligência da Inglaterra, França e Estados Unidos.
Após a queda de Kwame Nkrumah, o plano de industrialização de Gana e a economia planejada foram abandonados. O novo governo do Conselho de Libertação Nacional procurou auxílio de países ocidentais, expulsou diplomatas de nações socialistas e atrelou sua economia aos desígnios do Fundo Monetário Internacional. Era um novo modelo para Gana, um modelo gestado pelo e para os privilegiados do Ocidente.
A queda de Nkrumah marca o fim de sua atuação no governo ganês, mas esse não era o único objetivo do golpe. O pensamento e a política contrários aos interesses das nações desenvolvidas da Europa e do próprio carro chefe do capitalismo durante a Guerra Fria, os Estados Unidos, eram perigosos, pois desafiavam os desígnios das nações desenvolvidas. O ataque a Nkrumah procurava destruir seu trabalho interno em Gana e no exterior, junto a outros países subdesenvolvidos que não queriam seguir os planos de Washington. No caminho do acúmulo de capital, na luta contra o comunismo e na defesa dos privilégios do Ocidente, ele era um inimigo a ser derrotado.
Depois de décadas de colonialismo, Kwame Nkrumah tornou-se o primeiro líder de uma nação negra e independente ao sul do Saara em 1957. Ele viveu sob o colonialismo e sob o neocolonialismo e ambos moldaram sua visão de mundo. Nkrumah não esqueceu do papel do colonialismo em influenciar a África de seu tempo e nem o do neocolonialismo nas relações entre África e os países desenvolvidos. Mais do que um intérprete, ele foi um agitador pela mudança.
Lembrar do legado de Nkrumah é ter noção de sua criativa e combativa escrita e políticas contra-hegemônicas. Testemunha e habitante de um mundo desigual, racista e que subdesenvolveu não só a África, mas o terceiro mundo por completo, Nkrumah achou no marxismo-leninismo os fundamentos para pensar, discutir, ensinar e agir no mundo. Nisso ele não estava sozinho, foi dentro dessa esfera intelectual que outros notáveis do mundo ex-colonial e da luta antiimperialista se fizeram, entre eles o vietnamita Ho Chi Minh e o chinês Mao Tsé-Tung.
O imperialismo não era um fato novo quando ele veio ao mundo em 1909, na cidade de Nkroful, atual Gana. Nkrumah nasceu sob dois filhos do capitalismo contemporâneo, o imperialismo e o colonialismo. E foi no mundo capitalista que ele descobriu as possibilidades de análise do mundo. O próprio Ocidente que destruiu e alterou as sociedades nativas de muitos continentes também fornecia as ferramentas teóricas de sua própria derrocada.
Nkrumah passou por aquilo que muitos colonizados privilegiados passaram. Educação ao estilo europeu em missões cristãs e passagem para estudar nas universidades do mundo desenvolvido. Quebrando a regra que foi comum aos muitos intelectuais de África que se dirigiam para a Europa, Nkrumah embarcou para os Estados Unidos. Foi na Universidade de Lincoln que ele iniciou seus estudos superiores e por dez anos permaneceu no país que mais tarde o trataria como inimigo. Em 1935 ele estava matriculado e em 1938 já escrevia sobre imperialismo (BINEY, 2007, p.26). Entre algumas de suas influências estavam o alemão Karl Marx, o russo Vladimir Lênin, o italiano Giuseppe Mazzini e o jamaicano Marcus Garvey (BINEY, 2007, p.34).
Foi nos Estados Unidos e na Europa, assim como diversos outros importantes nomes da política africana do período da luta anticolonial, como o queniano Jomo Kenyatta e o tanzaniano Julius Nyerere (ambos estudaram na Inglaterra), que Nkrumah construiu seu arcabouço intelectual sem deixar de ter a África como centro de seu pensamento. Os tempos de estudo foram importantes porque permitiram que Nkrumah se tornasse íntimo da história, da filosofia e das ciências políticas (BINEY, 2007, p.29). As leituras radicais, revolucionárias e anticapitalistas tornaram-se parte de sua política pan-africana e socialista.
Talvez o primeiro grande impacto intelectual de Nkrumah venha com sua obra de 1963, quando era líder incontestável de uma Gana independente e soberana. Em África deve unir-se (1963), Nkrumah não vê saída para o continente que não seja a união entre povos que passaram por situações históricas semelhantes e que precisavam se desenvolver sob a mira de um Ocidente armado e sedento por recursos.
Nkrumah postulava que a África, durante a descolonização nas décadas de 1950 e 1960, passava por um processo de balcanização e de divisão de seu território de acordo com as medidas da Conferência de Berlim realizadas entre 1884 e 1885. Tratava-se de uma imposição imperial do século XIX que enfraqueceu e que ainda enfraquece os povos do continente. A união era, para Nkrumah, o modo de se tornar forte frente aos países desenvolvidos que dependiam (e ainda dependem) da dependência dos países africanos. Nkrumah sabia que os povos divididos não poderiam resistir ao poder das nações desenvolvidas.
Ainda em 1963, a sua defesa aguerrida do pan-africanismo conseguiu o mais forte impacto sobre África e o mundo. Nesse mesmo ano, em Adis Abeba, capital da Etiópia, 32 governos africanos assinaram a criação da Organização da Unidade Africana (atual União Africana) sob forte influência do ideário de Nkrumah e de outros pan-africanistas. Ainda que a criação não fosse uma união dos países africanos em um único Estado, como desejava o líder ganês, a iniciativa foi um gigante passo dado após décadas em que os povos de África não possuíam nenhuma autonomia.
Outro grande contributo de Nkrumah ocorreu sob a influência de Vladimir Lênin. Apoiado na obra de 1917, Imperialismo, o estágio superior do capitalismo, Nkrumah escreveu em 1965 Neocolonialismo, o último estágio do imperialismo. Nessa influente obra, ele argumenta que o fim do colonialismo não foi o fim das interferências estrangeiras em África. O colonialismo, parte do capitalismo, transformou-se no neocolonialismo.
E o que é esse tal de neocolonialismo? Nkrumah responde que capitalismo, imperialismo e neocolonialismo são armas do Ocidente (Europa Ocidental e Estados Unidos) para manter as antigas colônias em situação de “falsa independência” (NKRUMAH, 1969, p.7). De outra forma, países neocolonizados ainda estão sendo manipulados por interesses estrangeiros (NKRUMAH, 1969, p.33).
Se antes uma colônia estava submetida a uma única metrópole, agora uma neocolônia estava submetida a um coletivo de imperialistas (NKRUMAH, 1969, p.5). O próprio golpe que Nkrumah sofreu atesta isso. Três poderes capitalistas trabalharam para apoiar a sua queda. Para Nkrumah, neocolonialismo é a continuação da relação colonial entre África e os países centrais do capitalismo. Portanto, as descolonizações não terminaram com as interferências ocidentais em assuntos internos de África.
Nkrumah buscou agir no mundo como um revolucionário internacionalista. Em cooperação com outros países que buscavam uma via fora do capitalismo, mas também fora das ordens de Moscou (e sem abandonar ideias socialistas), a Gana de Nkrumah tornou-se um ponto de ligação para movimentos de contestação contra uma ordem mundial desigual.
Na luta internacional condicionada pela guerra fria, Nkrumah, junto do líder iugoslavo Josip Broz Tito, do presidente do Egito, Gamal Abdel Nasser, do primeiro-ministro da Índia, Jawaharlal Nehru, e do primeiro presidente da Indonésia, Sukarno, criou o Movimento dos Países Não Alinhados em 1961. Em um planeta dividido entre duas esferas de poder, o movimento buscava alternativas aos modelos civilizacionais de Washington e Moscou.
Herdeira da Conferência de Bandung ou Conferência Afro-Asiática que ocorreu em 1951, o Movimento dos Não Alinhados serviu para cimentar as relações entre os países recém emergidos na esfera internacional. Mais do que isso, o movimento tentou unir povos dos três continentes que mais sofreram com o colonialismo: África, Ásia e América Latina.
Em 1965, Kwame Nkrumah participou da Organização de Solidariedade com os Povos da Ásia e África, que um ano depois incluiria a América Latina. Em 1966, em Havana, ocorreu a Tricontinental, ou Organização de Solidariedade dos Povos da Ásia, África e América Latina. Líderes de diversos países se encontraram em Cuba para discutir e organizar o combate ao colonialismo, o neocolonialismo e o imperialismo.
Tais eventos não passaram despercebidos aos radares de Washington. Ao arregimentar povos, governos e recursos no campo de batalha das armas e das ideias, essas iniciativas ameaçavam o status quo. Referenciando a si mesmo há alguns séculos como o pináculo do desenvolvimento e único caminho possível, as forças capitalistas não aceitavam a autodeterminação de outros povos, pois essa liberdade e respeito aos diferentes prejudica a posição de explorador privilegiado dos países do centro. A liberdade do falatório liberal requer a subserviência dos povos periféricos e essa liberdade é também única, ou seja, nega uma pluralidade de visões sobre a ideia de liberdade.
Conhecedor das histórias de resistências dos povos oprimidos, Nkrumah também se amparou no exemplo histórico de lutas anticoloniais, anti-imperialistas e em favor da autodeterminação. As vitoriosas revoluções, de Cuba e Haiti, inspiraram-no a buscar mudanças não só por meio das palavras. As armas se tornaram mais presentes em sua visão de mundo depois que seus caminhos pacíficos foram abalados pelo golpe que sofreu pela ação do neocolonialismo.
Ao criar um manual de guerrilha e revolução em 1968 (Handbook of Revolutionary Warfare, ou Manual da Guerra Revolucionária) depois que foi derrubado, Nkrumah passou a postular a luta armada como forma de derrotar o capitalismo e erigir uma África unida por uma política socialista. Mesmo exilado na Guiné-Conakry, onde conheceu e passou muito tempo com o revolucionário, teórico e líder guerrilheiro Amílcar Cabral, Nkrumah ainda idealizava uma África unida sob a bandeira vermelha do socialismo e em cooperação com os povos oprimidos de outros continentes para derrotar as estruturas do capitalismo.
Uma das suas preocupações era mostrar que o Ocidente não possuía o único caminho do progresso e da felicidade, e que esses dois dados estavam atrelados ao arrasamento do resto do planeta. Desviar-se dos projetos sociais, políticos e econômicos euro-americanos não era sinônimo de autocracia ou barbarismo. Nkrumah foi vítima do fundamentalismo do Ocidente que justificava qualquer intervenção nos países da periferia para promover a sua suposta superioridade de guia civilizacional.
O neocolonialismo, teorizado e testemunhado por Nkrumah, precisou agir para manter o status quo capitalista. Governos após governos foram derrubados ao redor do mundo. A CIA coleciona uma longa lista de operações contra países considerados inimigos do capitalismo e da liberdade. Entre os fundadores do Movimento dos Não Alinhados, Nasser foi atacado por forças ocidentais, enquanto Sukarno e Nkrumah acabaram derrubados por golpes que obtiveram apoio dos Estados Unidos.
Mesmo exilado e longe dos holofotes que a sua antiga posição fornecia, Nkrumah não aceitou as derrotas impostas pelas forças neocoloniais. Se o momento combativo do pensamento de África e do terceiro mundo arrefeceu depois dos anos 1960 e 1970, lembrar de Nkrumah nos permite ver que as estruturas contra as quais ele lutou até o final de sua vida, em 1972, ainda estão presentes.
Lembra-te de Kwame Nkrumah porque a memória dele e seu legado intelectual são de alguém que desafiou um mundo que nos levou ao atual estágio, em que o desenvolvimento ao modelo ocidental destrói o planeta, empobrece os povos, coloniza mentes e vende a ideia de que não há outro caminho. Lembrar de Nkrumah é pensar numa tradição e numa geração dissidente que não tinha tempo para ter medo e que, diferente do estágio atual, não aceitava as regras do jogo impostas por jogadores que não vivem e nem entendem as perspectivas dos povos excluídos da ordem mundial.
Conhecer a sua obra é manter aceso conceitos que foram esquecidos, mas que ainda estão presentes em nossa vida. Onde há espaço para pensar o neocolonialismo na política atual? O termo sumiu como se os seus efeitos não fossem sentidos. Alguém acredita que países periféricos não estão submetidos por amarras neocoloniais? Há muitos que pensam que o termo reflete um período que passou, mas isso nunca aconteceu. O que foi apagado foi a memória e o saber de um período intelectual muito assertivo em suas propostas contra os poderes capitalistas.
Onde estão os debates sobre imperialismo, senão em apenas alguns pequenos grupos afastados do poder? E o constante legado colonial que afeta nossas vidas todos os dias? Nkrumah possui respostas que, ainda que não sejam completas, fornecem a base para entender muito do contexto mundial e africano do século XX. Entrar em sua obra nos permite pensar no futuro que nos espera ou no futuro que podemos fazer.
Bruno Ribeiro Oliveira é mestre em História de África pela Universidade de Lisboa e doutorando do Programa de História e Artes da Universidade de Granada.
Referências bibliográficas
NKRUMAH, Kwame. Handbook of Revolutionary Warfare. International Publishers, New York, 1969.
NKRUMAH, Kwame. Neocolonialismo – Último Estágio do Imperialismo. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1967.
BINEY, Ama Barbara. Kwame Nkrumah: An Intellectual Biography. University of London, 2007.