Lições das reformas previdenciária e tributária suíças
A “Reforma Tributária e Financiamento da Previdência” da Suíça, aprovada no dia 19 de maio de 2019, buscou conciliar temas como o direito à aposentadoria, o combate a privilégios tributários e o desenvolvimento tecnológico. Foi a segunda tentativa de solucionar esses problemas geralmente espinhosos para qualquer governo, uma vez que as reformas da previdência e tributária anteriores haviam sido rejeitadas na etapa final do voto popular – para quem não é familiarizado, vale observar que reformas na Suíça só entram em vigor quando aprovadas pela população no sistema político de voto direto.
No imaginário brasileiro, a Suíça é o país que deu certo, e por isso quase sempre aparece para nós como o exemplo a ser seguido. Esse olhar – que já é de antemão interessado – gera, porém, grandes distorções interpretativas. A Suíça acaba, na maioria dos casos, reduzida a um grande tudo e nada do debate teórico, termina por desaparecer enquanto objeto de análise, uma vez que defender a teoria se sobrepõe à atitude empírica.
Ao fim das discussões, geralmente inconclusivas, tendemos a ressaltar as diferenças, e logo aparece a máxima “não dá para comparar a Suíça com o Brasil”. Mas será mesmo que não há nada que possamos levar dessa comparação? Nós resolvemos investigar a maneira na qual foram aprovadas as recentes reformas na Suíça em busca de alguma positiva reflexão ao Brasil. A conclusão que chegamos é clara: indiscutível é o valor que a Suíça dá à democracia e como essa estrutura não só a política, mas também a economia.¹
A “Steuerreform und AHV-Finanzierung” (STAF) ou “Reforma Tributária e Financiamento da Previdência”, aprovada no dia 19 de maio de 2019, buscou conciliar temas como o direito à aposentadoria, o combate a privilégios tributários e o desenvolvimento tecnológico. Foi a segunda tentativa de solucionar esses problemas geralmente espinhosos para qualquer governo, uma vez que as reformas da previdência e tributária anteriores haviam sido rejeitadas na etapa final do voto popular – para quem não é familiarizado, vale observar que reformas na Suíça só entram em vigor quando aprovadas pela população no sistema político de voto direto.
Mais especificamente, em 2017, projetos de reformas tributária (“USR III”) e previdenciária (“Altersvorsorge 2020”) foram rejeitados, situação que deixou o Estado na obrigação de formular uma nova proposta – a STAF – em 2019, e preocupado com o futuro das contas nacionais caso a última também fosse reprovada: “A STAF é importante e urgente para a estabilidade do sistema previdenciário”, afirmou o Instituto Federal de Seguridade Social suíço. Um dos grandes desafios dos governantes era entender os motivos que levaram às primeiras recusas, ou seja, o motivo do descontentamento inicial do cidadão suíço em relação às duas primeiras propostas.
Sobre as duas primeiras propostas: as reformas não aprovadas no ano 2017
Quando colocada para votação, a reforma tributária “USR III” foi recusada com quase 60% de votos. Ela era importante porque findaria com os impostos reduzidos oferecidos a algumas multinacionais, em outras palavras, nivelaria os tributos federais. Era a resposta suíça à acusação de que o país não tinha comprometimento com os padrões internacionais de tributação.
Os dois principais partidos que se opuseram ao projeto (SP Schweiz e Grüne, ambos de centro-esquerda) encarnaram a principal insatisfação popular com a reforma: se posicionaram contra, posto que em conjunto com o nivelamento da tributação federal, a reforma permitia um afrouxamento dos tributos cantonais. Mais especificamente, o nivelamento dos impostos federais poderia ser compensado a partir da nova liberdade cantonal de reduzir impostos, reduções essas que tinham por objetivo manter a atratividade do país aos negócios. Os dois partidos alegaram que o afrouxamento tributário na esfera cantonal incentivaria uma guerra tributária entre eles que, em última instância, seria prejudicial à receita de todos – cantões deficitários prejudicariam, no longo prazo, o contribuinte ordinário, que acabaria por arcar com os custos.
Já o projeto de reforma da previdência (“Altersvorsorge 2020”) buscava solucionar o clássico problema da aposentadoria propondo a solução de aumentar os impostos para que não fosse preciso cortar nada das futuras pensões. É interessante notar que o projeto tinha forte aprovação partidária – o único partido contrário era o FDP (união de dois antigos partidos que hoje formam a Frente Liberal Radical) –, assim como grande apoio do Conselho Federal – mais importante órgão do governo suíço, composto por sete ministros que em conjunto praticam a função que no Brasil exerce a presidência. O projeto, porém, foi reprovado nas urnas, embora com uma margem apertada: 52,7% das pessoas votaram “não”.
Sobre a reforma STAF aprovada em 2019
A STAF, como dito, nasceu desse contexto, e por isso mesmo é um interessante exemplo de um sistema político que, forçado pela democracia direta, precisou construir saídas que agradassem de maneira mais feliz todas as partes, principalmente a sociedade civil que, como os votos deixaram claro, não se sentiu contemplada nos projetos de 2017.
Como a STAF resolveu o problema? A reforma de fato enquadrou a Suíça nos padrões internacionais de tributação acabando com os privilégios fiscais vigentes. Ou seja, findou as exclusividades tributárias de um seleto grupo de empresas, que agora vão ter que pagar impostos iguais a todas as outras empresas que operam no país.
Ao mesmo tempo, para que a Suíça permaneça um local de negócios atraente, e impedido de compensar os impostos federais a partir da redução dos impostos cantonais, o parlamento propôs um novo projeto de incentivos ao setor de pesquisa e desenvolvimento. Mais especificamente, a STAF incluiu o projeto denominado Patentbox. O que faz a Patentbox? O projeto direciona a nova receita da União a partir de uma específica lógica de incentivos e subsídios: a renda federal acumulada será alocada economicamente às empresas que desenvolverem patentes. Em outras palavras, o projeto permite que empresas que tenham desenvolvido novas tecnologias tenham direito aos subsídios estatais.
Por último, em relação ao dilema da aposentadoria, a fim de arrecadar mais receita ao sistema de pensões, e sem poder precarizar o direito à aposentadoria ou aumentar impostos dos contribuintes, como previa a reforma de 2017, o governo atendeu a insatisfação popular e resolveu aumentar impostos sobre lucros e dividendos. A STAF contribuiu, assim, para i) uma tributação mais igualitária, ii) o combate à desigualdade, e iii) incentivar o desenvolvimento de nova tecnologias.
Como explícito no processo da aprovação da reforma, foi a democracia – no formato do voto direto suíço – que impediu a primeira proposta de reforma da aposentadoria e reforma tributária de 2017. O que, posteriormente, forçou o sistema político a construir um novo caminho, a STAF em 2019, esse último mais vantajoso ao cidadão e ao desenvolvimento da economia do país como um todo.
O exemplo suíço, por isso, nos permite interessante reflexão, uma forma de escapar da atual falsa polaridade “direitos ou empregos”. Nesse sentido, a democracia como um valor deixado de lado pelo economista liberal brasileiro é mais do que mera questão de enfoque, mas parte central do problema. Erram os que creem que alguma verdade econômica faça algum bem sobrepujando o Estado democrático de direito. Mais que isso, talvez seja exatamente o contexto de retrocesso democrático o principal aspecto a ser levado em conta nas análises das reformas que ocorrem no Brasil de hoje. Peguemos a reforma da Previdência brasileira para expressar o ponto.
Mesmo não tendo sido aprovada em sua pior forma, a reforma não pode ser vista sozinha. Ela faz parte da conjuntura política e econômica neoliberal. Ou seja, precisamos questionar com qual intensidade a Previdência também não será afetada, por exemplo, pela reforma trabalhista aprovada anteriormente, uma vez que as novas leis reduzem a arrecadação da previdência ao transferir aqueles que contribuíam ao regime geral para a contribuição do sistema Simples ou MEI, como aponta a economista Laura Carvalho.
Quebra-cabeças complicado? Complicadíssimo. O que, por último, com certeza fundamenta o argumento das diferenças entre Suíça e Brasil. Na verdade, antes do exemplo brasileiro, a própria STAF – reforma que, como vimos, uniu todas as anteriores em um único projeto final – já nos induzia a levantar hipóteses dos motivos pelos quais formou-se a unidade: reforma tributária, previdenciária e incentivos econômicos fazem parte de uma constelação de interesses que, no caso suíço, o Estado optou por trabalhar em conjunto, para justamente viabilizar o complicado jogo do “toma lá, dá cá”, necessário ao objetivo de alcançar benefícios a todas as partes. Agora, diferenças entre os países à parte, temos aqui também o importante aspecto que mantém a possibilidade da comparação: seja no Brasil ou na Suíça, é inegável a importância de lutarmos por uma política no sentido democrático do termo.
Bruno Mäder Lins é cientista social formado na USP e mestrando em Política Econômica na Universidade de Genebra; e Saul Carvalho Isaias é advogado, formado em direito pela faculdade Mackenzie.
1 “Estudo de Caso do Modelo Suíço: Reformas da Previdência e Tributária com o objetivo de criar polos tecnológicos” foi apresentado no II Encontro Internacional de Direito Administrativo Contemporâneo e os Desafios da Sustentabilidade: cidades inteligentes, humanas, sustentáveis e a nova agenda urbana, no dia 31/10/2019.