Lições do Vietnã
A coalizão ocidental exerce hoje uma influência quase nula sobre as dimensões política e cultural afegãs. No que diz respeito à administração, os Estados Unidos não foram bem-sucedidos e tão logo as tropas se retirem, os talibãs, assim como fizeram os vietnamitas do Norte, acabarão com tudo o que foi implantado
Um documentário intitulado “Combat Patrols Afghanistan1”, o cineasta Bing West relata a temporada que passou no Afeganistão com as tropas americanas e ecoa uma opinião muito popular nos Estados Unidos: “É preciso infligir perdas mais pesadas aos nossos inimigos para arrasar o moral dos talibãs e das suas redes de militantes”. Além de demonstrar um total desconhecimento da realidade afegã, esse ponto de vista parece ser indiferente à opinião da população que, gostem ou não, vê nos talibãs a única organização político-militar eficiente do país. West e parte de seus compatriotas não percebem que enfretá-los equivale a lutar contra todos os afegãos, num combate impossível de vencer.
Foi a elaboração de um relatório sobre política americana que me fez descobrir o Afeganistão, em 1962. À época, suas montanhas de cascalho fragmentadas por profundos precipícios abrigavam cerca de 20 mil aldeias autônomas, que tinham em comum apenas a religião e os costumes. Os soviéticos invadiram o país 17 anos depois e demoraram uma década e 15 mil soldados mortos para entender que, mesmo se destruíssem um grande número dessas aldeias e expulsassem milhares de pessoas, jamais ganhariam a guerra. Segundo Zamir N. Kabulov, antigo embaixador soviético em Kabul, os Estados Unidos estão fadados a seguir a mesma sequência de erros de Moscou: eles querem esmagar os talibãs pela força, dividir internamente suas lideranças e destruir seus laços com o povo, para então lidar com um governo que eles mesmos terão escolhido – e tudo isso limitando suas perdas militares.
De certa maneira, essas estratégias também lembram a experiência do Vietnã, onde os Estados Unidos tentaram – em vão – fracionar as forças que dirigiam o inimigo. Eles se esforçaram para isolar os comunistas do restante da população, reagrupando esta última dentro de “vilarejos estratégicos”2. No Vietnã essa fórmula parecia fácil porque a sua população tinha poucas afinidades com o comunismo, mas no Afeganistão é diferente: lá, o Islã e o código da honra estão profundamente enraizados.
Na qualidade de membro do Policy Planning Council – braço estratégico do Departamento de Defesa americano – eu fiz uma palestra para membros do National War College (Escola Nacional de Guerra dos Estados) onde previ nossa derrota no Vietnã. Estávamos em 1963. Na ocasião, defendi a necessidade de agirmos em três frentes – política, administrativa e militar – para tentar reverter a derrota, atribuindo a cada uma um percentual correspondente à sua importância. Em minha opinião, a frente política representava cerca de 80% do combate e ser travado – terreno onde Ho Chi Minh nadava de braçada, inclusive no Vietnã do Sul. A vertente administrativa tinha, por sua vez, um peso de 15%, e visava recuperar toda a infraestrutura destruída pelo conflito e retomar os serviços públicos, praticamente extintos em algumas regiões por ordem Ho Chi Minh. E, por fim, a dimensão militar representava os 5% restantes.
Assim como ocorria naquele momento no Vietnã, hoje no Afeganistão a coalizão ocidental exerce uma influência bastante reduzida – para não dizer nula – sobre as dimensões política e cultural: via de regra, e desde sempre, todos os afegãos repelem as incursões estrangeiras. No que diz respeito à administração, os Estados Unidos tampouco foram bem-sucedidos e tão logo as tropas se retirarem, os talibãs, assim como fizeram os vietnamitas do Norte, acabarão com tudo o que foi implantado. Quanto à intervenção do exército americano, basta dizer que ainda que os EUA sempre ganhem as batalhas mais importantes, por terem uma força de ataque superior, isso só faz com que mais insurretos surjam em outros lugares.
O antigo governo sul-vietnamita e a atual administração afegã se parecem muito num ponto essencial: a população os detesta e os teme. A corrupção das autoridades de Saigon era notória – não só os funcionários desviavam as ajudas financeiras e os alimentos destinados ao povo, como eles também vendiam para os seus próprios inimigos do Norte os equipamentos militares e as armas fornecidas pelos Estados Unidos. Além disso, todas as missões perigosas eram sempre entregues às forças americanas. Um coronel da Interagency Task Force (Força- -Tarefa Interagências), um órgão que eu dirigia, estava convencido de que tão logo o exército sul-vietnamita era informado dos planos americanos, os Marines podiam estar certos de serem alvos de emboscadas nas missões seguintes.
No Afeganistão, o governo nomeado por Washington está amplamente envolvido no tráfico de drogas e fatura com a venda de empregos na polícia, no exército e nos serviços públicos. Além disso, seus representantes julgam os casos jurídicos em função das propinas que recebe e chegaram até mesmo a fornecer munições aos talibãs. Para esses dirigentes, tudo está à venda. A reeleição de Hamid Karzai aparenta ser uma grande farsa – já que os resultados foram anunciados muito antes da contagem dos votos –, e a autoridade do presidente não se estende além dos limites da capital Kabul.
Custos estratosféricos
Em contrapartida, o Afeganistão se diferencia do Vietnã pela existência dos chefes de guerra, que também têm sua fatia na divisão do bolo do governo. Assim, para “vencer” no pleito recente, Karzai repatriou da Turquia o uzbeque Rashid Dostum, acusado, entre outros, de ter permitido o massacre de vários milhares de talibãs detidos numa prisão no norte do país, logo após a invasão americana em 2001. Esses chefes, detestados e temidos pelos afegãos, constituem o melhor trunfo dos insurretos, que denunciam com frequência sua ligação com os EUA.
O que podemos prever, então, para os próximos meses? O presidente Barack Obama afirma que os americanos devem vencer. O secretário de Estado da Defesa Robert Gates proclama que eles deverão permanecer no Afeganistão “por mais alguns anos”, enquanto o Canadá já definiu uma data para a retirada das suas tropas e os alemães, assim como os noruegueses, vêm questionando a validade da sua presença.
Baseando-se no precedente iraquiano, calcula-se que o custo global da guerra no Afeganistão corresponde a uma quantia módica situada entre US$ 3 e US$ 6 trilhões, ou seja, mais de um quarto do produto interno bruto americano. Continuar essa guerra tornaria irrealizável o programa de política interna do presidente Obama, mas o presidente decidiu “manter o rumo”, apresentando o Afeganistão como o berço do terrorismo. Não poderia estar mais errado: é a ação militar americana que favorece o terrorismo. Os terroristas não precisam do Afeganistão, um país encravado nas montanhas e bastante carente em transportes e comunicações. Os ataques de 11 de setembro foram desfechados a partir da Europa, demonstrando que esses grupos podem operar a partir de qualquer lugar. Uma “vitória” americana no Afeganistão não seria apenas inútil, pois ela não os deteria, mas ela os incentivaria mais ainda a prosseguir.
Além disso, é preciso pontuar que os talibãs e a Al Qaeda obedecem a lógicas muito diferentes, mas esta distinção permanece confusa em muitas mentes. Os primeiros integram uma organização política nacional, um verdadeiro governo interno no exílio que se baseia numa liderança tradicional e numa etnia dominante. Por sua vez, a Al Qaeda viabiliza os vínculos entre homens e mulheres instalados em diversos lugares no planeta, que agem por conta própria, sem comando central – já que Osama Bin Laden não é o seu general, mas sim seu guru. Enquanto todos eles são crias da herança violenta e deslocada do imperialismo majoritariamente ocidental, os seus objetivos são diferentes.
Dessa forma, Washington teria muito a ganhar se baseasse sua política de defesa em alguns princípios simples: a elaboração de uma política de longo prazo que impeça os grupos terroristas de se reforçarem; a busca de um compromisso capaz de abrir caminho para a reconciliação nacional no Afeganistão; e, por fim, diminuir a confiança nos “especialistas”: as receitas “vencedoras” que eles propõem a Obama são similares àquelas que sempre fracassaram.
*William P. Polk, antigo membro do Policy Planning Council, é professor de história na Universidade de Chicago e presidente do Adlai Stevenson Institute of International Affairs. É autor, entre outros, de Violent Politics. A History of Insurgency, Terrorism & Guerrilla War, From the American Revolution to Iraq, Harper, Nova York, 2008 e de Understanding Iran, Macmillan, Nova York, 2009.