Linhas Vermelhas: performances feministas na experiência da dor
As linhas vermelhas são uma espécie de memória silenciosa de uma história antiga, uma história feminina sempre lançada à sombra, a história da violência contra a mulher, que vem à tona e ganha forma e movimento na performance “No princípio fomos todos mulheres”
Matérias de jornal sobre feminicídio ocupam uma banheira, no lugar da água. Uma mulher descalça tenta andar e se equilibrar em um caminho repleto de cacos de vidro. Outra mulher lava as mãos numa bacia suja de sangue. Linhas vermelhas envolvem os corpos de todas essas mulheres, mesmo aquela que aparentemente não corre nenhum risco: numa mesa de jantar, uma jovem bebe vinho, ansiosa, feliz, à espera de alguém. As linhas vermelhas ao redor de seu corpo são um anúncio, todas essas mulheres estão conectadas, há uma história em comum a todas que corre, silenciosa, pelos seus corpos, corre silenciosa por gerações. As linhas vermelhas podem permanecer frouxas sobre as suas peles, ou podem apertar, sufocar, matar.
As linhas vermelhas são uma espécie de memória silenciosa de uma história antiga, uma história feminina sempre lançada à sombra, a história da violência contra a mulher, que vem à tona e ganha forma e movimento na performance “No princípio fomos todos mulheres”, do coletivo Sozinhas somos muitas, apresentada no Parque Lage – no evento “Um Berro, um sussurro”, idealizado por Tanja Budon – em junho de 2019.

As imagens são fortes, as linhas podem também atravessar os rostos, cobrir olhos e bocas, impedindo a fala, impondo uma cegueira e desnorteamento de si mesma e da própria condição. Aos poucos, a própria dinâmica da performance no espaço revela que aquelas mulheres não estão sozinhas, elas vão percebendo a presença uma da outra, o que as conecta, a linha vermelha. É nesse momento, da consciência do coletivo, que essas experiências traumáticas saem de um dor individual e se transformam em possibilidades de troca, cura e libertação.
Compondo o ciclo “Arte e Feminismos”, da edição especial Feminismos Transnacionais, a escritora Claudia Lage conversa com a diretora da performance Ana Paula Lopes, uma das criadoras do projeto Beatriz Brandão, uma das atrizes, Witória Santos e a pesquisadora porto-riquenha Carmen Soto, com direito a intervenções poéticas de Adelaide Ivánova, Conceição Evaristo, Angélica Freitas, Alice Ruiz e Sylvia Plath.
de que adianta minha insônia e meu jejum e esse
poema se na papua nova guiné não iriam entendê-lo
e mesmo a compreensão dele não salvaria a vida da
mulher e mesmo no brasil onde se pode entendê-lo já
se sabe que poemas tal qual leis não mudam nada tudo
sobre isso já foi legislado e dito em todas as línguas
também em português mas meu deus
de que adiantaria meu silêncio?
de quem estaria meu silêncio a serviço?
(Adelaide Ivánova)
O debate sobre temas feministas, como a violência doméstica, aumentou nos últimos anos, especialmente depois da Lei Maria da Penha, como vocês se aproximaram desse tema, ou como o tema se aproximou de vocês?
Beatriz Brandão– Foi um bom ponto de partida você trazer a perspectiva jurídica, com a Lei Maria da Penha, de 2006, para pensar a violência contra a mulher. O tema, a partir dela, alcançou mais debate público, se expandiu politicamente e se tornou mais próximo das mulheres, modificando certas narrativas correntes. É importante frisar que os estudos feministas, tanto academicamente quanto em seus movimentos políticos, são muito fortes desde a primeira onda do feminismo, com as sufragistas, já no fim do século XIX. No entanto, muitos casos de violência (de todo tipo) continuam sendo vivenciados e naturalizados em relações afetivas, familiares, de trabalho e havia a falta de um respaldo legal que aglutinasse várias instâncias em torno desses casos, alcançando e se capilarizando para mulheres, de todas as classes sociais, poderem reaver as violações diárias a que estavam submetidas. Esse vácuo histórico – de modo material e legal – me faz acreditar que a primeira aproximação com esse tema se dá primeiro de forma ainda inconsciente, quando se veem permeadas de silenciamentos e culpabilizações e, não conseguem explicar tais questões de forma teórica, histórica, de direitos. Em muitos casos, há uma virada, um momento chave em que essas representações violentas são postas à prova. As biografias e as trajetórias pessoais, em algum momento, vão se atravessar com a desnaturalização de atos nocivos. Como você perguntou sobre a nossa relação em específico, o feminismo se apresentou a mim, de forma mais profunda, pelo tema do abuso. O abuso é tratado como uma atitude que faz com que a pessoa se sinta silenciada, agredida. Porém, comecei a perceber que algo se torna ainda mais abusivo quando não somente nos sentimos, mas quando não nos vemos como parte agredida. Isso é, o abuso se inicia com o outro sabendo que está sendo desrespeitado e acaba com o outro se culpando por estar sendo desrespeitado. A partir disso, comecei a perceber que quando eu era respeitada, aquilo me assustava. Como pode o respeito assustar?
Ana Paula Lopes – Principalmente após o assassinato da Marielle. Soube à noite, pela minha irmã, antes de ser noticiado no dia seguinte. Fui à primeira manifestação no Centro da Cidade e encontrei um ex-aluno que mora na Maré, conhecia a Marielle, convivia com ela. Ele estava petrificado. Sou professora de teatro e, naquele momento, me dei conta de como era importante me aproximar dos coletivos da escola, dar voz aos alunos, para que não fossem paralisados pelo medo. Comecei a trabalhar mais intensamente com o Teatro do Oprimido, porque o Boal dá corpo, voz e visibilidade a quem não tem, investigando, coletivamente, relações entre opressor e oprimido, que emergem sob diferentes pontos de vista, assim como os possíveis caminhos de libertação. Paralelamente participei de uma oficina de teatro para mulheres com a Jaqueline Elesbão, atriz e ativista negra. Foi ali que, ouvindo histórias de diferentes mulheres, na singularidade de cada uma delas, reconheci abusos silenciados em mim, nas do meu convívio. Percebi como, muitas vezes, não nos damos conta desse sistema patriarcal e repetimos comportamentos historicamente arraigados. Senti então a necessidade de levar essa experiência para as minhas alunas adolescentes e para a exposição que o meu coletivo foi convidado a fazer no CCC, ampliando a investigação e o debate. O trabalho resultou em sessenta pequenas telas, janelas do cotidiano, formando um grande painel sobre a violência contra a mulher. Também em uma instalação com um vestido de noiva, objeto de desejo idealizado no imaginário feminino, suspenso pela tênue linha entre sonho e realidade, já que a maioria dos feminicídios acontece por parte do próprio cônjuge, vide a história da Maria da Penha, que dá nome à nossa lei.

A ideia do projeto que desencadeou na performance no Parque Lage surgiu a partir de reflexões solitárias ou coletivas?
BB – Acho que o nome do projeto fala muito sobre sua pergunta: Sozinhas somos muitas. Nada nunca é só nosso, mas sempre fala de nós. Um processo que pode começar de forma solitária nunca se estanca em nós mesmas. Falar de outras ao mesmo tempo que se fala de si denota uma emoção partilhada, em que há uma gestão de autobiografias em cruzamentos. Nesse caso, surgiu de uniões de dilemas pessoais meus, Piera Pillar e Rebeca Banus, que se expandiram a muitas outras mulheres. A prática artística foi a linguagem que alcançamos como forma de tradução de sentimentos represados, fazendo, atuando, cantando, agindo, escrevendo conseguimos nos acessar mais que de outro modo que havíamos tentado antes. Esse é o sentido de eu – sozinha – ser muitas ao mesmo tempo. E que preciso, do mesmo modo, ser sozinha para me descobrir em (e com) muitas. Como foi expresso no roteiro cênico, não há um uso monolítico da categoria mulher, pensamos em formas de liberdades. Como recuperar, significar, encontrar as possíveis liberdades que temos dentro das trilhas femininas. Essas passam por atos políticos, éticos e estéticos, que foram vistos e apresentados em cada partitura artística.
Um desdobramento da pergunta anterior: em algum momento ou em qual momento as percepções e tomadas de consciência sobre a condição da mulher na sociedade geraram um desejo de sair de si, unir a sua reflexão a de outras mulheres, tornar essa reflexão mais ativa?
BB – Descobri uma coisa muito potente depois da experiência entre arte e feminismo. O feminismo me alcançou não somente de forma teórica, mas pessoal e artística, e mostrou que há um espaço comum que absorve e compreende as mulheres. É uma espécie de existência comum, em que as vidas se percorrem, se confundem e se diferenciam, ao mesmo tempo. Ao passo que é uno, é também parte de um todo, uma experiência partilhável numa linguagem. Quando digo isso, não ignoro os muitos feminismos, as experiências culturais dissonantes, as classes sociais e etnias diferentes, os privilégios e mulheres que são mais propensas a serem violadas que outras. Estatísticas nos mostram isso. As experiências, além de particulares, são circunstanciadas num espaço-tempo, numa cultura, em tradições e trocas subjetivas. Entretanto, acredito que há um silêncio sonoro que nos circunda, que reverbera, revela e nos afeta em ressonâncias plurais.
Da língua cortada,
digo tudo,
amasso o silencio
e no farfalhar do meio som
solto o grito do grito do grito
e encontro a fala anterior,
aquela que emudecida,
conservou a voz e os sentidos
(Conceição Evaristo)

Nos depoimentos de mulheres que sofreram violência, elas geralmente relatam que viveram longos anos em silêncio, antes de conseguir falar sobre o abuso e a violência que sofriam. Pensando no processo criativo, como foi trabalhado artisticamente esses dois aspectos, a violência e o silêncio? No caso do silêncio, como se realizou a representação dessa opressão que está no não dito? No caso da violência contra a mulher, que é diferente de outras violências, já que ela envolve afetos e relações muitas vezes próximas, como se representa algo tão brutal e ao mesmo tempo tão íntimo?
AP – O silêncio é o cerne, o abismo individual que se instaura e, ao longo do tempo, forma uma massa invisível que se transforma em silenciamento. Quando a Bia me convidou para fazer a direção, havia uma ideia já esboçada da concepção a partir do vestuário, que foi se modificando e ganhando forma com os nossos sucessivos encontros. Isso se deu mais efetivamente quando fomos à biblioteca do Parque Lage, e vimos o espaço onde aconteceria a performance. O que, a princípio, seria realizado por três mulheres, tornou-se muitas. Foi justamente pensando no silenciamento da violência e, nessa relação entre brutalidade e intimidade, que procurei fazer um desenho entre a pesquisa, as entrevistas e as histórias individuais das performers em ressonância com o espaço. Na parte interna da biblioteca, entre linhas vermelhas amarradas ao corpo e aos objetos, a repetição das ações, desvelavam a violência íntima, velada aos olhos do espectador. Uma pequena porta, que dava acesso à varanda, sugeria uma abertura, e a possibilidade de vislumbrar alguma liberdade, mesmo que levando no corpo reminiscências da linha vermelha. E da varanda, ao longe, próximo à mata, mulheres fazendo música em seus corpos dançantes. As únicas que, libertas, numa outra dimensão, não paralisavam ao som do sino. O sino, ideia de nossa pesquisadora Liz Cosmelli, em seu constante e incessante badalar, imobilizava a todas, fazendo lembrar que, de quatro em quatro minutos, uma mulher no Brasil sofre algum tipo de violência e um novo abismo se instaura.
É preciso coragem para sair de uma relação abusiva, e mesmo para falar sobre ela, como essa dificuldade foi tratada emocional e esteticamente, na relação com as atrizes e em relação com o espaço?
BB – O primeiro passo é ter a consciência do abuso, como disse, o mais difícil é quando a parte agredida se sente culpada por se sentir abusada e o processo de desconstrução não se dá sem complexidades. Um caminho em espiral, de idas e vindas, onde tem-se que conhecer a você mesma, a situação que a relação se inscreve, o outro, saber os limites e alargamentos de seus direitos e da outra parte. Não é uma equação simples, ela se dá em processo, em etapas, em gradações. As nossas camadas vão sendo descobertas, retrabalhadas, realocadas. O desafio de tradução artística, com mulheres de idades, raças e classes diferentes, foi a de ouvi-las e perscrutar suas singularidades para dar voz à um coletivo, algo que lhes fosse verdadeiro e característico, ao mesmo tempo perceptível e de apreensão aos que iam nos assistir. E o processo artístico se transparece nos instantes da performance. Buscamos montar um repertório verdadeiro vindo delas, assim, propomos escalas e estações para contar essas histórias. A primeira, de chegada, se mostrava num estado real das opressões: da que grita e nos coloca diante da visibilidade do feminicídio, até aos abusos silenciosos, silenciados e propositalmente sutis, expressos em sorrisos, convites e sussurros. A experiência com esse primeiro momento nos encaminha para um “entre lugar”, aquele que a mulher começa a tomar consciência e a tentar se expressar diante das violências que a tentam desigualar. A desigualdade escancara um processo de tentativa de encontro pessoal e coletivo, pautado não mais por essa lógica desigual, e sim na descoberta de diversidades e diferenças. Temos em cena mulheres fazendo uso de suas próprias possibilidades e recursos de sair do silenciamento. A terceira escala é sonora, é para a qual caminhamos nesse processo de conhecimento da própria opressão, da chegada a um “entre lugar” de encontro consigo, até o possível terreno de libertações diversas.
você traça os hematomas em suas costelas
com dedos nervosos
antes que ele acerte o seu rosto surpreso
(Rupi Kaur)
A imagem de uma linha vermelha está presente no seu trabalho em diversos momentos, pode falar um pouco dessa escolha estética para este tema específico?
AP- A linha vermelha deve estar em algum lugar do meu inconsciente. Há muito tempo eu me deparei com a carcaça de um cachorro morto queimado em um terreno da EBA, onde estudava. Fui arrebatada por aquela imagem e, com a ajuda de amigos, tive o impulso de realizar um ritual circunscrevendo o cadáver, como que o restituindo de vida ao dignificá-lo na morte. Foi nesse ritual que, pela primeira vez, a linha vermelha surgiu desenhada sobre um filó branco sobreposto à carcaça do animal. Esse trabalho foi tão significativo para mim que o escolhi para a exposição de formatura no MNBA. Agora, depois de muito tempo, a linha vermelha ressurge justo na exposição sobre a violência contra a mulher: na instalação do vestido de noiva e em uma das sessenta telas de pequeno formato escrevendo a palavra amor, “em seus altos e baixos”, como disse um aluno ao observar o movimento da linha sobre a tela. Eu não tinha pensado em incluir a linha vermelha na performance, mas ela apareceu, instintivamente, durante o processo, ganhando presença na cena como elemento simbólico, envolvendo os corpos das performers, atando-as aos objetos, ou como rastros no espaço. Até mesmo à minha participação, com o novelo da linha vermelha em mãos. Eu percorria os espaços e me aproximava, cuidadosamente, de quem cruzasse o meu caminho, então perguntava se a pessoa já tinha vivenciado alguma situação de abuso ou se conhecia alguém que já tivesse. Se a resposta fosse positiva, eu pedia permissão para amarrar um pedaço da linha vermelha no pulso dela, como que ritualizando um pacto, num gesto de conexão e solidariedade. Foi uma experiência muito íntima e singular. A linha vermelha é esse acontecimento, a veia correndo sangue. Talvez o cordão umbilical. Ou quem sabe esta indeterminação da vida, esta linha tênue que nos separa da morte.
Qual foi o impacto da performance no público, nas mulheres e também nos homens? Houve diferenças nas reações, na receptividade e no olhar para essas experiências?
AP – Para falar deste impacto eu preciso ressaltar que houve um processo intenso de concepção e, nessa concretização do desenho no espaço, a escuta da Rebeca Banus foi determinante porque ela conseguiu realizar, com o mínimo de recursos, um trabalho primoroso: desde a criação da iluminação com abajures à cuidadosa escolha dos adereços em detalhes que fizeram toda a diferença, a cereja do bolo. Como migramos de três para muitas mulheres, foi também necessário pensar numa estratégia de realização junto à produção e eu confesso que me espantava com a eficiência da Carolina Torres, porque eu mal terminava de falar, ela já tinha realizado. Eu acredito que é esta vontade de realização, todo esse trabalho por trás, que causa impacto. E o impacto se dá não apenas no público, mas em todas nós, que fazemos a coisa acontecer. Eu não tenho como mensurar o que foi gerado em cada um, mas arrisco dizer que quem foi, saiu de alguma forma afetado, porque havia, naquele espaço, muita potência de vida. Levo comigo a alegria da realização, do encontro. E as inúmeras linhas vermelhas que amarrei como um sinal de que, mesmo com tudo contra, é preciso continuar.
Algum homem que assistiu demonstrou desconforto pela consciência de que o seu gênero estava ali presente também, apesar da ausência física, mas como sujeito da violência contra a mulher?
BB – Sim, recebemos muitos relatos, alguns por escrito. Tivemos muitas surpresas em relação ao impacto da performance com os homens. Não criamos tantas expectativas com isso, o que fez com que os retornos fossem ainda mais potentes. Dois homens, Rafael Teixeira e Eduardo Talois, escreveram relatos tocantes e fortíssimos. Outros dois ainda usavam enrolados em seus pulsos a linha vermelha da performance. Disseram que não tirariam de seus corpos para que lembrassem dos abusos e violências que as mulheres sofrem.
E eu uma mulher sempre sorrindo.
Tenho apenas trinta anos.
E como o gato, nove vidas para morrer.
(Sylvia Plath)
Qual foi o impacto da performance em vocês, que as levou a pensar num desdobramento? É a urgência de se falar no assunto? A forma em que o assunto foi tratado artisticamente?
Carmen Soto – A minha experiência de poder ver a performance sobre violência contra a mulher que a Ana Paula dirigiu no Parque de Lage foi transformadora, um acontecimento que validou a minha estadia no Rio de Janeiro. Eu havia chegado ao Rio com algumas premissas que já faziam parte programa de pesquisa de pós-graduação em relações internacionais da universidade New School de Nova York, que necessitavam ser clareadas. Foi então que uma amiga, a artista e ativista Julie Brasil, recomendou a performance No Princípio fomos todos mulheres, que se relacionava à minha área de interesse: questões feministas, ativismo e arte. Desde que vi a performance me dei conta de que era esse, mais precisamente, o tema que eu queria investigar nestes dois meses. Queria explorar mais a violência contra a mulher e descobrir que tipo de ativismo estava sendo realizado no Rio de Janeiro para educar a sociedade. Algo despertou o meu coração e me tocou profundamente quando vi a performance no Parque Lage. Além de assistir, eu queria participar de algum dos maravilhosos projetos que a Ana Paula tinha em mente relacionado a este ativismo para trazer a consciência sobre a violência doméstica. Eu e minha colega de trabalho, Emilly Keller, nos aproximamos da Ana Paula e, de uma entrevista, surgiu a proposta da realização de uma nova performance como possibilidade do caminho de libertação, rompendo com o ciclo dos maus-tratos. Desde a realização da performance na praia, o mar nunca mais voltou a ser o mesmo para mim. Agora eu vejo o oceano com o significado de liberdade e amor, me recordando que a luta deve ser constante e que a voz das muitas mulheres ativistas que lutam contra as injustiças deve ser escutada. Essas experiências me impactaram tanto de forma pessoal, como profissional. Essa experiência e ajudou a ver a arte de uma outra perspectiva, me deixou clara a possibilidade do grande lugar de troca, da importância de levar voz a todas às comunidades.
Fale um pouco do seu processo pessoal no projeto do Parque Lage e também na performance feita na praia posteriormente?
Witória Santos – Ter sido abusada pelo meu padrasto foi sempre um grande tabu na minha vida. Antes mesmo de decidir por mim mesma, se eu me sentia à vontade para falar sobre isso com outras pessoas, me disseram: “não fica falando disso para os outros”. Como se fosse algo do qual eu devesse me envergonhar, esconder para que ninguém soubesse… E durante anos eu guardei isso dentro de mim. E junto com a lembrança do ocorrido eu guardei a dor. Na escola, numa roda de conversa sobre violência contra mulheres, com minha professora de teatro Ana Paula, me senti à vontade para falar sobre a minha experiência, me senti tão acolhida e abraçada que aceitei o convite, primeiramente para transformar a minha experiência em um trabalho teatral no CEFET/RJ. Ao lado de outros alunos e da professora, adaptamos a minha história para uma cena de teatro fórum, do Teatro do Oprimido. Posteriormente participei da Performance No Princípio Fomos Todos Mulheres, no Parque Lage. A experiência foi de liberdade. Me senti tão apoiada por todas aquelas outras mulheres, me senti apoiada por mim mesma, ali, expressando através da arte a dor que eu sentia. Sem perceber, a cada toque do sino uma parte dessa dor se esvaía do meu peito, a cada gesto, fala, abraço que eu recebia, uma parte dessa dor de esvaía do meu peito. Ao final de tudo eu me sentia livre… livre da dor, da vergonha… havia entendido que a culpa não era minha e a única pessoa que deveria se envergonhar era o meu abusador, não eu. E então na performance seguinte, realizada na praia, veio a cura final. Ali, na praia, um lugar tão especial para mim, o lugar que mais me traz paz no mundo, o processo de finalização daquela ferida aconteceu. Através da arte.
Houve alguma diferença de sentido e aprendizado nas duas experiências? Como foi participar do projeto na praia depois da apresentação no Parque Lage, o que você levou de uma experiência a outra?
WS – As duas performances foram fortemente complementares para mim. A primeira, no Parque Lage veio como a parte de libertação daquela dor causada pelo abuso e pela vergonha. Foi o momento onde eu aprendi que não estava sozinha, que não haviam motivos para sentir vergonha de nada. Aprendi que a melhor forma de me libertar era pôr para fora, e tive a oportunidade de fazer isso ao lado de outras mulheres que me entendiam e me acolheram. A segunda performance na praia veio com o sentido de cura. Ter acontecido na praia, um lugar que eu amo e sempre procuro estar quando não me sinto bem, só potencializou esse sentimento de cura final. Ali, eu não só vesti branco, eu vesti tudo que aquela cor significa. Vesti a paz, a serenidade e a tranquilidade de ter finalmente deixado uma grande dor ir e uma grande ferida finalmente se fechar. Ao segurar as mãos daquelas mulheres que estavam ali comigo, eu tive força e segurança para erguer dentro de mim uma nova mulher, muito mais forte e mais preparada para erguer outras mulheres e ser para elas o que as mulheres da Performance foram para mim: um grande apoio de cura e transformação.
(A mulher é uma construção
Com buracos demais
Vaza
(Angélica Freitas)

Vocês perceberam alguma mudança no olhar de vocês sobre as mulheres e o tema depois de todo o processo? Como entraram e como saíram da experiência?
BB – Sim, muitas coisas, tanto na relação com as mulheres, suas dissidências pessoais, seus encontros, atravessamentos que nos promovem uma ligação. Muita coisa marcou no processo, na formação, e teve suas formas de ressoar e reverberar em cada uma. Vou apontar dois pontos principais, um sobre a minha relação com outras mulheres e outro no tocante à arte. Saio na certeza que as histórias singulares são sobre nós e que, juntas, chegamos a um ponto que sempre ressalto: que o pouco não nos baste. Ao que se refere às performances feministas, penso que a violência contra a mulher e o sexismo cultural não são acidentais. Assim como a arte feminina não é acidental. A capacidade de formular renascimentos, de dar ventre à luz não é um acidente.
AP – O mais potente para mim foi juntar muitas mulheres, de diferentes locais, idades, etnias. A diversidade faz toda a diferença porque agrega experiências de vida muito distintas, quebra modelos, estereótipos, e nos engrandece ao trazer novas questões que fazem rever conceitos, nos colocando em constante aprendizagem. No espaço interno da biblioteca, pensado para denunciar e silenciamento histórico, nenhuma mulher teria voz, só que a Ana Luz, atriz negra que ficou na banheira sob as notícias de feminicídio (já que as mulheres negras estão entre os maiores índices) escreveu um texto que necessitava ser dito. Então, nesta recíproca escuta, eu ia fazendo os ajustes necessários. O texto da Ana soou como uma lâmina no espaço, um rasgo, uma abertura em contraponto as ações das demais performers. Na entrada da biblioteca Juliana Dalle, com sua presença imponente e sorriso largo, recebia o público, como uma boa mulher deve fazer. Adentrado o espaço, o passante mais atento, perceberia a Ju Satiê, espremida entre estantes com pedras amarradas aos pés numa ação que remetia às opressões da cultura oriental. Tatiana Oliveira, entre outras prateleiras, procurava respostas, num jogo com livros feministas. Bia Leitte ia e vinha num constante percurso, do corredor para a janela, anteparo que permitia ver o exterior, mas que a impedia de sair. Lá no fundo, Gabriela Tozato, impossibilitada de se expressar, tentava se libertar das linhas que lhe amarravam o corpo. Lembro-me da aflição de umas jovens perguntando se poderiam libertá-la ao que respondi que a decisão não era minha. Jade Cardozzo, sentada à mesa de jantar, esbanjando beleza, na espera de alguém se sentar, limpava os lábios vermelhos nos guardanapos brancos que ali se acumulavam. Na pia ao lado, Sarah Mantuan lavava, incessantemente, o seu corpo juvenil na água que corria vermelha. Atrás da porta, perto da saída para a varanda, quase despercebida, Isabelle Lopes, realizava gestos reminiscentes da bulimia que a acometeu. Todas amarradas por linha vermelha presas aos objetos no espaço. Saindo pela pequena portinha que dava para varanda, algum vento e a possibilidade de encontrar caminho. Jéssica Luz, no processo de libertação, se equilibrava sobre cacos de vidro, transitando entre o dentro e o fora. Beatriz Brandão, em seu processo de restauração, trazia consigo poemas de mulheres, que contava aos que cruzavam o seu caminho. Maiara Astarte, com penetrantes olhos de índia, nos fazia abismar, e o doce canto de Piera Pillar apontando novos horizontes nos levava a ver, integradas à mata, três mulheres dançantes, Amanda Gouveia, Dandara Patroclo e Maristela Trindade, na singularidade de idades e corpos, plenas de vida e de si. Neste cenário, eu, Ana Paula Lopes, circulava com o novelo da linha vermelha em mãos, amarrando os pulsos dos que já haviam sofrido ou cometido algum tipo de abuso, enquanto Aline Casciano, com seus olhos de águia, eternizava na sua inigualável fotografia, imagens que se desvaíam. Entre nós, Witoria Santos, nos seus 15 anos, a mais nova, que após fazer na escola uma cena de teatro fórum sobre a tentativa de abuso do seu padrasto e discursar para todas sobre a importância de não se calar, contava agora, pessoalmente, frente à frente, a sua história de superação. Da entrevista que dei para estudantes da New School de NY que neste dia nos assistiram, uma nova performance nasceu. Aconteceu na praia, como um ritual de cura, onde levamos a linha vermelha ao mar porque, na maioria das entrevistas que realizei com mulheres que sofreram violência foi o mar que emergiu.
Era uma vez
uma mulher que
via um futuro grandioso
para cada homem
que a tocava.
Um dia
ela se tocou
Claudia Lage é escritora e roteirista, formada em Teatro (UNIRIO) e Letras (UFF), mestre em Literatura (PUC-Rio). Autora do livro de contos A pequena morte e outras naturezas, e do romance Mundos de Eufrásia, finalista do Prêmio São Paulo de Literatura de 2010. Em 2013, lançou o livro Labirinto da Palavra, com ensaios-crônicas sobre literatura e criação literária, que recebeu o Prêmio de Literatura de Brasília em 2014 e foi semifinalista do Prêmio Portugal Telecom em 2014. Como roteirista, trabalhou na TV Globo, Conspirações Filmes, entre outras produtoras. Tem textos traduzidos para o alemão, inglês e espanhol. Ministra cursos de roteiro e criação literária no Rio de Janeiro. Lançou recentemente o romance O Corpo Interminável, que evoca memórias de mulheres guerrilheiras na ditadura civil-militar brasileira.
Beatriz Brandão é feminista, socióloga e jornalista. Doutora em Ciências Sociais pela PUC-RIO e pós-doutoranda em Sociologia pela USP. É especialista em políticas públicas, estudos diplomáticos e atua como pesquisadora do IPEA. Pesquisa temas transversais ao conflito e à arte na interface com drogas, refúgio e gênero.
Ana Paula Lopes é atriz, diretora, artista plástica. Mestre em Artes Cênicas (UNIRIO). Especialização em arte e filosofia (PUC) e Preparação Corporal (Angel Vianna). Professora do CEFET Maracanã. Trabalha com questões de opressão como a violência contra a mulher e o suicídio na adolescência.
Carmen Soto é uma aluna porto-riquenha que se forma no Mestrado em Relações Internacionais e se concentra em Mídia e Cultura. Formou-se em Psicologia com especialização em Relações Internacionais pela Universidade de Porto Rico, Mayagüez Campus. Seus projetos atuais se concentram na imigração, direitos das mulheres, saúde pública e pesquisa. Seu objetivo é fazer estudos jurídicos em Direito Internacional e continuar seu trabalho, especialmente em áreas como imigração e questões femininas. Embora continue com seu caminho de ativismo; especialmente na produção de campanhas de mídia para criar conscientização sobre questões de justiça social.