Lisa Ginzburg: “a língua é uma obsessão para mim”
Em ‘Uma pluma escondida’ neta de Natalia Ginzburg explora desejo feminino e relações familiares
O título enigmático do romance de Lisa Ginzburg revela um tema conhecido daqueles que chegam a sua escrita em busca de continuidade em relação à literatura de sua avó, Natalia Ginzburg. Uma das escritoras mais celebradas do século XX, Natalia construiu a sua obra sobre os temas da memória e das relações familiares. Décadas depois, sua neta, Lisa, propõe uma investigação similar no romance Uma pluma escondida, lançamento que ela promove em sua vinda à Festa Literária Internacional de Paraty deste ano.
“As relações humanas devem ser redescobertas e reinventadas todos os dias. Devemos sempre nos lembrar de que toda espécie de encontro com o próximo é uma ação humana e, sendo assim, implica necessariamente mal ou bem, verdade ou mentira, caridade ou pecado”, escreve Natalia Ginzburg em “As relações humanas”, ensaio de 1953 publicado no memorável livro As pequenas virtudes. O novo romance de Lisa conta a história de Rosa e Tan para chegar a conclusão similar: o encontro violento da filha dos caseiros e do garoto rebelde adotado pelos patrões, na infância, e o reencontro amoroso, na vida adulta, busca refletir sobre a natureza daquela relação, permeada por questões de classe e de gênero.

“Eu queria contar uma situação dividida em dois ambientes: um primeiro mais humilde, onde as relações não são muito carinhosas, mas pelo menos são verdadeiras. E um outro ambiente mais rico, privilegiado, onde tudo está um pouco congelado,” conta a escritora, que fala um português perfeito em entrevista ao Le Monde Diplomatique Brasil.
Essas relações são reveladas por Lisa sem que se apresentem grandes tensões ou reflexões sobre sua natureza – o que, não há como deixar de comparar, a distancia da grandeza de sua avó. Mas o tom é justificado, afinal, é a visão da garota Rosa que, com onze anos, guia a narrativa: “a idade dos garotos, que vivem o final da infância, o começo da adolescência, é o momento em que você começa a conhecer a diferença social, no qual você sabe o que é ser mais pobre ou mais rico”, algo que a autora revela através das relações entre aquelas duas famílias, que, tão próximas, vivem seus afetos de formas absolutamente distintas.

“É nessa idade também que começamos a explorar as pequenas amizades românticas, quando a garota começa a se entender mulher, é um momento importante na construção da pessoa.” É nessa descoberta do desejo feminino que o livro de Lisa ganha força narrativa: a vida adulta da protagonista se revela em trechos de carga erótica, que se alternam com passagens que, por mais deslocadas que pareçam na leitura, enfatizam que o desejo feminino também diz respeito a poder determinar sua trajetória profissional sem se prender a memórias de afetos incompletos.
Quando a lembrança de uma paixão infantil retorna a sua vida no formato de uma pulsão enfim realizável, Rosa escolhe priorizar sua carreira enquanto oftalmologista de sucesso em detrimento de um relacionamento – mais sexual que afetivo – com Tan. “Às vezes são nossas escolhas, mesmo que estranhas, que ajudam a fazer o que nós desejamos de verdade. O desejo sempre é uma questão de entender o quanto estamos desejando algo verdadeiramente e o quanto é fruto de uma expectativa social”, define Lisa.
Se ao tratar da família Lisa se espelha em sua avó – a quem deve não apenas a insistência na escrita mas também seu olhar apaixonado pelas qualidades humanas – é de outra grande autora do século XX que se aproxima ao falar do desejo: Clarice Lispector. A escritora teve seu primeiro contato com o Brasil ao ler, aos 15 anos, Dona Flor e seus dois maridos, de Jorge Amado. Anos depois, casou-se com um brasileiro, teve uma filha por aqui e chegou a viver entre Salvador e Rio de Janeiro. O fruto de sua paixão brasileira foi a escrita de Cercavo un’immensità. Vita di Clarice Lispector (Em busca da imensidão: Vida de Clarice Lispector), um livro infantil sobre a vida de Clarice.
Lisa também conta que traduziu, com muita dificuldade, cartas da escritora brasileira. À tradução, inclusive, ela credita sua obsessão pela língua: “ao escrever, eu sempre observo se estou gostando da música da palavra. Eu acredito muito na construção da frase, trabalho muito nisso. O trabalho de tradutora me ajudou a dar sentido, peso e tonalidade à palavra.”
Carolina Azevedo é parte da equipe do Le Monde Diplomatique Brasil.