“Little Seul” e “Nova Luz”: cidades mundiais e a globalização de políticas urbanas municipais
A cidade global promovida por propostas como a de vincular o título de “Little Seul” ao bairro do Bom Retiro não só transforma um conceito reflexivo em marca publicitária, como também abre a gestão urbana para capitais financeiros internacionais
Crédito: Eli Kazuyuki Hayasaka
No dia 12 de abril de 2017, o prefeito João Dória, em visita à cidade de Seul, anunciou que o bairro do Bom Retiro, localizado na área central da cidade de São Paulo, irá passar por intervenções urbanísticas a partir de junho de 2017. Tais ações, a serem realizadas por meio de parceria com empresas sul-coreanas sediadas em São Paulo, foram mencionadas como sendo de: 1) “recuperação de áreas verdes, praças, calçadas, sinalização, manutenção e limpeza”;1 2)“recuperação de praças, bancos e a implantação de uma creche”;2 e 3) “iluminação e instalação de câmeras de segurança no bairro”.3 Neste processo, a menção “Little Seul” seria vinculada ao nome do bairro.
Gestão midiática
Desde que a administração de João Dória assumiu a Prefeitura de São Paulo, seus planos de gestão têm sido apresentados por meio de eventos de efeito, difundidos rapidamente pela mídia em geral. No caso do Bom Retiro, isso se reflete num tipo de comunicação abrupta e na multiplicidade de matérias sobre o anúncio da proposta, que quando verificadas em seu conjunto, não permitem identificar com clareza qual é de fato o projeto de transformação para o bairro. Sem utilizar os canais habituais de discussão de planos de ação para a cidade, a população acaba tendo o sentimento de ser “pêga de surpresa”, criando-se então uma percepção generalizada de instabilidade e incerteza.4
Desde o estabelecimento dos planos diretores como marcos de referência para a gestão urbana da cidade, instâncias e instrumentos de participação social como os conselhos municipais ou audiências públicas sempre foram os canais privilegiados de diálogo entre a sociedade e o poder público municipal em se tratando da discussão de intervenções urbanas em São Paulo.
Na estratégia de privilegiar a apresentação de propostas de gestão pela via midiática, os processos de promoção e publicidade adquirem cada vez mais vulto na definição da política urbana da cidade. A declaração de que o bairro do Bom Retiro passará a ser designado também como “Little Seul” faz parte dessa dinâmica na qual o diálogo entre o poder público municipal e a população é substituído por ações declatórias de merchandising que visam promover São Paulo como “cidade global”.
O termo “cidade global” foi inicialmente criado pela socióloga Saskia Sassen para discutir as novas condições de circulação de bens, capitais financeiros e pessoas. Dentro desse novo cenário, certas cidades no mundo, como Nova York, Londres ou Tóquio, acabariam dominando o circuito, criando um tipo de globalização seletiva e desigual. Tal desigualdade, que não se daria no âmbito das nações, mas no das cidades, também envolveria a ampliação do desenvolvimento de relações assimétricas de trabalho, que, não baseadas mais no modelo fordista, veria, de um lado, o surgimento de diminutas castas de altos executivos e especialistas em certos setores produtivos e, de outro, de uma vasta massa de pessoas “desqualificadas”. A crítica a esse processo deveria então trazer propostas alternativas para minimizar tais efeitos.
A cidade global como marca
A cidade global promovida por propostas como a de vincular o título de “Little Seul” ao bairro do Bom Retiro não só transforma um conceito reflexivo em marca publicitária, como também abre a gestão urbana para capitais financeiros internacionais. Organizações privadas internacionais passam desse modo a participar da gestão da cidade de modo bastante direto. No caso do Bom Retiro, companhias multinacionais de origem sul-coreana, ao fornecerem os recursos financeiros para realizar as intervenções urbanísticas no distrito – que ainda não se sabe exatamente quais são – ganharam a prerrogativa de alterar simbolicamente a denominação do bairro em “Little Seul”. Certamente tais empresas não escolheram o Bom Retiro aleatoriamente, porém, autorizar tal mudança sem consultar quem vive, estuda ou trabalha na região revela também um desconhecimento sobre a história de formação da cidade e da realidade que atualmente sustenta o local.
O Bom Retiro é múltiplo
É notório que o distrito do Bom Retiro é um dos bairros de São Paulo em que se percebe a concentração de pessoas de origem ou descendência sul-coreana. Entretanto, é também público que no Bom Retiro outros grupos de nacionalidade e cultura também estão presentes e têm o bairro como referência. Desde muito tempo, a história local esteve relacionada à presença de migrantes internacionais e nacionais e seus descendentes. A instalação da Estação da Luz num primeiro momento trouxe pessoas de todos os cantos do país e do mundo: italianos, espanhóis, portugueses, russos, gregos, pessoas provindas do leste europeu e de países árabes, mineiros, baianos e gente do interior do estado de São Paulo. Depois, as redes de relações pessoais criaram novas formas de confluências que trouxeram sul-coreanos, bolivianos, peruanos, paraguaios e africanos à cidade. O Bom Retiro foi e continua sendo o espaço singular de São Paulo que recebeu e recebe todos esses grupos de pessoas.
Historicamente, as políticas de Estado visando o emprego de mão-de-obra imigrante nas lavouras de café e os conflitos presentes na Europa trouxeram em massa italianos, espanhóis, portugueses, russos, búlgaros, lituanos e pessoas de outras nacionalidades do Leste Europeu- estes últimos em sua maioria reunidos sob o judaísmo – que acabaram se instalando no Bom Retiro por volta do final do século XIX e começo do XX. Da segunda metade do século XX em diante as atividades de confeção de roupas – as quais muitos atribuem sua criação aos judeus – e o comércio popular foram tomando proporção na região e com o passar do tempo envolveram outros grupos, como os sul-coreanos, os migrantes nacionais e os hispanoamericanos.
Hoje quem anda pelas ruas do Bom Retiro pode experimentar essa multiplicidade ao encontrar as pessoas que habitam ou trabalham no bairro, ao ver vendedores ambulantes de origem nordestina e africana próximos à Estação da Luz e nos arredores da Rua José Paulino, os muitos restaurantes de cozinhas coreana, judaica e árabe, os mercadinhos especializados em comida coreana ou kosher, os prédios de organizações de origem italiana, judaica ou coreana, os anúncios e letreiros em coreano, íidiche ou espanhol, e até mesmo ver alguma roda de samba no bairro.
Se a denominação de “Little Seul”5 ao Bom Retiro pode ser relevante, é necessário também juntar as designações de “Bó Ritiro”6 dos italianos, “shetl”7 dos judeus, ponto de encontro de sambistas e chorões8 e assim por diante para fazer justiça à história e realidade desse bairro. Mas é preciso então entender o que significa um processo de “etnização” de espaços urbanos na cidade de São Paulo.
No caso do interesse em se transformar um território da cidade em “Little Seul”, é significativo notar que se o critério é de fato a presença de cidadãos sul-coreanos no município, então, bairros como Aclimação e Morumbi também deveriam ser considerados como territórios a compor tal referência.
Juntando alguns pontos
O Bom Retiro parece ganhar atenção como área a receber intervenções urbanísticas quando comparadas a outras porque faz parte de uma região há muito considerada como um “problema urbano”. Tal região é a área da Luz. Há algumas décadas, esta zona tem recebido intenso investimento por parte dos poderes públicos, com o intuito de “revitalizar”/”renovar” as áreas centrais. As áreas centrais acabaram sendo abandonadas dentro das dinâmicas socioeconômicascontemporâneas, porque tais dinâmicas encontraram outros “centros”de ocupação na cidade, como as regiões da Avenida Paulista e da Avenida Engenheiro Luís Carlos Berrini.
A região da Luz, composta de partes dos distritos do Bom Retiro, Brás, República, Santa Cecília e Sé, tem sido alvo de projetos urbanísticos de grande dimensão desde pelo menos a década de 1970. O último deles foi o controverso projeto de concessão “Nova Luz”, que consistia na realização de intervenções urbanísticas na área designada como cracolândia para lidar com a presença de usuários de substâncias psicoativas, mas que também acabava por incentivar certos movimentos especulativos imobiliários. Esse projeto acabou não sendocolocado em prática por completo, mas seu espírito está sendo ressuscitado por algumas esferas do poder público. Novamente, a vinculação entre projetos urbanísticos e a questão social e de saúde relacionada ao crack está sendo restabelecida pela nova administração municipal,9 em convergência com projetos do governo estadual.10
As operações maciças de expulsão, prisão e tentativa de internação compulsória de usuários de crack realizadas nos dias 21 e 22 de maio deste ano por agentes das polícias Civil e Militar do estado de São Paulo e da Guarda Civil Metropolitanana na área denominada cracolândia, junto com a demolição apressada de imóveis na região, ilustram enfaticamente a reedição da ideia de que planos urbanístico podem “resolver” problemas de ordem social e de saúde pública.
É nesse contexto que a proposta de ação no Bom Retiro se insere. Porém, a novidade é que atores internacionais agora têm a possibilidade de definir a efetivação de projetos de intervenção urbanística em São Paulo. No caso da proposta de “Little Seul”, a internacionalização da política de gestão urbana se concretiza pela “etnização” simbólica de um espaço da cidade em nome de apenas um grupo de nacionalidade.
Concomitantemente a tudo isso, preocupa o fato de que neste momento as maiores multinacionais coreanas – muitas delas com sede em São Paulo – estejam sendo investigadas na Coreia do Sul por operações ilícitas que resultaram no impeachment da presidente do país.11 De modo similar ao Brasil, práticas como tráfico de influência e organização de propinas entre executivos de grandes conglomerados empresariais da Coreia do Sul e o governo executivo sul-coreano foram denunciadas.
Tendo em vista a proposta de intervenção no Bom Retiro pela atual gestão da Prefeitura de São Paulo, caberia investigar a natureza ética de um financiamento realizado por tais empresas. Ações provindas de uma política pública no Brasil não deveriam ser sustentadas por práticas ilegítimas realizadas em outro país.
A cidade de São Paulo deve ser pensada em diálogo com o cenário mundial, porém é preciso refletir com cautela e de modo democrático que cidade e que tipo de globalização queremos.
*Simone Toji é doutora em Antropologia Social pela Universidade de St Andrews.