Livro de goiano premiado aborda dilemas internos de um protagonista negro em meio a Brasil politicamente dividido
“A União das Coreias”, de Luiz Gustavo Medeiros, escancara as complexidades da identidade individual em um país marcado por tensões
Quantos fragmentos compõem um ser humano? E se retirarmos um deles, continuaremos a ser quem somos? Em que ponto deixamos de ser a mesma pessoa e nos tornamos algo novo? Essas são algumas das questões que emergem ao ler A União das Coreias (Editora Reformatório, 152 pág.), de Luiz Gustavo Medeiros, autor nascido no Rio de Janeiro e radicado em Goiânia há mais de 20 anos, cidade onde se desenrola a narrativa ficcional. Publicada pela Editora Reformatório (SP), a obra oferece ao longo de 152 páginas uma análise intensa e fragmentada da mente de Paulo Henrique, um homem negro de trinta e poucos anos, em um texto que se passa ao longo de um único dia.
A trama acontece em meio à monotonia de um emprego burocrático, ao qual Paulo dedica grande parte de seu tempo, imerso em reflexões que vão desde o amor e a infidelidade até as complexas relações de poder que permeiam a sociedade brasileira. Sua vida é marcada por uma constante sensação de desconexão, como se partes de sua identidade estivessem sempre em conflito, nunca totalmente integradas.
A negritude também é um elemento importante da narrativa. Através de memórias e experiências, o protagonista reflete sobre o impacto do racismo em sua vida. Paulo revisita episódios dolorosos do passado, que o moldaram e o levaram a questionar constantemente seu lugar em uma sociedade que frequentemente o marginaliza.
No entanto, o romance não se limita a ser uma história sobre identidade racial. A União das Coreias explora as contradições e ambiguidades da vida moderna em um contexto mais amplo. As relações amorosas de Paulo, marcadas pela ligação com duas mulheres diferentes, refletem também as lutas internas. A divisão entre suas duas vocações, que representam caminhos de vida opostos, espelha as escolhas difíceis que ele precisa fazer em um mundo onde as respostas raramente são simples.
Como prêmio, o leitor disposto irá encontrar um autor que evita banalizações em sua narrativa, preferindo abraçar as complexidades da experiência humana. Em vez de respostas, Medeiros sugere que a fragmentação é a própria essência da vida, e que talvez a busca por uma identidade coesa seja um dilema sem solução.
Brasil de 2018
As tensões políticas do Brasil em 2018, particularmente durante o período eleitoral, desempenham um papel crucial em A União das Coreias.
O protagonista vê-se ainda mais dividido à medida que o país ao seu redor se fragmenta entre ideologias e, como muitos brasileiros, sente-se preso entre forças opostas, incapaz de encontrar um terreno comum em meio ao caos político e social.
Goiânia, metrópole onde a história se passa, é utilizada por Medeiros como um microcosmo das disputas ideológicas que atravessam o país, um lugar onde o conservadorismo e a busca por mudança batalham diariamente pelo controle da narrativa.
Como consequência, conforme nos adentramos no livro, percebemos que não é apenas Paulo que está dividido, mas também a cidade, o país, assim como as Coreias. A divisão se torna uma metáfora poderosa, em que corpos refletem as fissuras profundas na sociedade.
Carlos Nogueira é escritor, autor dos livros de poemas “Amar sem Advérbios” (Tripous) e de crônicas “Deslocamentos” (Penalux). Formado em Comunicação Social, ele também é pós-graduado em Literatura Afro-brasileira e Indígena.