‘Loucura, linguagem, literatura’, Foucault e a experiência-limite
Volume esclarece como Foucault interpretava e praticava o estruturalismo
Para nossa sorte, em alguns casos, o interesse público sobrepuja a vontade do particular. Mesmo com expressa manifestação testamentária censurando a publicação póstuma de seus textos, em 2012, a obra de Michel Foucault foi catalogada como “tesouro nacional” pelo governo francês, e o conjunto de seu espólio intelectual, que inclui, além de obras praticamente prontas para publicação, cadernos com rascunhos, fichamentos e anotações preparatórias, foi arquivado e disponibilizado para consulta no Departamento de Manuscritos da Biblioteca Nacional da França (BnF). Esses inéditos são, desde então, uma importante fonte para pesquisadores e interessados em sua obra, e edições que contemplam parte do acervo Fonds Michel Foucault passaram a ser frequentes no mercado editorial francês. A coletânea Loucura, linguagem, literatura, ora disponibilizada ao público brasileiro pela Ubu Editora, com tradução bem vertida ao português por Nélio Schneider, é parte desse fenômeno.

Entre os 37 mil documentos arquivados, os organizadores Judith Revel, Daniele Lorenzini e Henri-Paul Fruchaud (sobrinho de Foucault) selecionaram 13 textos para o volume. A edição brasileira preservou integralmente o conteúdo da original francesa, com a introdução de Revel e a marginália dos manuscritos. É na introdução que descobrimos que os textos foram organizados a partir de dois objetos caros ao filósofo, a loucura e a literatura, cobrindo principalmente o período da segunda metade da década de 1960. Duas conferências proferidas por Foucault na Tunísia em 1967 (“Loucura e Civilização” e “Estruturalismo e análise literária”) determinaram a escolha do restante dos textos, que, por sua vez, esclarecem, com profundidade, as razões metodológicas que justificam o estatuto privilegiado recebido pela loucura e literatura: como “experiências-limite”, elas integram de modo singular a lógica que governa as representações e instituições humanas, localizando-se em um ponto em que se deixam alternar, e mesmo absorver, pela ordem social, que necessita daquilo que está fora dela para se arranjar como tal.

Esse tema transversal aos textos do livro exprime a compreensão peculiar que Foucault apresentava desse conjunto de ideias díspares sob as quais se convencionou denominar “estruturalismo”: “o conjunto das tentativas pelas quais se tenta analisar o que se poderia chamar de massa documental, isto é, o conjunto dos signos, traços ou marcas que a humanidade deixou em sua passagem”. Assim, o leitor poderá acompanhar ao longo da obra exemplos curiosos, como, por exemplo, comentários sobre autores como Balzac e Flaubert, que são analisados como “massa documental” ao serem transmutados em objetos demarcados por estruturas criadas entre elementos analisáveis, que refletem as leis que ordenam esses “documentos” humanos. As “experiências-limite” da loucura e da literatura são, então, exemplos de linguagens marginais-ordenadoras, que reforçam as leis de permissão e interdição em certa cultura. Por tal motivo, Foucault conclui que o estruturalismo ultrapassa a ideia de que seja somente um método de análise rigorosa de objetos para se constituir como um objeto em si, uma vez que a estrutura dos documentos vem a ser, no limite, a expressão de um sistema que é a exposição organizada de qualquer produção humana: “assumidamente tautológico, o estruturalismo busca “encontrar o sistema de determinação do documento como documento”.
O livro também nos dá indícios dos motivos que levam à prolífica publicação dos inéditos de Foucault. Ele nos revela que sua obra é o resultado de trabalho extenuante, efeito dos labirintos percorridos pela experimentação do pensamento que ocorre essencialmente no exercício da escrita. O acesso a esse laboratório do filósofo é capaz de esclarecer escolhas metodológicas que muitas vezes são incompreendidas por parte dos intérpretes. É o que assume um leitor qualificado como o filósofo Gérard Lebrun, em coletânea também recém-lançada (A vingança do bom selvagem, Ed. Unesp, 2024). Em obituário dedicado ao autor que foi seu mestre e amigo, Lebrun recorda que perseguiu os propósitos de Foucault por toda vida, pois seus projetos pouco convencionais para os padrões da pesquisa em Filosofia despertavam sua curiosidade e eram revelados apenas por “enigmas”, já que Foucault rejeitava, como que por instinto, “ao mesmo tempo as clivagens tradicionais e a facilidade de um fio diretor”. Sem dúvida, o livro Loucura, literatura, linguagem não resolve o enigma Foucault em definitivo, tarefa impossível, mas nos dá um rico material para o trabalho infinito de elucidação de textos que um grande filósofo sempre nos impõe.
Lara Pimentel Anastacio é doutora em Filosofia (USP) e atualmente é professora substituta no Departamento de Filosofia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).