Lula à luz do “Príncipe” de Maquiavel
A autonomia das ações dos ministros não está divorciada da centralização das ações do governante, sobretudo quando este está em constante ataque ideológico e institucional. Para firmar um bom governo, desse modo, é necessário que todos estejam em total consonâncias nas ações, nas estratégias e na forma de pensar
No primeiro mês de governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em seu terceiro mandato, vários acontecimentos marcaram e escancararam situações novas, bem diferentes das nuances do período 2003—2010: a polarização política em níveis astronômicos; uma oposição constituída organicamente e violenta; novos desafios sociais e políticos; isso sem contar os novos instrumentos de difusão das informações, muitas vezes sem filtros. Dessa maneira acredito que seja necessária uma leitura de determinadas ações suas, nos últimos dias, diante desses fatos e circunstâncias.
Para ilustrar e acompanhar algumas ações vislumbro um acontecimento – imaginário, eu sei – que certamente seria histórico do ponto de vista da ciência política: um encontro entre Lula e um conselheiro muito famoso: Nicolau Maquiavel. Nicolau trabalhou por 16 anos na Segunda Chancelaria em Florença, sob o governo republicano de Piero Soderini, acompanhando diversos fatos políticos – inclusive o retorno da dinastia Medici ao poder e o fim da república florentina. Em primeiro lugar, descarto qualquer preconceito que envolva seu nome, culpa exclusiva de autores e escritores que erradamente fizeram de sua opera magna, “O Príncipe”, um manual de imoralidades destinado aos líderes. Seguindo o que Jean-Jacques Rousseau pensava sobre o autor, destacamos que por seus escritos permitiu-se que a sociedade identificasse as estratégias utilizadas pela burguesia para se defender, ou seja, abriu os olhos da plebe ao descrever os nobres. Antes de ser um grande republicano, Maquiavel foi também um defensor das liberdades civis e políticas, reforçado por um grande pensador das esquerdas do último século: seu compatriota Antonio Gramsci. Reafirmo que seria um belo encontro entre o secretário florentino e o presidente Lula.
O primeiro fato que seria analisado sob o ponto de vista pragmático seria a escolha dos ministros. Maquiavel em seu capítulo XXII do Príncipe afirma que “não é de pouca importância a escolha dos ministros”, sendo pela escolha que “temos a primeira impressão sobre a inteligência do governante”. De antemão Lula seria interpelado constantemente por suas escolhas políticas, ou por suas escolhas técnicas, visto que cada representante seja antes de tudo seus “olhos e braços” em cada ministério. A autonomia das ações dos ministros não está divorciada da centralização das ações do governante, sobretudo quando este está em constante ataque ideológico e institucional. Para firmar um bom governo, desse modo, é necessário que todos estejam em total consonâncias nas ações, nas estratégias e na forma de pensar. Além disso, algo novo deveria ser levado em conta (e foi levado, a meu ver) que antigamente não era tido com importância: a representatividade dos ministros e sua identificação com a função escolhida. Isso é nítido ao debulhar nomes como Sonia Guajajara, Anielle Franco, Silvio Almeida etc, que trazem consigo a imagem de representatividade à pasta e fácil trânsito com a mídia e os movimentos populares, sendo um grande adendo do estadista brasileiro. Esse é o primeiro ponto.
Em segundo momento, após um pequeno copo de conhaque, uma recomendação que certamente o líder em dois mandatos – agora no terceiro – não esqueceu. Para Maquiavel um líder nunca deve ser inteiramente bom ou inteiramente mau, sendo essa ambivalência manipulável de acordo com o momento e as circunstâncias do jogo político. Necessariamente o líder deve ter um olhar clínico todo momento, estimando resultados e possibilidades, para que não seja surpreendido nalguma coisa, pois “um príncipe sábio deve prever os males antecipadamente”, como está no Capitulo III do “Príncipe”. Maquiavel, inclusive, recomendaria ao presidente uma postura com base no Capítulo XVIII: “não se desviar do bem, mas saber usar o mal se necessitar”. Palavras duras essas, mas que na prática fortalecem as estruturas do poder e cercam os adversários nas primeiras tentativas de golpe. Quem sabe esse conselho não foi usado logo após o dia 08 de janeiro, quando formos surpreendidos por uma invasão em Brasília? O sentido da palavra “mal” nesse caso está relacionado ao agir pragmático e duro, sem receios em agir com firmeza para que a finalidade seja alcançada, que nesse caso é o fortalecimento da ordem e das instituições democráticas. Para que se alcance essa ordem e esse fortalecimento tão almejados o presidente não deve ter receio em ser temido pelos seus adversários. Pelo contrário. Não há mal nisso…
Falando em amor e temor, algo muito interessante e único no governante acontece e que Maquiavel aprovaria seguramente. O amor para Maquiavel é construído sob o vínculo da obrigação, sendo constantemente suscetível às mudanças de humor e inconstâncias políticas, como vemos no mesmo Capítulo XVIII da sua obra. Ela deve ser construída de modo a não se transformar no ódio, que para Maquiavel é uma força que nenhuma fortaleza será capaz de defender. Dessa forma as ações de Lula para seus novos e antigos apoiadores são formalmente louváveis, mantendo sob o vínculo de identificação e esperança que fortalece seu eleitorado e atrai possíveis adeptos, sem cair num discurso demagógico ou apenas sentimentalista. Um Lula pragmático e articulador seria suscitado por Maquiavel, para que quando surgissem imprevistos fosse necessário agir para que se construa também o temor. O temor é alicerçado, segundo o autor florentino, sob o medo da punição e da retaliação. Necessariamente Lula deve ter em mãos o apoio dos poderes para que “fiat voluntas tua”, seja feito aquilo que é necessário para se fortalecer enquanto líder punindo quem não está de acordo com o regime democrático. Dessa forma não só um encontro ou um pequeno café, mas uma boa janta com todos os envolvidos com o autor florentino seria bastante interessante
Quem acredita na política como algo pacífico ou projeta numa personalidade virtudes ou atitudes apenas caritativas não está próximo da visão real da política, mas de uma idealização metafísica mais próxima aos clássicos gregos, como Platão e Aristóteles, e autores medievais, como Tomás de Aquino. Isso é um fato. Podemos pensar valores, desenvolver ideais tendo por base diversos autores, mas na disputa pela hegemonia política nem sempre vale o que foi desenvolvido por vias metafísicas, e por isso creio que seja mais eficiente um encontro imaginário entre Lula e Maquiavel do que com Aristóteles – para terror e escândalo de alguns poucos.
Duas coisas seriam acrescentadas por Maquiavel direcionadas ao presidente. A primeira imagino sendo dita dessa forma: “Meu nobre, que tu sejas amado pelos companheiros e temido pelos rivais”; a segunda seria uma pergunta: “para manter a ordem democrática, os fins justificariam os meios?”
Seria um encontro interessante…
Railson da Silva Barboza é bacharel em Filosofia (PUC-Rio), doutorando e mestre em Política Social (UFF).