Luta de classes na França
O chefe de Estado francês respondeu ao movimento dos “coletes amarelos” propondo um “grande debate nacional”. Esse tipo de exercício sugere que os conflitos sociais se explicam por problemas de comunicação entre o poder e seus opositores, não por antagonismos fundamentais. Uma hipótese perigosa…
O medo. Não o de perder uma eleição, fracassar em “reformar” ou ver derreter seus ativos no mercado de ações, mas sim da insurreição, da revolta, da destituição. Há meio século, as elites francesas não tinham mais experimentado um sentimento como esse. No sábado, 1º de dezembro de 2018, ele de repente congelou algumas consciências. “O mais urgente é que as pessoas voltem para casa”, disse aflita Ruth Elkrief, repórter pop star da BFM TV. Nas telas de sua rede de TV desfilavam imagens de “coletes amarelos” determinados a arrancar uma vida melhor.
Alguns dias depois, uma jornalista do jornal L’Opinion, ligado ao patronato, revelou em uma bancada de TV o quanto a borrasca soprara forte: “Todos os grandes grupos vão distribuir bônus, porque eles realmente ficaram com medo em um momento de ter a cabeça sob espadas. Ah, sim, as grandes empresas, quando houve o terrível sábado, lá, com todos os estragos, tinham chamado o chefe do Medef, Geoffroy Roux de Bézieux, dizendo a ele: ‘Libere tudo! Libere tudo, porque senão…’. Eles se sentiam ameaçados fisicamente”.
Sentado ao lado da jornalista, o diretor de um instituto de pesquisas evocou, por sua vez, “grandes empresários realmente muito preocupados”, uma atmosfera “que parece com o que li sobre 1936 ou 1968. Há um momento em que dizemos a nós mesmos: ‘Você tem de saber liberar grandes somas, em vez de perder o essencial’”.1 O secretário-geral da Confederação Geral do Trabalho (CGT), Benoît Frachon, lembrou que, de fato, quando da Frente Popular (1936-1938), durante as negociações de Matignon, que se seguiram a uma onda de greves inesperadas com ocupações de fábricas, os patrões tinham “cedido em todos os pontos”.
Esse tipo de decomposição da classe possuidora é raro, mas tem por corolário uma lição que atravessou a história: aqueles que tiveram medo não perdoam nem os que os amedrontaram nem os que foram testemunhas de seu medo.2 O movimento dos “coletes amarelos” – duradouro, incontrolável, sem liderança, falando uma linguagem desconhecida das instituições, tenaz apesar da repressão, popular apesar da divulgação maldosa pela mídia sobre as depredações – provocou, portanto, uma reação rica de precedentes. Nos momentos de cristalização social, de luta de classes sem disfarces, cada um deve escolher seu lado. O centro desaparece, o pântano seca. E então, mesmo os mais liberais, os mais cultos, os mais distintos esquecem os maneirismos afetados do “viver junto”.
Tomados de pavor, perdem o sangue frio, como Alexis de Tocqueville quando evoca em suas Lembranças as jornadas de junho de 1848 – os trabalhadores parisienses reduzidos à miséria foram massacrados por uma tropa que a burguesia no poder, persuadida de que “só o canhão pode resolver as questões de nosso século”,3 tinha mobilizado contra eles. Descrevendo o líder socialista Auguste Blanqui, Tocqueville esquece as boas maneiras: “O ar doente, malvado, imundo, uma palidez suja, a aparência de um corpo mofado […]. Ele parecia ter vivido em um esgoto e saído dele. Ele me dava a impressão de uma cobra da qual se prende a cauda”.
Uma metamorfose similar de civilidade em fúria ocorreu na época da Comuna de Paris. E daquela vez ela atingiu muitos intelectuais e artistas, às vezes progressistas – mas de preferência em clima calmo. O poeta Leconte de Lisle se lançou contra “essa liga de todos os desclassificados, de todos os incapazes, de todos os invejosos, de todos os assassinos, de todos os ladrões”. Para Gustave Flaubert, “o primeiro remédio seria acabar com o sufrágio universal, a vergonha do espírito humano”. Tranquilizado pela punição (20 mil mortes e quase 40 mil prisões), Émile Zola tiraria daquilo as lições para o povo de Paris: “O banho de sangue que ele acabou de tomar foi talvez de uma horrível necessidade para acalmar algumas de suas febres”.4
Da mesma forma, em 7 de janeiro, Luc Ferry, formado em Filosofia e Ciência Política, mas também ex-ministro da Educação, poderia ter em mente os excessos de personagens pelo menos tão distintos quanto ele quando a repressão dos “coletes amarelos” (ler a página 4), muito indolente a seu ver, arrancou dele – na Radio Classique… – esta injunção aos guardiões da paz: “Que eles possam usar suas armas de uma vez por todas” contra “essa espécie de bandidos, essa espécie de bastardos de extrema direita ou de extrema esquerda ou dos bairros que vêm agredir o policial”. Então Ferry foi almoçar.
Normalmente, o campo do poder se desdobra em componentes distintos e às vezes concorrentes: altos funcionários franceses ou europeus, intelectuais, patrões, jornalistas, direita conservadora, esquerda moderada. É nesse ambiente agradável que ocorre uma alternância calibrada, com seus rituais democráticos (eleições, depois hibernação). Em 26 de novembro de 1900, em Lille, o líder socialista Jules Guesde já dissecava esse pequeno jogo político ao qual a “classe capitalista” devia sua longevidade no poder: “Nós nos dividimos em burguesia progressista e burguesia republicana, burguesia clerical e burguesia livre-pensadora, de modo que uma facção vencida sempre poderia ser substituída no poder por outra facção da mesma classe igualmente inimiga. É o navio com anteparos estanques que pode fazer água de um lado e que nem por isso se torna passível de afundar”. Acontece, no entanto, de o mar se agitar e de a estabilidade do navio ser ameaçada. Nesse caso, as brigas devem desaparecer diante da necessidade de uma frente comum.
Em relação aos “coletes amarelos”, a burguesia fez um movimento desse tipo. Seus porta-vozes costumeiros, que, em tempos tranquilos, buscam manter a aparência de um pluralismo de opiniões, associaram com uma mesma voz os manifestantes a um bando de racistas, antissemitas, homofóbicos, facciosos, conspiradores. Mas, principalmente, ignorantes. “‘Coletes amarelos’: a estupidez vai vencer?”, perguntou Sébastien Le Foll na Le Point (10 jan. 2019). “Os verdadeiros ‘coletes amarelos’”, confirmou o editorialista Bruno Jeudy, “lutam sem refletir, sem pensar” (BFM TV, 8 dez.). “Os baixos instintos se impõem ao desprezo da civilidade mais elementar”, alarmou-se por sua vez o plebeu Vincent Trémolet de Villers (Le Figaro, 4 dez.).
Porque esse “movimento de reacionários corporativistas e facciosos” (Jean Quatremer), liderado por uma “minoria odiosa” (Denis Olivennes), é facilmente assimilado a um “aumento repentino de raiva e de ódio” (editorial do Le Monde), em que as “hordas de gente baixa, de saqueadores”, “corroídos por seus ressentimentos como por pulgas”, (Franz-Olivier Giesbert) dão livre curso às suas “pulsões malsãs” (Hervé Gattegno). “Quantas mortes esses novos reacionários terão em sua consciência?”, alarmou-se Jacques Julliard.
Preocupado ele também com “as execrações nuas e cegas à sua própria vontade”, Bernard-Henri Levy, no entanto, aceitou assinar no… Le Parisien uma petição, adornada com os nomes de Cyril Hanouna, Jérôme Clément e Thierry Lhermitte, para convidar os “coletes amarelos” a “transformar a raiva em debate”. Em vão… Mas, graças a Deus, suspira Pascal Bruckner, “a polícia, com sangue frio, salvou a República” contra “os bárbaros” e a “escória encapuzada”.5
Do Europe Écologie – Les Verts (EELV) aos escombros do Partido Socialista, da Confederação Francesa Democrática do Trabalho (CFDT) aos dois apresentadores do programa matinal da França Inter (uma “parceria de inteligência”, de acordo com a diretoria da emissora), todo um universo social uniu forças para atingir as personalidades políticas solidárias ao movimento. Seu erro? Atacar a democracia sem compartilhar seu medo. Como combater esses estorvos? Usando um velho artifício: procurar tudo que poderia associar um porta–voz dos “coletes amarelos” a um ponto de vista que a extrema direita teria um dia defendido ou retomado. Mas, sendo assim, deveríamos também encorajar a violência contra os jornalistas, alegando que Marine Le Pen, em seus votos à imprensa, viu nisso “a própria negação da democracia e do respeito pelo outro sem o qual não há troca construtiva, nem vida democrática, nem vida social”? (17 jan.)
Nunca o sobressalto do bloco burguês que forma a base eleitoral de Emmanuel Macron6 se revelou de forma tão crua como no dia em que o Le Monde publicou o retrato empático de uma família de “coletes amarelos”, “Arnaud et Jessica, la vie à l’euro près” [Arnaud e Jessica, a vida com cerca de um euro] (16 dez.). Mil comentários furiosos invadiram o site do jornal. “Casal não muito esperto… A verdadeira miséria não seria, em alguns casos, mais cultural que financeira?”, avaliou um leitor. “O problema patológico dos pobres: sua capacidade de viver além de seus recursos”, acrescentou um segundo. “Não imagine fazer deles pesquisadores, engenheiros ou inventores. Essas quatro crianças serão como seus pais: um fardo para a sociedade”, atalhou um terceiro. “Mas o que eles esperam do presidente da República?”, insurgiu-se outro: “Que ele viaje todos os dias a Sens para se certificar de que Jessica toma pílula direitinho?!”. A jornalista autora da matéria cambaleou diante desse “dilúvio de ataques” às “ênfases paternalistas”.7 “Paternalistas”? Não se tratava, no entanto, de uma disputa familiar: os leitores de um jornal conhecido por sua moderação soavam mais como o botão de alarme de uma guerra de classes.
Esclarecimentos sociológicos
O movimento dos “coletes amarelos” marca, de fato, o fracasso de um projeto nascido no final da década de 1980 e defendido desde então pelos difusores do social-liberalismo: o de uma “República do centro”, que teria acabado com as convulsões ideológicas expulsando as classes populares do debate público como instituições políticas.8 Ainda majoritários, mas muito preocupados, eles deveriam ceder o lugar –todo ele – à burguesia culta.
A “virada do rigor” na França (1983), a contrarrevolução liberal promovida na Nova Zelândia pelo Partido Trabalhista (1984) e, no final dos anos 1990, a “terceira via” de Tony Blair, Bill Clinton e Gerhard Schröder pareceram realizar esse projeto. À medida que a social-democracia se enrodilhava no aparato estatal, ganhava asas nos meios de comunicação e colocava de joelhos os conselhos das grandes corporações, ela relegava às margens do jogo político sua base popular do passado. Nos Estados Unidos, não foi surpreendente que, diante de uma assembleia de provedores de fundos eleitorais, Hillary Clinton tenha classificado na “cesta de pessoas dignas de piedade” os apoiadores de seu adversário. Mas a situação francesa é pouca coisa melhor. Em um livro de estratégia política, Dominique Strauss-Kahn, um socialista que já formou muitas pessoas próximas do atual presidente francês, explicava já há dezessete anos que seu partido dali em diante tinha de confiar “nos membros do grupo intermediário, composto em imensa parte de assalariados, prudentes, informados e educados, que formam a espinha dorsal de nossa sociedade. Eles garantem a estabilidade, por causa de […] seu apego à ‘economia de mercado’”. Quanto aos outros – menos “prudentes” –, seu destino foi selado: “Do grupo mais desfavorecido, infelizmente nem sempre podemos esperar uma participação serena em uma democracia parlamentar. Não que ele não tenha interesse pela história, mas suas irrupções às vezes se manifestam pela violência”.9 Nós nos preocuparíamos, portanto, com essas populações apenas uma vez a cada cinco anos, geralmente para culpá-las pelas pontuações da extrema direita. Depois elas retornariam ao nada e à invisibilidade – a segurança das estradas ainda não exige que todos os motoristas tenham um colete amarelo.
A estratégia funcionou. As classes populares estão excluídas da representação política (ler artigo na página 6) e também do coração das metrópoles: com 4% dos novos proprietários trabalhadores ou empregados a cada ano, a Paris de 2019 se assemelha à Versalhes de 1789. Excluídas, por fim, das telas de televisão: 60% das pessoas que aparecem nos noticiários pertencem aos 9% dos mais diplomados.10 E, aos olhos do chefe de Estado, elas não existem. A Europa, ele acredita, não passa de um “velho continente pequeno-burguês sentindo-se seguro no conforto material”.11 Porém, tem o seguinte: esse mundo social obliterado, decretado relutante ao esforço escolar e à formação e, portanto, responsável por seu destino, ressurgiu sob o Arco do Triunfo e na Champs-Élysées. Confuso e chocado, o conselheiro de Estado e constitucionalista Jean-Éric Schoettl diagnosticou no site do Figaro (11 jan. 2019) uma “recaída em uma forma primitiva de luta de classes”.
Barreira ideológica
Se o projeto de retirar do campo político a maioria da população fracassou, outro capítulo do programa das classes dominantes – aquele que pretendia tornar imprecisos os pontos de referência entre direita e esquerda – experimentou, em contrapartida, uma sorte inesperada. A ideia inicial, que se tornou dominante após a queda do Muro, consistia em empurrar de volta para as margens desacreditadas dos “extremos” qualquer posição que questionasse o “círculo da razão” liberal – uma expressão do ensaísta Alain Minc. Assim, a legitimidade política não seria mais baseada em uma maneira de ver o mundo, capitalista ou socialista, nacionalista ou internacionalista, conservadora ou emancipadora, autoritária ou democrática, mas na dicotomia entre razoáveis e radicais, abertos e fechados, progressistas e populistas. A recusa em distinguir direita e esquerda, uma recusa que os profissionais da representação reprovam nos “coletes amarelos”, reproduz, em suma, nas classes populares, a política de estabelecer a confusão seguida há décadas pelo bloco burguês.
Neste inverno, as reivindicações por justiça fiscal, melhoria do padrão de vida e rejeição ao autoritarismo do poder ocupam um lugar central, mas a luta contra a exploração salarial e a propriedade social dos meios de produção está praticamente ausente. Porém, nem o restabelecimento do imposto de solidariedade sobre a riqueza, nem o retorno aos 90 quilômetros por hora nas estradas secundárias, nem o controle mais rigoroso dos relatórios de despesas das autoridades eleitas, nem mesmo o Referendo da Iniciativa Cidadã questionariam a subordinação dos empregados na empresa, a distribuição fundamental da renda ou o caráter fictício da soberania popular na União Europeia e na globalização.
Claro, os movimentos aprendem andando; eles estabelecem novos objetivos à medida que percebem obstáculos imprevistos e oportunidades inesperadas: na época dos Estados Gerais, em 1789, os republicanos eram apenas um punhado na França. Marcar sua solidariedade com os “coletes amarelos” é, portanto, atuar para que o aprofundamento de sua ação se faça no bom sentido, o da justiça, da emancipação – sabendo, no entanto, que outros estão trabalhando pelo contrário e esperam que a raiva social vá beneficiar a extrema direita nas eleições europeias em maio próximo.
Tal resultado seria favorecido pelo isolamento político dos “coletes amarelos”, que o governo e a mídia trabalham para tornar infrequentados, exagerando o escopo de cada uma de suas observações deslocadas de contexto. O eventual sucesso dessa empreitada de desqualificação validaria a estratégia seguida por Macron desde 2017, que consiste em resumir a vida política a um enfrentamento entre liberais e populistas.12 Uma vez que essa clivagem tenha sido imposta, o presidente da República poderia amalgamar num mesmo opróbrio seus adversários de direita e esquerda, e então associar qualquer contestação interna à ação de uma “internacional populista” em que, na companhia do húngaro Viktor Orbán e do italiano Matteo Salvini, estariam lado a lado, segundo ele, conservadores poloneses e socialistas britânicos, insubmissos [insoumis] franceses e nacionalistas alemães…
Seja como for, o presidente francês terá de resolver um paradoxo. Apoiado numa base social restrita, ele só poderá colocar em prática suas “reformas” de seguro-desemprego, previdência e serviço público ao preço de um autoritarismo político reforçado, repressão policial e um “grande debate sobre a ‘imigração’”. A ironia seria que, depois de ter feito sermões aos governos “não liberais” do planeta, Macron acabasse por plagiar suas receitas.
*Serge Halimi é diretor e Pierre Rimbert é da direção do Le Monde Diplomatique.