Marcelo D2: pacífico, sim. Pacato, nunca
“Fiquei três anos procurando alguma coisa, até que vi a frase ‘amar é para os fortes’. Fiquei cheio de tesão outra vez para fazer o que eu faço.” Amor e compaixão servem de base ao músico Marcelo D2 para abordar temas envolvendo política e o egoísmo do Brasil contemporâneo
Aos 51 anos, Marcelo D2 sabe que não é mais um jovem de vinte e poucos anos. A reflexão antecede outra avaliação: a de que não é possível mais sair na porrada com todo mundo. Mas a vontade existe. “Todo dia tenho que pedir calma a mim mesmo”, acentua. Se a luta física não leva a lugar nenhum, como o carioca argumentou em entrevista ao Le Monde Diplomatique Brasil, é necessário inventar outros caminhos para conseguir o que se quer – no caso de Marcelo D2, transformar a sociedade.
O estilo transgressor que o acompanhou ao longo da carreira no Planet Hemp e mesmo nos discos solos alcançou outro nível em Amar é para os fortes, seu último trabalho. “Eu estava cansado antes de iniciar esse projeto. Não queria dar entrevistas, não queria mais fazer turnê, falar dos discos. Não havia mais o que dizer”, explica. Para se reinventar, decidiu unir a música ao cinema, e o novo álbum virou também filme. “Sou mais do que o Marcelo D2 só cantor de rap”, argumenta.
A versatilidade artística se somou à atuação nas redes sociais, esta diretamente política e com alvo definido: “Um dos meus primeiros tuítes foi: ‘Estou de volta, para desespero dos fascistas’”. As críticas a Bolsonaro, a quem ele se refere como “um merda”, e a seu governo servem de ponte para ponderações menos óbvias e mais profundas. “Tem tanta gente perdida acreditando nessa falácia toda! É um momento crucial, de mudanças. Vai chegar um momento em que a população vai tomar consciência e perceber que algo está errado. Achei que estávamos no fundo do poço, mas parece que ainda dá para cavar mais, e isso é assustador”, completa.
LE MONDE DIPLOMATIQUE BRASIL – O título do projeto é Amar é para os fortes. Por que associar o amor à força?
Marcelo D2 – Porque dá para lutar com amor também. Há muito tempo que venho me cansando do que estava falando, desde o Planet Hemp batendo de frente. Sempre gostei do calor da discussão. Encontrar esse amor e esse lugar para debater foi muito importante, porque tem uma força nesse amor. É mais um amor de compaixão, de se manter amável. Tenho um amigo que sempre fala: “Você é um sujeito tão carinhoso”, e eu respondia: “Amor é o caraaaalho” [risos]. Mas o trabalho fala de um amor que não é piegas. Tem a ver com cuidado.
Em “Alto da colina”, você faz o seguinte questionamento: “Cada um com as suas dores/ É assim que vamos seguir?”. Esse amor e o álbum tratam desse egoísmo dos dias atuais?
Total. Esse é um questionamento sobre quanto amor você tem pelo próximo, a ponto de renunciar certas regalias. A gente está vivendo um momento que exige muita clareza dos nossos privilégios.
Arrisco dizer que essa revolução digital é maior que a Revolução Industrial, que transformou todo mundo em robô. Essa tecnologia está deixando a população egocêntrica, cada um sozinho dentro da sua imaginação. Gosto das possibilidades que são colocadas por ela, mas há um perigo nessa revolução. As pessoas estão massacrando os outros e morrendo sozinhas.
Do ponto de vista da sociabilidade, qual é o impacto para o Brasil quando unimos esse egocentrismo ao discurso de uma figura como Jair Bolsonaro?
Cara, pior do que esse governo são as pessoas que acreditam nesse sujeito, que se alimentam desse discurso. Bolsonaro, Trump, são frutos desse egoísmo que vangloria a separação. Tem aquele ditado: “Farinha pouca, meu pirão primeiro”. Me dói saber que isso é um dito popular que mostra tão bem como é o Brasil.
Tem tanta gente perdida acreditando nessa falácia toda! É um momento crucial, de mudanças. O ser humano é muito forte, e não é possível que vamos escolher esse caminho e ir até o final. Vai chegar um momento em que a população vai tomar consciência e perceber que algo está errado. Achei que estávamos no fundo do poço, mas parece que ainda dá para cavar mais, e isso é assustador. Parece um grande reality show, no qual o presidente só fala besteira pelo Twitter, e as pessoas ficam debatendo sobre isso.
Em “Parte 2”, a atriz fala para o ator, naquele momento indeciso entre a arte e o crime, que “a falta virou curiosidade, em vez de virar ódio”. O que separa essas duas escolhas?
Essa frase é autobiográfica. Nasci em um lugar pobre, numa favela onde não tenho mais nenhum amigo de infância. Quando me vejo nessa posição de artista dando entrevista e olho para trás, com 13, 14 anos, não acho que eu era mais talentoso que os meus amigos. Acredito que a curiosidade, a sagacidade, tenham me trazido até aqui. A vontade de não desistir ou entregar na mão do outro. Isso tem a ver com educação. Meus pais sempre me deram as ferramentas, com o pouco jeito que tinham. E tem a percepção de cada um para aproveitar os “cliques” que a vida dá. Eu tinha a oportunidade de sair para roubar, mas na época me achava medroso, frouxo. Depois vi que não ir foi a escolha correta. Você precisa insistir, como diz a frase do Bernardo [BNegão]: “Estou aqui de passagem, mas não vim a passeio”. São decisões diárias, de levantar e pensar que vai fazer o certo, principalmente para a molecada que está na periferia, que tem menos privilégios.
Amar é para os fortes foi um clique na sua vida?
Sem dúvida. Tem uma ambição artística ali grande. Eu estava cansado antes de iniciar esse projeto. Não queria dar entrevistas, não queria mais fazer turnê, falar dos discos. Não havia mais o que dizer. O meu trabalho anterior, Nada pode me parar (2013), foi como um ponto final, um agradecimento à cultura hip-hop. Fiquei três anos procurando alguma coisa, até que vi a frase “amar é para os fortes”. Fiquei cheio de tesão outra vez para fazer o que eu faço. Acendeu algo que mostrou que sou mais do que o Marcelo D2 só cantor de rap. A minha arte não pode ficar dentro de um CD, de uma mídia. Posso me expressar em vários formatos: nas redes sociais, como tenho feito, escrevendo um roteiro, fazendo um filme…
Recentemente você disse que “o Brasil é um país muito rico para quem faz arte”. Que riqueza é essa e como a situação política do país pode ameaçar a arte?
Comecei a fazer música ouvindo grupos como Public Enemy, NWA, que são bandas contestadoras, então a minha arte tem a ver com esse combate. Nessa ideia, o Brasil é o lugar perfeito para isso, dada a quantidade de problemas sociais. Sempre achei que escrevo melhor quando estou puto, triste ou com algo me incomodando, e o nosso país tem isso de sobra.
A gente vai ter alguns anos de combate, se é que esse governo vai durar mais algum tempo. A minha esperança é que andemos para trás e depois possamos avançar. Serão embates que envolvem censuras e problemas variados, com restrição de liberdade, inclusive. Mas, mesmo se esse governo virar uma ditadura militar, a gente vive em um mundo diferente, com a possibilidade de criar algo para incomodar esses caras.
Você tem feito uso frequente do Twitter. Isso foi aleatório ou teve algo planejado?
Eu estava longe do Twitter e cansado do Instagram, aquele mundo Disneylândia sem imperfeições. Quando comecei a fazer o álbum decidi usar as redes sociais para divulgar o trabalho ou como forma de me expressar. Foi algo intuitivo, mas percebi que o Bolsonaro e a discussão política estavam no Twitter. Pensei: “Vou entrar nisso aí”. Um dos meus primeiros tuítes foi: “Estou de volta, para desespero dos fascistas”. O bicho começou a pegar e eu fiquei. Mas não foi algo pensado, tanto que meus assessores ficaram malucos. É tudo orgânico. E foi importante para mim como cidadão, me senti vivo, com a sensação de fazer algo para além da figura do Marcelo D2, utilizando o meu privilégio de artista que possui uma voz importante.
Qual é sua reação quando as pessoas te relacionam diretamente ao PT apenas por fazer oposição ao governo Bolsonaro?
A primeira coisa é pensar “quanta ignorância” para a pessoa achar que é só isso: PT ou a direita. Esses dias um cara veio e falou: “Vai morrer petista, filho da puta”. Pô, só faltava essa: morrer como petista! Tudo que eu fiz na minha vida se resume ao petismo? Que merda! O PT tomou o discurso da esquerda como se fosse dele, o que não é verdade. Mas também existe muita ignorância.
Sou muito mais um humanista do que um esquerdista. Estive com o Pepe Mujica, no Uruguai, e percebi que estou muito mais preocupado com questões que não são exclusividades da esquerda, como a igualdade social. É que isso não existe no Brasil atual, mas existem pessoas de direita que pensam nisso: um mundo com menos desigualdade. É claro que neste momento é muito importante estar no lado contrário de quem está no poder, e o oposto disso acaba sendo a esquerda. Mas eu acredito que o caminho ideal seja algo mais ao centro.
Na música “Amar é para os fortes” há um trecho que diz: “Quer sair da linha/ Pegar e dar um sacode/ Não é sempre que se pode/ Mas que dá vontade, isso dá”.
Esse é o cara que está dentro de mim querendo uma briga, e eu preciso controlá-lo [risos].
Você está domado, mais tranquilo?
Sim, mas todo dia tenho que pedir calma a mim mesmo, se não pode sair um “seu filho da puta!”… Mas é isso, não dá mais, entendeu? Estou com 50 anos, cara. Não dá para ficar saindo no soco com todo mundo. A luta física não leva a lugar nenhum. É difícil falar isso, porque quando eu tinha vinte e poucos anos era tudo resolvido na porrada. Mas hoje em dia vejo diferente.
Na música “Febre do rato” há um verso que diz: “Sou eu pura contradição”. Isso diminui ou aumenta com a idade?
Conversei com a minha filha [Lourdes] sobre isso recentemente. De saber o quanto somos racistas, preconceituosos, e domar isso diariamente. Fui criado em uma sociedade machista pra caramba. Reconhecer e controlar essas atitudes é importante, mas fazer isso quando se é novo fica muito difícil, porque você tem a cabeça cheia de certezas. Chegar à minha idade e reconhecer o quanto fui machista com as mulheres com que eu convivi e ter consciência disso é importante. Este sou eu: bate e estende a mão, contradição total.
Como você tem visto a produção musical neste momento, especialmente no rap? Você já disse que não gosta de entregar os significados das suas músicas de mão beijada ao público.
Sempre gostei de projetos temáticos, e nesse não foi diferente. A diferença para esse trabalho está na maturidade. Nesse disco eu não sou só o cara que canta o rap. Fiz as músicas, um roteiro, criei um conceito para a obra toda.
Vivemos um momento na cultura hip-hop que, até outubro do ano passado, estava bem babaca. O rap de condomínio, de uma classe média cheia de privilégios, falando da mulher na área VIP e do Chandon, quando o país virou um caos por causa da política. Aí a galera que tem mais conteúdo começou a “tomar de assalto” de novo. Tem gente nova, como Djonga, Baco Exu do Blues, BK, Rincon Sapiência. Aí tem Mano Brown, Racionais, eu, que fazemos isso há muito tempo. Mesmo alguns não tomando posição política clara, a obra deles mostra o que eles querem para o mundo. Para mim, que vivo da cultura hip-hop há 25 anos, foi satisfatório ver essa movimentação. Ufa, acabou a baboseira!
A partir daí, o que você classifica como “Resistência cultural” neste momento, título de uma das músicas do novo álbum?
Para mim é estar na contramão. As pessoas confundem arte e cultura com entretenimento. O que a Anitta faz é entretenimento. O que o Gilberto Gil faz é cultura. Não estou desmerecendo a Anitta ou querendo colocar em uma balança, mas são coisas totalmente distintas. Resistência cultural é fazer que a música não fique em uma prateleira, como se estivéssemos em um supermercado. De novo: estou aqui de passagem, mas não vim a passeio.
Como é estar nesse lugar de artista justamente em um momento no qual as pessoas valorizam o consumo fácil?
Cara, eu nasci na favela, de repente fiquei rico, ganhei dinheiro. Antes de qualquer coisa, como é que eu, em vez de comprar um carro de R$ 250 mil, vou fazer algo mais interessante com esse dinheiro? Isso já é difícil. Mas essa busca para minha vida acaba se refletindo na arte. Em um país com tanta desigualdade, não preciso esfregar um carro de R$ 1 milhão na cara da sociedade. As coisas simples da vida têm muito valor. Mas eu não tenho muita esperança de isso mudar, porque o que vamos ter cada vez mais é esse lugar das falsidades, do consumismo, do sujeito que trabalha doze horas por dia para comprar uma televisão de plasma gigante, à qual ele só consegue assistir uma hora… Só vai mudar com educação. Mas como investir em educação se elegemos pessoas que são eleitas exatamente por um povo sem educação? Quando vamos ter um governo que realmente iguale diferenças sociais? Não falo só em sucesso profissional. Não precisa todo mundo ser o número 1.
Recentemente você disse que a pauta da legalização das drogas está desgastada, porque alguns países já legalizaram. Qual é o lugar da disputa agora?
O problema da droga no Brasil é que ela está totalmente ligada à violência, e isso acaba atrapalhando um discurso mais verdadeiro, que é o discurso da saúde. A ilegalidade no Brasil e em tantos outros países da América Latina tem a ver com esse controle de corpos, de formar guetos e deixar as pessoas presas nesses lugares, sem educação e saúde. É uma forma de manipulação e manutenção do preconceito. Não dá para falar das drogas a partir daí.
A questão deve ser debatida como nos países onde ela foi legalizada: focando a redução de danos e como cuidar das pessoas. Uma coisa é o recreativo, como existe com a maconha; outra coisa é a dependência. E nem venha me falar da maconha, porque antes de tudo é preciso acabar com a hipocrisia. Álcool faz mal e é legal. É preciso construir uma sociedade mais verdadeira, longe deste lugar onde estamos. No contexto atual, as discussões sobre as drogas ficam pequenas, porque não é só sobre droga: é sobre preconceito, privilégio e violência. Tudo fica em volta dessa grande mentira.
*Guilherme Henrique é jornalista.