Marx não tem culpa, mas não descansará em paz!
Antes de entrar em alguns elementos chaves para ler Marx e o marxismo reforço que os sujeitos que o leem o fazem à luz dos dilemas de seu tempo
Dois mil e dezoito é um ano de intensas crises. Mais intensas do que as de 1818, ano em que nasceu Karl Marx, o Mouro. No entanto, é tão viva a luta que Marx sustentou na política, na academia e na vida, que, infelizmente, nos exige constatar a assertiva dos fundamentos teóricos de sua leitura de mundo indissociável da construção de uma sociedade verdadeiramente livre e nova.
Esse texto tem uma única pretensão: tirar de Marx o que não deve ser atribuído a ele e reforçar que o marxismo, em cada tempo, lugar, contexto histórico, imprime elementos próprios a partir do ritmo das diversas dimensões da luta de classes protagonizada por múltiplos sujeitos em seus respectivos territórios. Marx em seus textos e contextos e nós, marxistas, em tempos de complexas e renovadas ofensivas contra nossos ideias-reais, não podem ser a mesma coisa, tamanha as dimensões distintas de cada viver no tempo-espaço.
Antes de entrar em alguns elementos chaves para ler Marx e o marxismo reforço que os sujeitos que o leem o fazem à luz dos dilemas de seu tempo. E as interpretações, como pontos de vistas e anseios podem, em muitos sentidos, se distanciar das intencionalidades concretas do autor original. Isso não ocorre por má fé. Mas por se tratar de história, contradições e movimentos contínuos complexos.
Exigir de Marx e do marxismo o que ainda não fomos capazes de construir é perversidade. Exigir que resolvam os dilemas da humanidade que o capital em suas diversas dimensões de violência física e simbólica é capaz de gerar é como exigir que o tratamento homeopático responda de forma imediata às mazelas metabólicas provocadas pelos venenos do capital. Exigir humanidade, afetividade, tempo livre para o afeto em meio a uma sociedade que insiste em roubar tempo, afastar corpos mediando-os por dinheiro, é inverter a luta contra o inimigo principal para o interior da classe trabalhadora.
Afinal, o projeto manifesto por Marx e seus pares em seu tempo, e cotidianamente trabalhado para ser executado, está longe de se materializar em nosso tempo, ainda que as crises se apresentem como processo de aceleração do desmonte do que ainda nos resto de humanidade. Humanidade entendida como possibilidade de produzir com os demais seres sociais, sem explorar, oprimir, subestimar, destruir outros seres humanos e demais seres vivos e a natureza.
Sobre as elaborações de Marx e do marxismo sem titubeios
Marx foi um homem de seu tempo e contexto histórico (Europa do século XIX). Suas ideias originais nasceram de muita imersão na realidade concreta e do estudo de autores – próximos e antagônicos – que forjaram um pensamento próprio em tempos de muitos abalos sociais. Portanto, a originalidade teórica de Marx não está em criar ideias que antes não haviam sido pensadas. Está em reelaborar muitos elementos à luz de seu ponto de vista da história e a partir da classe à qual pertencia, a trabalhadora.
Nossa aproximação à sua vida e obra, duzentos anos após seu nascimento, depende de narrativas de outros homens e mulheres que ao acessarem, por curiosidade, desejo e afinidade, seus documentos relatam, no singular, a pluralidade de elementos que compõem sua harmoniosa obra integrada entre literatura-política-direito-crítica da economia política. De tal forma que é mais acessível entendermos o pensador Marx e sua posição política do que entrarmos, de fato, em uma cotidianidade repleta de processos difíceis de analisar, dada a fragilidade de nosso tempo.
Marx expôs em toda sua obra a centralidade do trabalho. E foi, cotidianamente, um exemplo concreto de quem trabalhava muito, com as armas que tinha à época, para sobreviver junto aos seus. O trabalho de Marx é um exemplo incrível de pedagogia concreta, pois jamais escreveu sobre algo não vivido e entendeu que o exercício de abstração, partindo do concreto, não era falar sobre algo vago. Ao contrário, era materializar em níveis mais profundos o concreto de maneira a perceber todas as nuances ocultas pelas perspicazes formas de engano projetadas por quem domina.
Entendo o ato amoroso de Marx em sua obra, que não pode estar dissociada de sua vida. A obra filosófica, as construções estéticas, a perspectiva da crítica da economia política burguesa de Marx estão repletos de ato amoroso. Nomino como ato amoroso a capacidade de municiar a classe, ao longo de mais de 185 anos, com uma teoria capaz de revelar como funciona a sociedade; quais suas leis tendenciais; quais os perigos de entrar nas artimanhas da ordem para depois repensar novos processos e, especialmente, como, em meio a tanta desigualdade social e historicamente determinada, não abrir mão do horizonte revolucionário, como movimento central de superação sobre as mazelas vividas pela maioria.
Como todo ato amoroso, o romantismo se mescla com ironia; o desejo com a materialidade e o simples com o complexo jogo reflexivo que, com o passar do tempo, fomos sendo lapidados para não conseguir perceber, tamanha a fragmentação e avanço tecnológico de acesso ao mundo virtual sem estudo e disciplina concretos para além do vazio.
Marx, segundo seus biógrafos e seus particulares olhares, foi pai, companheiro, esposo, amante, boêmio, enfermo e tantos outros adjetivos possíveis, a depender de que lugar se ocupa para ler o sujeito e sua história. Parto de uma perspectiva concreta sobre o ato de amar de Marx: é impossível escrever o que escreveu e para quem escreveu sem ter sido humanamente solidário e amoroso em seu ato político. Marx foi um sujeito incrível, em especial por ter sido capaz de, privado de tanta coisa pela sociedade privada, não ter titubeado, em nenhum momento sobre seu lugar, papel, protagonismo como classe e para a classe.
A leitura da obra de Marx a partir do chão que pisamos e o pensamento que aprendemos
O incrível e difícil acesso ao ato amoroso de Marx tem a ver com o lugar que ocupamos na história: quanto mais periféricos, mais vinculados ao mundo da sobrevivência e mais forjados para a venda miserável de nossa força de trabalho, mais complexa a aproximação à obra de Marx. E por questões objetivas não por limitações pessoais. Porque são objetivas as históricas amarras que nos condicionam a um não saber forjado por quem domina para seguir com seus mecanismos de dominação.
Meu lugar como leitora de Marx é assumidamente periférico, terceiro mundista, feminino, não branco, e oriundo do mundo do trabalho cuja única possibilidade de riqueza advém da venda cada vez mais miserável de horas pagas em tempo de descanso quando seu mestre mandar. Minha leitura de Marx é oriunda do mundo do trabalho, mesmo que em convívio contínuo com o mundo do capital.
O marxismo, assim como Marx, expõe narrativas, histórias, perguntas e posições dos sujeitos na vida. O meu, orientado por importantes mestres de convívio e outros de aprendizagens, advém de uma condição latino-caribenha, dependente no pensamento, na linguagem e nos corpos castigados cotidianamente por uma sociedade que formalizou a independência para seguir guiada de forma manipulada pelos donos do dinheiro nas novas fases do capital industrial-financeiro.
Marx e o marxismo que me acompanham são os que me ensinam a compreender o porquê de minhas diversas condições periféricas: mulher, não branca, terceiro mundista, não aprendiz de idiomas para além dos coloniais hegemônicos na América Latina (português e espanhol) e mãe solteira em territórios sombrios liderados por um patriarcado severo na América Latina (violento por ser colonial, escravista e oligarca). Ler Marx a partir do que nos toca viver concretamente nos torna automaticamente marxistas. E como dito viver é diferente, ainda que aplastado pela mesma dinâmica violenta do capital, o marxismo daqui, não tem porque ser igual aos marxismos de outras tantas partes.
Em condições objetivas diferentes, análises próprias erguem-se a partir de obras clássicas. Frantz Fanon na África; com Simone de Beauvoir, Clara Zetkin, Rosa Luxemburgo e Alexandra Kollontai e seus pares Sartre, Brecht, Lênin, Trostsky e posteriormente Rosdolski, Mandel, Samir Amin e Mészaros, na Europa; do lado de cá do Atlântico, José Carlos Mariátegui, C. R. L. James, Eric Williams, Anibal Ponce, Julio Mella, os muralistas mexicanos David Siqueiros, Diego Rivera e Clemente Orozco, acompanhados de grandes mulheres como Frida Khalo e Tina Modoti; Eduardo Galeano, Sergio Bagu, Agustin Cueva, Leopoldo Zea, Vânia Bambirra, Jacob Gorender, Clovis Moura, Ruy Mauro Marini, Reinaldo Carcanholo. Os pioneiros da escola de Frankfurt e os marxistas da psicanálise. Além de diversos sujeitos que não chegaram à academia, mas foram certeiros em seus pensamentos críticos como Carolina de Jesus e sua vida repleta de substância em meio ao território dos muitos “ninguéns”, como dizia Galeano.
Há marxismos na literatura, na política, na psicanálise, na economia crítica, na antropologia, na história, nas ciências sociais, nas humanidades, na medicina. Seus tons e suas interpretações não são consensos, são pontos de vistas com perguntas concretas sobre a, cada vez mais difícil, explicação social, sobre por que vivemos como vivemos. Os marxismos dão a dimensão da vivacidade de Marx e sua obra.
Ser marxista não é tecer, na forma de dogma evangelizador, a leitura correta sobre a obra de Marx em todos os tempos. Ser marxista é, à luz do nosso tempo, perseguir a explicação de um caminho que nos ajude a acender as chamas de consolidação, com luta, de uma era de novos homens e mulheres, com outros valores para além do mercantil.
No caso específico do marxismo latino-caribenho ser marxista narra muita complexidade advinda de nossa condição periférica na ciência, na epistemologia, na criatividade que deveria ser ontológica mas está aprisionada pela ode mercantil. Nossa condição periférica está revestida de pesados pensamentos, ações e sentimentos (neo)coloniais, cujas mutilações ontológicas são reais.
O pensamento científico de nossas economias dependentes é restrito, condicionado de fora para dentro a partir da lógica imperialista e incapaz de nos permitir mergulhar no estudo de diversos outros tempos, na profundidade que se exige, rumo à compreensão teórica de nossa vida cotidiana.
Tempos difíceis, opções acertadas, diálogos impenetráveis
Reivindicar Marx em pleno século XXI, após a reiterada força destrutiva do capital contra o trabalho cada vez mais padronizada no plano internacional, tem sido tarefa difícil. Do lado do capital, a ofensiva sob tortura travestida de democracia é a mordaça; e do lado do trabalho, a diversidade de bandeiras que se apresentam diante da intensificação das explorações e opressões tem exigido outros ares também silenciadores.
O marxismo no século XXI está entre duas grandes batalhas: a travada contra o inimigo principal em diversas áreas da vida cotidiana e a travada entre os pares de classe que se veem como impares ao marxismo. Ímpar na medida em que exigem de Marx e do marxismo respostas há séculos de exclusão, opressão, violações. Muitas delas acertadas como a forma e o conteúdo impressos no marxismo latino-caribenho oficial dos partidos e da academia que deixou de fora o campesinato, os quilombolas, os indígenas e as mulheres em parte expressiva de suas lutas. Outras tantas injustas de reivindicar daqueles e daquelas que lutam uma posição concreta que os tire da condição de opressão e exploração como se fosse somente um ato de vontade.
É importante ressaltar que ser marxista não nos credencia para um endeusamento fora do lugar. Ser marxista em tempos violentos do capital é lutar contra a opressão que aprendemos a protagonizar cotidianamente. O marxismo deve ser guiado por uma contínua (auto)crítica dos pares de nosso tempo para que sejamos capazes de revigorar nossa teoria e prática e superar nossas limitações. Isso exige uma reeducação para ouvir em uma sociedade que nos ensinou o despotismo de poucas falas. Nada mais anti-dialético que a incapacidade dialógica entre nós trabalhadores e trabalhadoras.
O marxismo corre sérios riscos no século XXI: de ser mal interpretado devido à má fé de muitos que o desconhecem mas o tornam sua referência de disputa de ser intencionalmente apresentado como ameaça pelos ideólogos conservadores das ideias da classe dominante de nossa época; mas, em especial, de não ser rico o suficiente para, como Marx, meter-se no meio da classe, estar com ela, falar com ela, ser como ela.
Após duzentos anos do nascimento de alguém tão especial para nossas histórias passadas vivas no presente, a tristeza e a alegria se misturam na dialética do concreto. E a pergunta que fica de uma marxista sem titubeio é: porque me sinto tão só se somos milhões na mesma condição? Porque tantas mulheres e homens estão esgotados e sem perspectiva de vida em meio a tanta possibilidade ainda em aberto? Por que tanta gente querendo morrer, dada a possibilidade de construção de um belo viver?
As perguntas são muitas assim como as fontes nas quais podemos beber para tentar percorrer um caminho de explicação sobre a perversidade vivida por nós como classe em uma sociedade, suja, repleta de desencontros. Escolhi um caminho: o de Marx e do marxismo. E sei que nessa vida finita não será possível aprender tanta coisa como desejaria/deveria. Uma escolha, nem melhor, nem pior. Um caminho respeitável, amoroso e assentado em um rigor necessário para romper com as farsas cotidianas.
Marx não tem culpa dos nossos erros e limitações. O marxismo talvez sim. Mas ele é tão amplo, tão repleto de especificidades que acho difícil podermos falar sobre toda a gama de marxistas e suas concepções em tempos sombrios como o atual. Por conta das mazelas e das distâncias vividas por nós, trabalhadores, Marx e sua obra não tenderão a descansar em paz. São muitos os gritos ecoados contra ele a partir daqueles e daquelas que o abominam sem o conhecer. O desconhecem e não o reconhecem por conta disso. Esses gritos de aversão aderem muito facilmente em nossos corpos colonizados. Oxalá sejamos capazes de criar proteções contra esse tipo de ataque de fora e de dentro da academia.
Há vida e muita aprendizagem para além de Marx e do marxismo. É um caminho tão sério e tão válido como tantos outros. Oxalá a escolha desse caminho seja tolerada em tempos de intolerâncias. O mal estar geral advém de outros processos de uma classe contra nós trabalhadoras e trabalhadores. Quanto a isso não deveríamos divergir. Oxalá como trabalhadores cada vez mais superexplorados e oprimidos sejamos capazes de nos (re)unir para reavivar a consciência, sempre coletiva, de classe.
*Roberta Traspadini é professora da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila), curso de Relações Internacionais, atualmente em cooperação técnica no Departamento de Ciências Sociais na Universidade Federal do Espírito Santo (DCSO/Ufes). Coordena o projeto Saberes em Movimento e o Observatório de Educação Popular na América Latina.