Maturidade e desencanto
Com 22,6% de sua população vivendo em pobreza absoluta e 29% de desemprego, a Argélia comemora 40 anos de independência. Mas há esperanças: o analfabetismo caiu de 74,6% para 31,9% e o índice de escolarização é de 90%Ghania Mouffok
Entre tragédia e comédia, a nova Assembléia Nacional tomou posse um mês antes da comemoração dos quarenta anos de independência da Argélia, no dia 5 de julho de 2002. Uma mulher, rígida como o mastro de uma bandeira, chorava ao ouvir o hino nacional, e o mais velho deputado do país, a quem coube o direito de abrir essa primeira sessão, provocou o riso de seus pares quando, empregando o árabe popular, se perdeu em meio às anotações, redigidas em árabe literário. Nascido em 1931, Tahar Toumi exortou os 399 novos deputados a “fazerem milagres”: “A Argélia é capaz disso. Trabalhemos juntos para sair da escuridão. Estejamos abertos ao perdão, lavemos nossos corações”.
Como se iniciava uma nova fase, rapazes pintavam novamente de branco, do lado de fora, os edifícios coloniais, que se haviam tornado muito apertados, sob uma luz que era um insulto de tão esplendorosa. Escalavam as paredes com cordas improvisadas: como verdadeiros alpinistas da economia de mercado, estão apenas registrados na Previdência Social. O mais velho deputado do país, eleito de uma lista independente, é um sindicalista: um símbolo…
Mudanças demográficas
O desemprego revela um aumento preocupante, afirma o último informe do Conselho Nacional Econômico e Social sobre a conjuntura. Em oito anos, entre 1987 e 1995, a renda familiar caiu 36% e a proporção da população em situação de pobreza absoluta passou de 12,2% a 22,6%.
“Em 25 anos, 50% da população tornou-se urbana, enquanto na França, semelhante urbanização levou um século. E desde a independência, a população triplicou”, observa Chérifa Hadjij, sociólogo na Universidade de Argel. Em 2002, a Argélia tem 30 milhões de habitantes e, contrariando os prognósticos, a taxa de crescimento natural caiu de modo espetacular: continuou, é verdade, “superior a 3% ao ano entre 1962 e 1985, ou seja, durante mais de duas décadas; em seguida, porém, observa-se uma diminuição a partir de 1987, situando a taxa de crescimento natural em 1,43% no ano de 20001“. Na realidade, se 8% das mulheres em idade de procriar faziam uso da pílula em 1970, atualmente são 64% que a tomam.
“Reestruturação” e desemprego
Em 2002, a Argélia tem 30 milhões de habitantes e, contrariando as previsões, a taxa de crescimento natural caiu de modo espetacular, para 1,43% ao ano
Nos meios especializados, pergunta-se: essas mudanças demográficas seriam sinais de modernidade, como pressupõem as instituições internacionais, favoráveis a uma diminuição da natalidade entre as populações do hemisfério Sul, ou seriam sinais de regressão devidos à pauperização? “Sem ser pessimista”, escreve Labsari Ouardia, sociólogo, “tudo leva a crer que, durante os próximos anos, a tendência à queda do crescimento demográfico – já iniciada – vai prosseguir para atingir níveis muito baixos, até provavelmente se tornar ?irreversível?, isto é, chegar a um nível que não permitirá a simples reprodução da população.” E acrescenta: “Se o ritmo de degradação das condições de vida das populações pobres continuar, é de se temer não só um risco de ?implosão demográfica?, mas também, paradoxalmente, de uma eliminação dos pobres através de políticas que pretendem eliminar a pobreza2.”
Porém, sem dúvida, trata-se de promessas piedosas típicas desses inúmeros simpósios financiados pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), pelo Banco Mundial, pelo Fundo das Nações Unidas para a População (Funap) e organizados em Argel sob o alto patrocínio das autoridades que, sem questionar as políticas de ajuste estrutural que provocam essa pauperização, preferem culpar as populações dos países do Sul. “Inúmeros países do Sul, à beira da bancarrota, conseguiram obter empréstimos mediante a condição de reduzirem seu excedente demográfico3.”
Diminuir o crescimento demográfico, fechar as empresas públicas, grandes provedoras de empregos – avalia-se em 510 mil o número de pessoas desempregadas devido às “reestruturações econômicas”: essas são algumas das receitas propostas aos países endividados, como a Argélia… Enquanto se espera a criação de empregos pelas empresas privadas, elas próprias são ameaçadas pela adesão à Organização Mundial do Comércio (OMC) em processo de negociação, e pelo acordo de associação com a União Européia, assinado em 19 de abril de 2002, que é visto como uma nova ameaça pela União Geral dos Trabalhadores Argelinos (UGTA) e pelo Forum dos Empresários Argelinos. Este – que representa a nata dos industriais, foi criado há pouco e não pode ser acusado de ser contra o liberalismo – juntou-se, pela primeira vez, à central sindical a fim de denunciar a pressa com que esses acordos são assinados, sem nenhuma proteção para as empresas nacionais.
Muitos debates determinantes para o futuro do país, mas, por ora, totalmente ocultados pelas elites políticas, integradas ao regime ou de oposição, obcecadas pelo “poder” e cegas em relação à sociedade que, em sua maioria esmagadora, não se reconhece nesse poder nem nas oposições a ele.
Seriam essas mudanças demográficas sinais de modernidade, como pressupõem as instituições internacionais, ou sinais de regressão devido à pauperização?
Só resta então, como forma de protesto, a rebelião, ao menos para uma parte da juventude, apavorada pelo que pressente quanto ao futuro mais do que em relação a seu presente, diante dos pais que lhes parecem crianças mimadas da independência. Esse paradoxo é que torna quase impossível o diálogo entre as gerações e relativiza a idéia, aceita de modo geral, de que a Argélia – independente há quarenta anos – teria conhecido somente o fracasso. A título de exemplo, a expectativa de vida passou de 53,5 anos, em 1973, para 70 anos atualmente. A taxa de analfabetismo caiu: de 74,6% em 1966, passou para 31,9% em 1998, embora continue sendo de 40% para as mulheres. São números globais que não levam em conta a escolarização em massa dos mais jovens. “De 1979 a 1999, a população escolarizada, de 6 a 15 anos de idade, passou de 77,26% a 89,98%; no que se refere à população feminina da mesma faixa etária, a progressão foi maior4.”
A revolução tranqüila das moças
Poderia ser, ao contrário, porque o país viveu a ambição do desenvolvimento e de melhores condições de vida ao sair da colonização e porque hoje sua juventude, baseada no modelo de seus pais, não se decide a viver aquém daquilo que as gerações pós-independência conheceram em termos de escolaridade, de emprego e de saúde.
Em 1988, no início da crise do endividamento e da queda do preço do petróleo, a taxa de desemprego era de 17%: em doze anos, passou a 29% – segundo dados oficiais. Mais ou menos 80% desses desempregados têm menos de trinta anos de idade e 54 % têm entre 15 e 24 anos.
Enquanto se espera a criação de empregos pelas empresas privadas, elas próprias são ameaçadas pela adesão à OMC e pelo acordo com a União Européia
E, enquanto os rapazes ocupam as ruas e alimentam o noticiário sacrificando a vida contra granadas de gás lacrimogêneo e balas de verdade – que parecem ser a única resposta dos governantes a suas angústias -, suas irmãs fazem uma revolução tranqüila… Este ano, mais de 56% dos candidatos ao exame de conclusão do curso colegial serão do sexo feminino. As moças investiram na escola, ao passo que os rapazes perderam a esperança de uma promoção social através de diplomas e sonham ficar ricos graças ao bizness. “A paridade foi quase alcançada nos diferentes ciclos do ensino fundamental (equivalente da Argélia ao ciclo médio). No secundário, a paridade já foi atingida em 1994 (49,84%) e a proporção do número de moças aumentou, apresentando uma taxa de 56,02%, em 1999, contra 34,79% em 19795.”
Tensões entre os sexos
A mesma tendência manifesta-se na universidade, onde inúmeras áreas formam majoritariamente mulheres: saúde, educação… “Em nossa sociedade”, analisa Cherifa Hadjij, “há um verdadeiro movimento das mulheres pelo direito de existir, mesmo que se possa falar de transferência do espaço doméstico para o espaço público, visto que as mulheres estão presentes em grande quantidade nas funções de educação, de saúde ou de serviços. E, se sua educação é mais barata por repetirem menos, as moças são penalizadas no mercado de trabalho porque levam mais tempo para conseguir emprego.”
Entretanto, “a população economicamente ativa feminina passou de 109 mil em 1966 para 1,4 milhão em 1998, ou seja, um ritmo de crescimento quatro vezes mais rápido que o do total da população economicamente ativa6.” A taxa de atividade feminina, que não passava de cerca de 10% da população economicamente ativa até a última década, atinge hoje 17%. O que não deixa de provocar tensões entre os sexos, pois a entrada em massa das mulheres no mercado de trabalho é vista pelos homens como uma ameaça: “É uma das novidades de nossa sociedade”, considera Chérifa Hadjij. “A autoridade não está mais na relação pais contra filhas e, sim, na relação irmãos contra irmãs.”
Exclusão de mulheres e recuo de identidade
As moças fazem uma revolução tranqüila… Este ano, mais de 56% dos candidatos ao exame de conclusão do curso colegial serão do sexo feminino
Tal fato explicaria, em parte, a violência contra as mulheres, que se tornam um continente perigoso quando a moral dominante e as leis continuam a não preparar os rapazes para a igualdade. Além disso, o sofrimento é agravado pelo que se chama de a “crise do casamento”. A idade média para o casamento aumentou consideravelmente: passou a 29 anos para as mulheres e a 31 para os homens. Esse aumento do celibato é uma das grandes incógnitas. Produto da década de 90, suas razões são múltiplas, indo da crise da habitação a um outro modo de se projetar no futuro, sem, no entanto, que a moral sexual dominante reconheça o direito a uma sexualidade fora do casamento.
Um parágrafo sobre as conseqüências dessa moral sobre a vida dos jovens, sobre as frustrações maciças que produzem e sobre o estrago da vida afetiva de gerações inteiras seria, a meu ver, muito bem-vindo.
Tudo parece indicar que são essas enormes transformações – pouco pensadas por aqueles que, por sua função, deveriam fazê-lo (os intelectuais, os partidos políticos) – que assustam e se expressam através de formas de representação regressivas, ainda que populares. Do movimento islâmico (a Frente Islâmica de Salvação, FIS, em 1991), ao movimento de coordenações das aldeias, municípios e daïras7, que hoje florescem na Cabília a ponto de terem controlado um partido como a Frente das Forças Socialistas (FFS) que, até então, era dominante e portador de valores democráticos. Esses movimentos têm como denominadores comuns, dentre outros, excluir as mulheres e propor apenas recuos de identidade, seja em torno da religião, seja em torno de uma comunidade: “Ser cabila”.
A maturidade desencantada
A taxa de atividade feminina, que era de cerca de 10% da população economicamente ativa até a última década, atinge hoje 17% do mundo do trabalho
Fechamentos que, não podendo abarcar a complexidade do mundo, atolam-se em tristes impasses. Quarenta anos depois da independência, a Argélia passa por uma verdadeira crise de representatividade que não só se refere ao poder e à sociedade, mas ao conjunto de suas representações. Enquanto se impõem no cenário público, a despeito de todas as ameaças, as mulheres são representadas nessa nova Assembléia de maneira totalmente irrisória. Mas, como não estamos diante de um paradoxo apenas, é uma das mulheres políticas mais singulares, Louisa Hananoune, que causa surpresa extirpando mais de vinte séculos, “coisa nunca vista”, à frente do único partido que ainda assume o socialismo como alternativa: o Partido dos Trabalhadores, de orientação trotskista.
A Argélia oscila entre recuos e avanços. E, se a maioria dos votos dados foram para a FLN de Ali Benflis, é sem dúvida porque esse partido ainda representa um certo universalismo, a integração de todos à idéia de nação, e porque se mostra, hoje, menos opressivo que aqueles que desejam tomar seu lugar. Como instalar-se numa maturidade desencantada.
(Trad.: Iraci D. Poleti)
1 – Estudos do Centro Nacional de Estudos e de Análises para o Planejamento (Centre national d?études et d?analyses pour la planification) – CENEAP, Alger, 2001
2 – Ler, de Labsari Ourdia, La question de population en Algérie. Eléments pour une contribution au débat