“Me preocupa o fato de a poesia precisar ser óbvia pra caralho”, Emicida
Completando 10 anos de carreira, o rapper falou sobre música, literatura e o Brasil: “A atmosfera do nosso país faz com que a liberdade seja uma parada amaldiçoada quando um preto é livre”. Amanhã você confere a versão em vídeo desta entrevista em nosso canal Youtube
É curioso notar que a sala destinada pela equipe de Emicida para receber o Le Monde Diplomatique Brasil conte a história de um artista que não existe mais. A parede do espaço é ocupada por cartazes e pôsteres de shows realizados ao redor do mundo. Letras que se tornaram clássicos do Rap nacional aparecem emolduradas com simplicidade e bom gosto. Prêmios conquistados nos primeiros dez anos de carreira estão organizados em uma estante imponente, que serve de apoio para quadros e pinturas, quase todas retratando a face do rapper.
Todas as referências que compõe o ambiente são fragmentos musicais de um sujeito avesso ao comodismo e sedento pela liberdade. Essa liberdade, confessaria Emicida durante a entrevista, é responsável pelo distanciamento com a própria obra, revisitada no DVD 10 anos de Triunfo, disponível ao público a partir desta segunda-feira (14 de maio). “Eu espero que o moleque que fez Pra quem já mordeu um cachorro por comida, até que eu cheguei longe (2009) esteja bem em algum lugar do universo, porque eu não sou mais ele”, diz.
A liberdade que molda o caráter de Emicida fez com que Pablo Neruda, Gabriel Garcia Márquez, Mario Quintana, entre outros escritores, tivessem papel fundamental nas transformações do seu processo criativo. Entre um trabalho e outro, o racional perdeu espaço para o emocional. “Na primeira mixtape, me esforçava para racionalizar o sentimento, precisava colocar aquela paixão em palavras. A música começou a ser muito cerebral e eu comecei a ficar com preguiça dela, porque a vida é mais do que entender as coisas”, comentou.
As considerações que permeiam a visão de mundo do rapper criado no Jd. Fontalis, zona norte de São Paulo, passeiam entre a voracidade forjada a partir da carência afetiva e material, e a serenidade de quem aprendeu a enxergar e analisar as nuances da complexa sociedade brasileira, alheio aos extremismos da atualidade. “Vivemos em um ambiente digital onde qualquer um que sugira a moderação é chamado de corrupto”, apontou.
Aos 32 anos, Emicida garantiu a própria liberdade sem se importar com as críticas que ouviu há dez anos. Criou a Laboratório Fantasma, sua gravadora independente, transformou o selo em marca de roupa e realizou parcerias com Caetano Veloso, Vanessa da Mata, Pitty e Mano Brown. Entre Brasil e África, e a ausência de um lugar para chamar de seu, fez da música a própria casa, um mundo particular, desmembrado na entrevista que se segue.
Le Monde Diplomatique Brasil: Em Levanta e Anda há um trecho que diz “creio meto a mão, em meio a escuridão, pronto, acertamos”. Em que momento dessa caminhada que está completando 10 anos você sentiu que tinha acertado? Dá para medir o quanto teve de sorte e o que foi planejamento?
Emicida: Para falar disso, tenho que dar um zoom e ver o contexto no qual Levanta e Anda foi feita. Estávamos em Nova Iorque (EUA), com o K-Salaam e Beat Nick (djs e produtores norte-americanos), em uma situação foda. Nós roubamos uma base dos caras, naquele esquema do rap de pegar um sample, um instrumental. Isso era completamente normal pra nós, porque nunca achamos que esses caras observavam o rap brasileiro. Utilizamos o instrumental e fizemos um vídeo que rodou na MTV e viralizou no Youtube. Certo dia, um gringo ligou aqui, com sotaque brasileiro todo errado, falando “vocês estão usando a música de um artista meu”. Fiquei em choque, mano. Pensei: “fodeu, ele vai processar todo mundo e pedir 200 mil dólares”. Demos o papo reto: “ó, somos independentes, sofridos, acabamos de sair de um barraco de madeira e se você tentar levar dinheiro daqui não vai arrancar nada”. O cara tomou um susto do outro lado da linha. Resolvi com a minha cara de pau. Falei que não dava mais para voltar atrás, sugeri que fizéssemos uma música juntos e registrasse ela corretamente. Eles toparam. Tocamos no Coachella (Festival de música realizado na Califórnia) e fomos para Nova Iorque em seguida. Eu estava no 43º andar de um hotel na Time Square, feliz pra caralho e comecei a pensar que dois anos antes eu estava no último banco, do últimos ônibus do terminal Santana, pensando no que fazer para ter o dinheiro da condução e ir gravar a primeira mixtape. Levanta e Anda fala disso: de observar suas incertezas e entender que pode dar uma merda se você for por outro caminho. Chegou um momento na minha existência que a maior certeza que eu tinha era essa incerteza, então só poderia pular nessa escuridão, sem saber o que ia acontecer, mas com o pensamento de não seguir nenhum outro caminho.
Você disse recentemente que gosta de cuidar de tudo, para não ter atravessadores. Em Bang, afirma que “nem todo mundo que tá, é”. Como o Rap moldou seu caráter e definiu quem andaria ao seu lado até agora?
Isso veio antes do rap e de ser reconhecido como artista. Não aconteceu por causa da música, mas porque vi uma pá de pessoa pisando uma na cabeça da outra, dizendo que era uma coisa e na hora que estava pressionada não segurava a responsa. Existe uma reflexão, e durante muito tempo fui até meio previsível nessa lógica, onde tínhamos o hábito de dizer quem era verdadeiro e quem era falso. Eu me desprendi disso há muito tempo. Essa frase, nesse contexto, significa que nem todas as pessoas que têm os valores da cultura Hip-Hop estão com um boné para o lado e uma camiseta larga. E nem todas as pessoas que estão com um boné, camisetão e tênis da Nike, dizendo que são do rap, são mesmo do rap, entendeu? Esse grito no final da musica é um salve que significa: “preste atenção nas pessoas e não se mova por signos simples, superficiais”. Tem tanto lobo em pele de cordeiro, quanto cordeiro em pele de lobo. Algo que ilustra isso é a minha mãe. Ela sempre odiou Rap. Achava coisa de bandido, vagabundo, marginal. Ninguém acredita nisso até que a música começa a sair no jornal, pague suas contas, e isso é triste, frustrante. Na periferia é pior ainda. As pessoas não incentivam essa arte. Mas, mesmo minha mãe sendo contra o Rap, um dia ela viu quatro moleques que faziam Rap trabalhando para um político, o Conte Lopes. Ela, que não tinha nenhuma identificação com Rap, chamou eles e disse: “vocês não têm vergonha? Vocês sabem quem é esse cara, o que ele faz? Vocês tão parecendo barata fazendo campanha de inseticida”. Nem todo mundo que tá, é o rap, tá ligado?
Não sabia dessa relação com a sua mãe. Em que momento você acha que ela se acostumou com a sua carreira?
Não sei, sinceramente. Acho que há um respeito maior porque o dinheiro faz as pessoas respeitarem as coisas. Isso é uma constatação real. Pode ser um jeito frio de pensar, mas o dinheiro muda a interpretação. A partir do momento que você começa a ganhar dinheiro, as pessoas não se veem mais com a necessidade de entender o que você faz: elas te respeitam automaticamente. Não sei dizer quando minha mãe ou minha família compreenderam o que eu faço, mas sei quando isso parou de ser questionado: quando passei a pagar minhas contas. É emblemático para mim pensar que não houve um momento de compreensão. Essas conversas nunca aconteceram e isso é uma parada louca. Não temos o hábito do diálogo. Eu e o Fióti (Evandro, irmão mais novo), sim. Conversamos horas e horas, mas com outras pessoas não há sintonia. Sinto afeto por eles, claro, mas não tem essa ligação que imaginam. É o que eu falo na música Sorrisos e Lágrimas, quando digo que nós chamamos os outros de família sem ter a menor ideia do que é ter uma. Meu conceito de afeto é todo esfarelado.
Como você acha que isso reverbera na sua música?
Percebi que tinha o vínculo de sangue com pessoas que eu não me identificava, e o vinculo de paixão, ideologia, com outras que não tinham meu sangue. Eles fechavam comigo pra tudo, ombro a ombro. A minha educação em relação ao afeto veio muito mais desses irmãos que a música me trouxe. A partir dessas relações eu saí construindo outra família na rua com os caras que trabalham aqui até hoje. Caras que estavam juntos, numa situação muito semelhante. Essa distância nas famílias, quando não há tempo, grana… O afeto vira um luxo, mano, e hoje eu entendo, por isso compreendo algumas atitudes dos mais velhos. As pessoas trabalham oito horas, faz mais duas de hora-extra, tem o deslocamento… Não dá pra florear a vida. É pagar as contas e seguir a engrenagem do sistema. Tem roupa para lavar, criança pra ninar, janta pra fazer, antena da TV pra arrumar… Minha mãe tinha 15 anos quando teve a primeira filha. Por um lado ela abraçou a responsabilidade de ser mãe, mas, por outro, ela não tinha responsabilidade para entender a proporção daquilo, e meu pai não foi o melhor companheiro que ela poderia ter. Por isso compreendo muitas coisas das quais discordo.
Você falou há pouco dessas pessoas que estão com você, da responsabilidade que tem. Em Bang há um verso que diz “é cada um com a sua cruz”. Em Triunfo, afirma que “Tem mais de mil moleque aí querendo ser eu, imitando o que eu faço, se eu errar, fodeu”. Depois de 10 anos, você consegue identificar qual é a sua cruz, missão, no Rap e na vida?
Talvez minha cruz seja a liberdade. Tenho um bagulho selvagem. Livre e selvagem, e não estou contando com a compreensão dos outros. No momento que precisávamos romper com a tradição, rompemos, sem medo de ser feliz ou triste. Fazíamos um tipo de música que o movimento do qual éramos parte não incentivava. Pelo contrário, debochavam, chamando de “rap alternativo”, “mochilinha”, “rap de playboy”. “Rap alternativo” era o mais respeitoso… É louco quando esse “alternativo” vira a via principal.
Não chamo a liberdade de cruz por ser ruim, mas a atmosfera do nosso país faz com que a liberdade seja uma parada amaldiçoada quando um preto é livre. Quando você é preto, precisa cumprir com alguns requisitos básicos para ser interpretado como ser humano. As pessoas têm um estereótipo, e se você quebra isso, elas se julgam no direito de colocar o dedo na sua cara. Na primeira mixtape, na música Orra, eu digo: “os que não querem dinheiro é porque nunca viu a barriga roncar mais alto do que o eu te amo. Se alguém vai ganhar grana com essa porra, então, que seja eu”. Na segunda mixtape, eu falo: “agora nóis tem carro, casa, comida e vai cantar que não dá pra vencer na vida?”. A vida inteira estamos cantando sobre ascensão, quebrar as barreiras e mostrar como a vitória também pode ser possível. Corta para 2017. Um bando de cabaço do MBL (Movimento Brasil Livre) pega uma foto minha em um evento de gala e coloca: “usa um terno de R$ 15 mil e isso é uma grande contradição no discurso dele”. No imaginário dessas e de várias pessoas que corroboram com essa palhaçada, o lugar do preto está definido. Eles nunca se incomodam ao ver um preto na calçada, jogado no lixo, andando pelado, louco na rua ou amontoado em cadeia. Mas quando vê um preto ganhando troféu de “Homem do ano”, com um terno foda, nesse momento consigo ler claramente que a liberdade ofende. Quando damos um passo rumo ao SP Fashion Week, com pretos em toda cadeia de produção, da costureira da Vila Brasilândia a modelo que desfilou, move toda estrutura, e no momento que colocamos esses pretos vivos na capa de todos os jornais do Brasil, as pessoas falam que estamos cobrando caro nas roupas da Laboratório Fantasma… É gente que não faz a menor ideia do que é a nossa história, do que nós falamos, da cadeia que movemos. Na cabeça delas, nosso destino é ser miserável. Não temos o direito de cobrar o que achamos que nosso trabalho vale. Mas aí eu me apego à minha liberdade. Eu quero é que se foda.
Você demonstra não se importar muito com os outros e possui clareza ao analisar sua trajetória e o que está por vir. Em “Avuá”, há uma frase que diz “sem maturidade não se vê beleza”. Essa visão faz parte desse amadurecimento?
Claro, mano. Você precisa crescer para compreender a beleza de tudo que é grandioso. A beleza da grandeza é tipo um espelho. Gente pequena não consegue compreender o que é imenso. Isso é uma parada simples. Quando eu era menor, tinha sensibilidade para isso, mas não tinha espaço. A partir do momento que você cresce, você faz escolhas. Há a opção do senso comum, que vai amaldiçoar qualquer movimento que você não entenda. Mas você pode tentar fazer uma análise mais complexa de todas as coisas e eu fui por esse caminho. É preciso entregar coisas grandiosas, bonitas, para pessoas grandiosas.
Caetano Veloso, que participa do seu DVD, diz em uma música: “vejo uma trilha clara pro meu Brasil, apesar da dor. Vertigem visionária que não carece de seguidor”, em uma espécie de projeto de Brasil. Você, em Boa Esperança, também propõe um modelo, ao dizer que “violência se adapta/um dia ela volta pra vocês” e “aguarde cenas do próximo episódio/ Cês diz que nosso pau é grande/ espera até ver nosso ódio”. É possível identificar um projeto de país nas suas letras?
As pessoas fazem essa análise, mas eu não penso muito nisso. Da maneira política, não. A minha música é 100% emocional, tanto que existem momentos que vou colocá-la sob a luz da razão e achar coisas bem loucas, às vezes meio espirituais, de incorporar mesmo. Me sinto como uma ferramenta, porque é muito coração. Se você perceber a maneira como a minha música foi evoluindo, hoje ela é muito mais coração. Na primeira mixtape, me esforçava para racionalizar o sentimento, precisava colocar aquela paixão em palavras de uma maneira cerebral. A música começou a ser muito cerebral e eu comecei a ficar com preguiça dela, porque a vida é mais do que entender as coisas. Pelo ambiente que vivo, a pessoa que sou, as coisas que busco, me preocupo com o tom crítico das músicas, mas não é algo que aparece conscientemente. O que acontece é que o meu ponto de vista é o mesmo de muitas pessoas e isso não significa que exista uma legião seguindo tudo que o Emicida diz. Mas falta essa expectativa no poder público. A nossa frustração vem de não se ver representado nas instâncias de poder e a música fala disso. Violência gera violência e ponto final. Se o Estado é violento, o povo vai ser violento. Como construir uma ponte onde o afeto circule e a gente consiga construir uma sociedade melhor é uma resposta complexa pra caralho em um país como o Brasil, que é um barril de pólvora. O que minha música bate é: enquanto tiver um grupo de cara branco em volta da mesa, vocês estarão indo no caminho oposto ao da solução.
Recentemente você disse que é preciso “distribuir sanidade e bom senso. Não dá pra brincar de incendiário nesse momento”. É possível discutir questões históricas e estruturais do Brasil, como o racismo, a desigualdade social, nessas bases, da sanidade e do bom senso? Não caímos na conciliação de classes?
Mas aí você coloca o bom senso como algo que faz uma aliança e não falamos mais nesse assunto. Quando falo sobre bom senso e sanidade, é sobre se informar e evoluir para que a gente possa discutir acerca desses pontos desconfortáveis. Acho que precisamos de bom senso e sanidade mesmo, porque no momento que vivemos, com rede social, a forma como o digital alterou a maneira de nos comunicarmos, fora dele inclusive, os anseios, o conceito de privacidade, o medo de ser exposto por causa de erro ou um acerto, tudo foi revolucionado. Isso canibalizou a nossa capacidade de colocar o bom senso como a tônica das coisas. Vivemos em um ambiente digital onde qualquer um que sugira a moderação é chamado de corrupto. Concordo quando você diz que as nossas relações foram construídas com base na escravidão. Mas como a gente sobe um degrau? Como dar um passo a frente? É claro que o Emicida que está falando agora dormiu em uma cama confortável, tem uma internet rápida, comida quente e vai de carro pra casa. É muito mas fácil, desse lugar de fala, dizer que a gente a precisa de calma e bom senso. Quem está com a corda no pescoço não pensa do mesmo jeito. Quando você está com a corda no pescoço, e eu já estive nessa posição, o desejo é ver tudo pegar fogo. A coisa já está ruim para você, foda-se se explodir para os outros. Se sua vida não tem valor, por que valorizar a do outro? O Brasil precisa pensar em quem está na beirada. Quanto mais pessoas estiverem caindo do lado de lá, mais arriscada é a vida de quem está aqui.
Você falou há pouco sobre arte, e gostaria de saber como você conheceu a obra do Pablo Neruda, um escritor que não é conhecido do grande público…
Eu odiava literatura na escola. Via aquilo como coisa de morto, também porque é assim que a poesia chega pra gente. Você acha que um dos requisitos para ser poeta é estar morto. Quem me mostrou que a poesia é coisa de gente viva foi o Sérgio Vaz. Sempre andei por vários terminais de ônibus, e nas bancas de revista onde eu buscava os quadrinhos, tinha os livros de bolso. Foi aí que eu descobri o Neruda. O livro custava R$ 9,00 e um determinado dia eu tinha esse dinheiro. A partir daí comecei a identificar e conhecer outros tipos de texto, a entender como o negócio pode ser vasto. O que eu falei sobre a minha poesia ser 100% emocional… Poetas como Neruda e Mario Quintana me trouxeram isso: olhar para o texto, tirar uma palavra, perder um pouco do sentido, mas manter a emoção. Eles foram cirúrgicos e é para onde eu quero seguir. Me preocupa esse negócio de que a poesia precisa ser óbvia pra caralho. Acho perigosíssimo que a nossa música tenha que virar uma campanha.
Isso tem a ver com o fato de você explicar algumas das suas músicas em seu site? Há um desejo de deixar suas canções mais densas, com mais camadas, algumas imperceptíveis?
Não costumo falar muito sobre isso, mas nos anos 1990 todo mundo tinha o “gato” da NET. Telecine, Warner e os outros canais. Sabe o que era foda: os programas da Warner eram legendados. Parece que não tem nada a ver com a forma como o Emicida compõe a música dele, mas na minha cabeça tem faz sentido. O fato de ter um canal com programas legendados fez eu ler mais e mais rápido, porque a legenda vem no tempo da fala. Pula para 2018, onde as pessoas buscam mais informação. O canal da Warner, porém, é dublado. Esse abandono que a gente fez da leitura é perigosíssimo, inclusive para mim. O que eu estou fazendo quando lanço o “Decodificando”(programa que explica as músicas do Emicida)? Semeando, mostrando que as coisas são complexas e que elas não podem ser absorvidas pela camada superficial. Na linha evolutiva da poesia que eu crio quero ter o direito de fazer coisas complexas. Para oferecer complexidade no século XXI, preciso que a mente do público esteja aberta para receber isso. O que sugerimos no Decodificando é: “mano, olha as coisas mais de uma vez, por mais de um prisma, porque às vezes ela é divertida nessa instância, informativa nessa outra, poética aqui…”. Uma mina loira em Alphaville recebe a música de um jeito, o catador de lixo de outro jeito, e nenhuma dessas visões é menos verdadeira do que a outra. Quando decodifico uma rima é para dizer que tenho o direito a essa complexidade e mostrar para a molecada: leia, estude. Os meus ídolos compartilharam referências comigo. Foi do caralho ouvir na obra do Racionais nome de escritor, ativista, pra depois procurar entender o que esses caras falavam. Fico triste nesse momento porque a produção da música pop tem limitado tudo em um espectro cada vez menor, no qual você precisa de um gancho. Sou um artista que necessita de um espectro maior para criar. Não que eu não possa fazer isso ou que a música não possa ser isso também, mas é prejudicial para a minha arte e criatividade. A música para o entretenimento vai existir e é legitimo, só que eu, enquanto artista, gosto de jogar no hard, tá ligado? Coloco o bagulho complexo mesmo e espero que as pessoas cheguem aqui (coloca a mão acima da cabeça), e elas chegam. É um negócio louco, porque a gravadora não entende, a indústria não entende. A gente lança uma música e os caras ligam aqui perguntando se é possível mudar a letra, editar, cortar um pedaço. Eu falo “não dá, mano. Você vai comprar o quadro da Monalisa e tirar uma parte porque ele não cabe na sala da sua casa?”.
O Mano Brown sofreu com críticas ao lançar Boogie Naipe, o Criolo passou pelo mesmo processo com Convoque seu Buda. Por que essa ideia, inclusive do público, de que o Rap não pode ser sofisticado, envolvendo outros temas, referências?
Acho que foi o Gilberto Gil que falou isso: o povo quer inclusive o que ele não sabe. Penso que conseguimos sugerir algumas coisas. Já que possuímos calma para pensar e sabedoria para compartilhar, o que temos que fazer é arte. A arte é viva. Eu seria um grande mentiroso se, nesse momento, vivendo onde vivo, com as coisas que tenho, chegasse aqui e fingisse que sou só um menininho pobre, que passo fome, que a única coisa que me faz tocar a plateia é a miséria que passei há 15 anos. Se essa for a única coisa que consigo fazer, não estou alimentando a arte, mas o estereótipo sobre os pretos que as pessoas têm no meu país.
Acho que tem uma mistura de muita coisa nessa pergunta. Há um estereótipo em torno do preto, do favelado. Quando você junta os dois, fica pior. Tem o estereótipo do Rap, também. O Milton Santos (geógrafo) falava: o Brasil tem uma dificuldade de lidar com a intelectualidade. A gente tem um país que não é educado para a discussão, principalmente quando você discorda do outro. A inteligência de verdade se estabelece em uma outra camada, quando você discorda radicalmente do bagulho e busca compreender como aquela pessoa chegou naquela linha de raciocínio. Por exemplo: quando alguém discorda do Bolsa Família, ela não tem que atacar o programa, mas entender que tipo de realidade a pessoa vive para que seja necessário R$ 77 reiais por mês. Se você está em Pinheiros, no coração do Sudeste, com todo respeito, você não tem o direito de dizer se alguém pode ou não receber R$ 70 reais por mês para ajudar a salvar uma vida. Poderia ter salvo o mês da minha mãe várias vezes, que tinha quatro filhos para criar. Com a gente é assim: já vi militante preto reduzindo isso aqui (Laboratório Fantasma), dizendo que é só dinheiro. Os boy falar isso, foda-se. Agora, cara que luta por igualdade, que fala que preto tem que ter as coisas… Isso aqui não é só dinheiro. Dinheiro é a camada mais superficial desse negócio. Nós somos um grupo de amigos que olhou para um negócio impossível e fez o barato acontecer. As pessoas saem daqui acreditando que podem mudar o mundo, mano. A Laboratório Fantasma é um símbolo de fé, de força. O negócio nasceu dentro da favela, preta e fazemos questão de falar isso. Não que eu queira ficar dizendo que somos fodas, não é isso. Mas a origem da parada é importante, porque serve como uma referencia que nós não tivemos. O moleque que nasceu há dez anos vai ver o Emicida na Forbes. Ele vai ter um outro conceito do que é ser empresário e é sobre isso que estamos falando. A menina de 4 anos que se achava feia, que não podia ser modelo, vai olhar para o SP Fashion Week e perceber que tem espaço para ela. Eles vão poder contar a própria história. Atualmente, estamos organizados em bolhas: a bolha dos direitistas, dos esquerdistas, dos ativistas, dos militantes disso, daquilo, e a Laboratório Fantasma criou uma bolha de possibilidades.
(Nesse momento, Emicida atende à ligação da filha Estela, de 8 anos).
Aproveitando a ligação, queria falar da sua filha. Ela nasce quando você estava com 24 anos, na época do “Emicidio”. A chegada dela interferiu nos seus processos como artista?
Pra caralho… Sabe qual a impressão que eu tenho: que canto melhor depois que ela nasceu. Quando você está ninando o bebê não pode cantar alto, e eu tinha mania de gritar nas músicas. Passei a compor baixinho, cochichando, com a música nascendo com outro tipo de voz, que os cantores chamam de “voz de peito”. A minha filha mudou completamente a minha visão de mundo. A Estela foi a primeira pessoa que eu vi salvar um mundo. Eu era incendiário: “foda-se, deixa tremer, tô nem ligando. Não é problema meu, quando eu cheguei já estava assim”. Depois de ser pai, virou tudo ao contrário. Você acha que vai ensinar, mas aprende. A perspectiva das crianças é muito limpa. Esses dias fomos à livraria e ela viu um urso de pelúcia do E.T. A única diferença que ela viu entra ela e ele são os quatro dedos que ele tem. Aí eu me pergunto: em que momento a gente vira esses imbecis? Em que momento ficamos tão refém da diferença?
Ainda sobre a sua filha, fiz essa pergunta ao Martinho da Vila, em entrevista ao Le Monde Diplomatique que está na edição desse mês, e gostaria de repeti-la a você. Existe algum tipo de aflição sobre o mundo que fica para ela no futuro e se já houve alguma reflexão nesse sentido?
Já, claro. Mas tem um cara aqui, o Tiago, que fala uma parada muito foda sobre a Laboratório Fantasma. Salvar o mundo é uma tarefa hercúlea, gigante. Não sei qual o tamanho do esforço para salvar a todos. Mas existe “salvar os mundos”, e, às vezes, você salva o mundo de uma pessoa. Salvando um mundo ali, outro acolá, você muda a atmosfera das coisas. Me preocupo com a minha filha, meus sobrinhos, afilhados, amigos. Há essa preocupação com o Brasil, com o vazio das coisas, mas a gente se esforça para salvar o dia de uma pessoa. Podem falar o que for, mas acho que temos sido bem-sucedidos nisso. As pessoas têm o hábito de achar que otimismo é uma coisa vazia, aérea. Para mim, não. Sou a última pessoa que pode duvidar da força da palavra. Se você olhar os cartazes (Emicida mostra os pôsteres na sala onde a entrevista acontece), tem um com o primeiro show que nós organizamos. Não era nem Laboratório Fantasma, era “Na Humilde Crew”. O Felipe Vassão (produtor e amigo) me encontrou nessa época e disse: “sabia que você já tem mais de 1 milhão de views no Youtube?”. Virei pra ele e respondi: “grande bosta. Se cada um desses filhos da puta tivessem me dado um real não estaria aqui”. Você entende? Eu não fazia a menor ideia, mano. Só tinha a palavra e a fé.
Sensacionalismo faz notícia ruim vender, se espalhar, todo mundo tende a acreditar que o mundo está ruim, e de fato está ruim pra caralho mesmo. Mas as pessoas que vêm até nós e compartilham suas histórias de conquistas nos últimos dez anos, depois de ver a gente fazendo, me faz olhar para o otimismo como uma parada muito bonita. Não me dou o direito de ser pessimista ou não brilhar. É sendo foda que incentivamos outras pessoas a serem fodas também.
O que resta para nós: a forca ou o amor?
Obrigado, Darcy. Fiz essa música pouco antes da Copa do Mundo de 2014. Todas as marcas do planeta ligando aqui e falando “Emicida, você não quer fazer uma música sobre a Copa, da energia do brasileiro…”, e eu sempre respondia que não. Já estava com outra canção parecida, uma parceria com o Mc Guime, e eu não gosto de repetir fórmula. Se você olhar na minha discografia, vai perceber que em cada disco sou uma pessoa diferente. Espero que aquele moleque que fez “Pra quem já mordeu um cachorro por comida, até que eu cheguei longe (2009)” esteja muito bem onde ele estiver no universo, porque eu não sou mais ele. O cara que faz “Emicidio (2010)”, é um pouco mais reflexivo, mas ainda é doidão, e eu também espero que ele esteja bem. O Emicida de agora é um cara completamente diferente desses rolês. Quando eu fiz Obrigado, Darcy quis acertar nesse sentimento melancólico, preto, do banzo. Sentir saudade de uma coisa que o seu racional nem lembra o que é, e nós temos essa porra.
Como a viagem para a África aparece nessas mudanças que ocorreram ao longo da sua carreira? Foi um divisor de águas?
Logicamente. A viagem para a África foi um divisor de águas não só na minha carreira, mas na minha vida. Você já foi para a África?
Ainda não.
Vai zoar sua cabeça também, você é preto, mano. Você tem um monte de África na sua cabeça e mesmo que você não racionalize isso, o que te faz gostar de si são essas várias coisas que pulverizaram na sua existência. Coisas que as pessoas acham que é um estereótipo vazio, mas que têm seu valor. A luta para que os turbantes se tornem mais populares, por exemplo. Isso não diminui a nossa história, muito pelo contrário, são coisas que nos conectam com um lugar que foi arrancado da gente. Nós pegamos tudo isso, o tererê, a capoeira, o cerne do samba, e construímos essa África baseada nos nossos afetos, porque queríamos gostar de nós. Não tinha um lugar onde a gente se via.
De repente, você vai para a África e encontra a África real, que é muito diferente do que idealizou. Esse vínculo que foi rompido de uma maneira brusca gerou esse banzo, essa saudade de um negócio que não sabemos o que é. A minha teoria é que nós, afrodescendentes, pretos, o nome que você quiser dar, nascidos no continente americano, seremos eternamente um “não-lugar”, porque esse lugar que a gente nasceu não é nosso. Não me sinto em casa várias vezes. E lá (África) também não é a nossa casa, porque você não está imerso na cultura. O que a gente faz? Pega essa África que construímos e vai se conectando, meio itinerante, criando um país com os afetos que têm.
Conheci pessoas com um senso de humanidade incrível na África e ri muito. A gente tem uma organização que é muito diferente. Quando fomos pra lá, na ânsia de fazer tudo certo, levamos um calhamaço de contratos, para registrar direitos de imagem. Chegamos em um mano, bem pretinho, das antigas. Ele olhou o papel e perguntou “o que é isso?”. O Fióti explicou que era um contrato. O mano respondeu: “vocês estão andando muito com os brancos. Aqui a gente acredita na palavra”. Rimos pra caralho. Nós erramos porque nos referimos ao modo como vivemos como sendo o único modelo de sociedade possível. Existiam outras maneiras de ver o mundo e elas foram esmagadas pelo colonialismo. No fim das contas, a minha música fala sobre isso: lavar seus olhos e entender que existem várias perspectivas.
*Guilherme Henrique é jornalista.