A medicalização da experiência humana
Variação do humor ou momentos de tristeza e tensão são sempre sinais de doença? Por muito tempo a psiquiatria europeia soube avaliar a gravidade e definir uma prescrição apropriada, da droga ao tratamento psicanalítico. A indústria farmacêutica incita, contudo, à transformação de dificuldades normais em patologias, às quais ela oferece uma solução
Diante da realidade do “sofrimento psíquico” – uma das mais importantes patologias modernas –, entrou em ação, há algumas décadas, uma maquinaria diagnóstica nunca antes vista, cujo objetivo é explorar esse enorme mercado potencial. Para isso, foi necessário primeiro substituir a grande psiquiatria europeia, que, graças a observações clínicas múltiplas e coerentes, reunidas durante os dois últimos séculos, havia repertoriado os sintomas, classificando-os em grandes categorias: neuroses, psicoses e perversões. Munido desses conhecimentos, o especialista podia dar um diagnóstico e distinguir os casos graves dos causados por circunstâncias passageiras. Ele separava então o que exigia o uso de medicamentos daquilo que poderia ser solucionado melhor com a conversa.
A psiquiatria clássica e a psicanálise haviam chegado às mesmas conclusões. Essas duas abordagens tão distintas se auxiliavam e se enriqueciam mutuamente. O mercado de medicamentos ainda guardava proporções razoáveis, o que deve ter dado o que pensar à “Big Pharma” – apelido conveniente para o enorme poder dos laboratórios farmacêuticos, que fazem uma corte assídua tanto aos clínicos gerais quanto às mais altas instâncias do Estado e dos serviços de saúde, com os quais sabem se mostrar bem generosos (oferecendo, por exemplo, cruzeiros de “formação” aos jovens psiquiatras).
A jornada de conquista desse grande mercado começou nos Estados Unidos, com a Associação dos Psiquiatras Americanos (APA) e seu primeiro manual de diagnóstico e estatística dos problemas mentais, o Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (Manual de Diagnóstico e Estatística dos Transtornos Mentais, ou DSM), em 1952.1 Em 1994, a Organização Mundial da Saúde (OMS) adotou no capítulo “Psiquiatria” da Classificação Internacional das Doenças as nomenclaturas do DSM-IV, o que levou vários países a fazer o mesmo. Seguiu-se uma inflação de patologias repertoriadas. Havia sessenta em 1952, mas 410 em 1994, no DSM-IV.
Extinguir o vulcão
Negócio é negócio. O método DSM tem de ser simples: não se cogita buscar a causa dos sintomas nem saber a que estrutura psíquica eles correspondem. Basta encontrar o caso que se conforme ao comportamento visível do paciente. Essa prática esquece que um sintoma não é jamais uma causa. A conversa com o psiquiatra mal pode ser considerada necessária, pois serve apenas para repertoriar os “transtornos” superficiais: “transtornos” do comportamento, da alimentação, do sono… enfim, “transtornos” de todos os tipos, até a recente invenção dos “transtornos” pós-atentados. A cada um corresponde – maravilha! – um medicamento. Foi nessas águas perturbadas que naufragaram os antigos diagnósticos. O lobby da Big Pharma conquistou também as faculdades de Medicina, onde só se ensina o DSM. Mais: os próprios laboratórios transmitem os ensinamentos – numerosos conflitos de interesses foram denunciados. A grande cultura psiquiátrica acabou esquecida, de sorte que, diante de um paciente, o novo clínico made in DSM não sabe mais se está lidando com uma psicose, uma neurose ou uma perversão. Ele não distingue um problema grave de um estado circunstancial. E, na dúvida, receita psicotrópicos…
“Depressão”, por exemplo, é palavra que faz parte do vocabulário corrente. O blues (tristeza) pode dominar qualquer pessoa, a qualquer momento da vida. Mas por que dar esse sentido ao conceito de “depressão”? Ela foi elevada à dignidade de uma doença à parte. Contudo, a tristeza pode ser um sintoma tanto de melancolia – acarretando risco elevado de suicídio – quanto de um estado passageiro e mesmo normal, como o luto. Confúcio recomendava ao filho um luto de três anos após a morte do pai; hoje, se você continua triste depois de quinze dias, está doente. Vão lhe dar antidepressivos, que podem temporariamente aliviar o problema, mas não o resolverão. Entretanto, como não convém interromper o tratamento de repente, a prescrição dura às vezes a vida inteira.
O marketing do DSM é simples: basta inventar, a intervalos regulares, novos transtornos que misturem a patologia e o existencial. Isso é muito fácil, já que a existência se apoia naquilo que nos faz ir em frente. Aquilo que não funciona – em nossa vida – nos dá energia para evitá-lo. É necessário chorar antes de rir. Estamos à beira de um vulcão: extingui-lo com medicamentos que não passam de drogas é extinguir uma vida, porquanto viver é correr riscos o tempo todo. “O patológico só tem sentido para o improdutivo”, dizia o escritor Stefan Zweig.2 O nome de alguns medicamentos parece corroborar essa ideia, mas em uma acepção no mínimo discutível: em certas formas agudas de psicose, os psicotrópicos são imprescindíveis para acalmar as alucinações e os delírios. Tais medicamentos são chamados de antipsicóticos. Na cabeça do fabricante, essas moléculas estariam então destinadas a acabar de vez com a pessoa que sofre de psicose? O fabricante esquece uma coisa: o “paciente” é sempre maior que seu padecimento. Esses remédios deviam chamar-se de preferência “pró-psicóticos” ou “filopsicóticos”, pois um psicótico libertado de seus delírios é frequentemente um grande inventor (o matemático Georg Cantor), um grande poeta (Friedrich Hölderlin), um grande pintor (Vincent van Gogh) ou um grande filósofo (Jean-Jacques Rousseau). Mas a Big Pharma pouco se importa com a liberdade reencontrada pelo paciente, que no fim poria em causa sua empresa. Ela prefere o ópio. E seus vapores se instalam com facilidade, porque o “transtorno” é associado às manifestações efetivas do sofrimento psíquico.
Não bastasse isso, mais vale que o número de “transtornos” cresça e se multiplique. Entre os mais recentes, o “transtorno bipolar” se beneficiou de uma ampla promoção midiática, embora apenas patologize a doença universal do desejo: este se atira, rindo, para o objeto de seu sonho, mas, quando o apanha, o sonho está mais longe ainda e o riso se transforma em lágrimas. Enquanto a vida segue seu curso, nós todos somos normalmente “bipolares”, hoje alegres, amanhã tristes. Acontece, porém, que nas psicoses melancólicas o objeto de desejo é a própria morte ou a explosão de um surto maníaco. O diagnóstico de “bipolaridade” se torna então criminoso, pois não faz distinção entre o ciclo maníaco-depressivo das psicoses – com o risco de passagem ao ato grave justificando a prescrição de neurolépticos – e a euforia-depressão das neuroses. Essa distinção, riscada dos DSMs, provoca inúmeras situações dramáticas.3
O “transtorno” mais comum e inquietante, pois diz respeito às crianças, que sofrem sem saber o motivo e não podem se queixar, é sem dúvida o “transtorno do déficit de atenção com ou sem hiperatividade” (TDAH). Essas dificuldades da infância vêm sendo enfrentadas há tempos por psiquiatras infantis e psicanalistas, pioneiros na matéria. Mas, como se trata de problemas peculiares a cada criança, eles não ousaram rotulá-los sob um “transtorno” geral. Graças a isso, são hoje acusados de não propor medidas, principalmente pelas associações de pais, algumas delas subvencionadas por laboratórios farmacêuticos (por exemplo, a associação Hypersupers TODA/H France, apoiada pelos laboratórios Mensia, Shire, HAC Pharma e NLS Pharma).
A imprecisão desse pretenso diagnóstico equivale a dizer, por exemplo, que a tosse é uma doença. E o exemplo vem de cima: em 29 de setembro de 2017, houve na Universidade de Nanterre uma conferência em favor do diagnóstico de TDAH sob o patrocínio do presidente francês, Emmanuel Macron, e da ministra da Saúde, Agnès Buzyn. Os psicanalistas inscritos para o colóquio se viram pura e simplesmente impedidos de entrar pelos porteiros. O TDAH não existe nas classificações francesas, seja a Classificação Francesa dos Transtornos da Criança e do Adolescente (CFTMEA), fiel à psiquiatria francesa, ou mesmo a Classificação Internacional das Moléstias (CIM-10), que acolhe as opções do DSM. Elas descrevem apenas os problemas de agitação. E agitação não é doença. Pode ter várias causas (problemas familiares, dificuldades na escola etc.); exige primeiro que as crianças e a família sejam ouvidas, e isso muitas vezes basta para resolver tudo. Com o TDAH, o sintoma se transforma em doença e, mais grave ainda, atribuem-lhe causas “neurodesenvolvimentistas”. Essa afirmação não repousa sobre nenhuma base científica, ao passo que provas não faltam das dificuldades causadas por problemas no seio da família ou na escola…
Jerome Kagan, professor de Harvard, declarou em uma entrevista de 2012: “O TDAH não é uma patologia, mas uma invenção. […] Oitenta por cento dos 5,4 milhões de crianças tratadas com Ritalina nos Estados Unidos não apresentam nenhuma anormalidade metabólica”.4 Na França, Patrick Landman mostrou em seu livro Tous hiperactifs? [Todos hiperativos?] (Albin Michel, 2015) que o TDAH não tem nenhuma causa biológica identificável: seus sintomas não são específicos e não apresentam indicadores biológicos. Nenhuma hipótese neurobiológica foi validada. Leon Eisenberg, inventor da sigla “TDAH”, declarou em 2009, sete meses antes de falecer: “O TDAH é o exemplo típico de uma doença inventada. A predisposição genética para o TDAH é totalmente superestimada”.5 Todavia, com a ajuda do lobby, cerca de 11% das crianças com idade entre 4 e 17 anos (6,4 milhões) receberam o diagnóstico de TDAH desde 2011 nos Estados Unidos, segundo os Centros de Prevenção e Controle das Doenças norte-americanos. Segue-se quase sempre uma prescrição de Ritalina (metilfenidato), que contém moléculas consideradas estupefacientes nas classificações francesas. A prescrição dessa anfetamina em grande escala poderia provocar um escândalo sanitário semelhante aos do Mediator e do Levothyrox. Essas substâncias viciam, e não se exclui – possibilidade ainda em discussão – uma correlação entre as crianças que tomaram Ritalina e os adolescentes que se drogam.
As crianças não são poupadas pelos transtornos da sociedade, que lhes impõe o imperativo do sucesso rápido, da competitividade, da obediência a normas que não se aplicam à sua idade. As recalcitrantes são facilmente consideradas hoje “deficitárias”. É, portanto, inquietante ver surgir em um site do Ministério da Educação Nacional da França uma mensagem endereçada aos professores afirmando, sem provas, que o TDAH é uma “doença neurológica” e fornecendo uma receita detalhada para o estabelecimento de diagnósticos prévios. Os “sinais indicativos” propostos poderiam se aplicar a quase todas as crianças. Sempre a mesma mistura de problemas normais e patologia…
A infância na linha de frente
Há tempos, Michel Foucault pôs em evidência a repressão, notadamente pelos Estados e as religiões, desse “mal-estar na cultura” que é a sexualidade. Hoje, a camisa de força de um patriarcado de direito divino está em via de marginalização. Como a repressão vai se organizar daqui por diante, supondo-se que o termo “sexualidade” deva ser entendido em sentido amplo? A indústria farmacêutica é que pretende tomar as rédeas da ciência. A mensagem é clara: “Não vos inquieteis, ó vós que tendes insônias, momentos de desconsolo, excitação exagerada, ideias suicidas! A culpa não é vossa, é de vossos genes, de vossos hormônios; sofreis de um déficit neurodesenvolvimentista, e nossa farmacopeia vai consertar tudo”. Trata-se de fazer crer que tudo se resume a problemas de neurotransmissores e de mecânica, nos quais o humano não entra. Seria necessário esquecer que as mazelas deliciosas e cotidianas das relações entre homens e mulheres, as questões jamais resolvidas de filhos com pais, as relações de forças angustiantes com a hierarquia e o poder deitam raízes nas profundezas da infância.
Por todos os lados, a infância está na linha de frente, o que torna o caso do TDAH ainda mais “perturbador” que os outros. Em todos os tempos e lugares, a criança é a primeira a ser reprimida, espancada, formatada. Quando um professor da velha escola puxava as orelhas de um aluno agitado, isso era – por mais chocante que pareça – quase mais humano do que exigir-lhe um diagnóstico de deficiência. Preservava-se uma relação pessoal, que a pseudociência elimina. Pela primeira vez na história, é em nome de uma pretensa ciência que as crianças são “espancadas”. Todos os anos o Papai Noel, esse mito de múltiplas estratificações (como bem mostrou o etnólogo Claude Lévi-Strauss),6 traz para as crianças presentes a fim de consolá-las. Hoje, a Big Pharma pretende vestir o capuz do Papai Noel. Mas não nos esqueceremos de que, sob a roupa vermelha, esconde-se uma sombra muito parecida com o Açougueiro da Festa de São Nicolau.7
*Gérard Pommier é médico psiquiatra, psicanalista, professor universitário emérito e diretor de pesquisa na Universidade Paris 7. Autor, principalmente, de Comment les neurosciences démontrent la psychanalyse [Como as neurociências dão suporte à psicanálise], Flammarion, Paris, 2010, e de Féminin, révolution sans fin [Feminino, revolução sem fim], Pauvert, Paris, 2016.