Meio século de Novo Aeon ou Raul Seixas na Filosofia
Com lançamento decepcionante, disco de 1975 grita a plenos pulmões o projeto político e estético do cantor. E até hoje causa estranheza
A expectativa, resultado de um triênio de promessas e antecipações, refluiu quando Novo Aeon chegou às gôndolas. O espetáculo visual de um rockstar brasileiro havia contribuído para a ansiedade com a próxima Era: ora vestido como um mago em cerimônia pagã; ora uniformizado como os guerrilheiros em Sierra Maestra, Raul Seixas alimentava a projeção de uma sociedade diferente desde a estreia com o disco Krig-Ha, Bandolo! em 1973. Na verdade, a espera datava de antes. No instante que os primeiros singles começaram a aparecer, houve um estranho sentimento de ineditismo.

Crédito: Reprodução | Contracapa Novo Aeon
Outro exemplo é a imagem do sofrimento de Jesus Cristo na canção homônima ao álbum. Cada verso levava a crer que o ápice havia sido atingido. A fase mais aguda daquela investida musical ressoava até os ouvidos do público. O calendário de divulgação de Raul Seixas não se limitava a pequenos núcleos intelectuais ou ao circuito universitário. Essas canções foram executadas em programas de auditório e em estações populares de rádio, além de terem sido repercutidas em jornais e revistas de grande circulação. Os resultados comerciais, entretanto, decepcionaram.
Depois de uma trajetória ascendente, a carreira do cantor e compositor se deparou com um impasse: a despeito de Novo Aeon ser a consumação de toda a radicalidade que havia sido anteriormente anunciada, as vendas nem se equipararam aos lançamentos que o precederam. Seria apenas o primeiro dos vários dilemas com que Raul Seixas lidaria até sua morte, em 1989. Mas é um erro enxergar paradoxos no estilo desse artista, porque sempre parecem se conciliar ali traços antagônicos, antitéticos. O porta-voz da Sociedade Alternativa é repleto de ambiguidades.
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A resposta furibunda não foi gratuita – parecia uma ofensa para a geração de intérpretes compositores a alegação feita por Belchior, em verso, de que era somente um cantor na letra de Apenas um Rapaz Latino-Americano. A função daqueles artistas, inspirados a título de exemplo por Bob Dylan, era mobilizar multidões com ideias que combinavam proselitismo político e elaboração de conceitos. Derivam disso os ataques ao humilde rival em Eu Também Vou Reclamar, registrada em Há 10 mil Anos Atrás, álbum imediatamente posterior a Novo Aeon.
A associação automática dos primeiros álbuns lançados é com Aleister Crowley. É natural. O escritor britânico, rotulado como ocultista, foi mencionado, sem rodeios, justamente em Sociedade Alternativa. Quando Ozzy Osbourne canta Mr. Crowley em seu disco solo de estreia, a referência é ao mesmo autor – sinal de que Raul Seixas estava conectado à paisagem do rock’n roll internacional, inclusive em suas vertentes mais pesadas. Outros músicos britânicos, como John Lennon e Jimmy Page, igualmente se dedicaram às leituras de seus escritos.
Acontece que, além de um autor enigmático e cercado de amedrontamento, Crowley foi um decisivo mediador – encarregado de levar rockstars a outros horizontes filosóficos. As experimentações com a linguagem do século XIX chegam a cantores de densa popularidade no auge da radiodifusão por intermédio dessa excêntrica ponte: o pensamento alemão, em especial o de Friedrich Nitzsche, é contrabandeado para a canção popular por essas vias. Conhecedor desse cenário complexo e instigante, Raul Seixas não se contentaria em ser um mero portador de microfone.
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Morte, loucura e dor – temas constantes para uma leva torta de cantores que despontaram no princípio dos anos 1970. O estranhamento causado pelos artistas é tamanho, talvez, porque não seja possível localizá-los em uma cena, restrita a bairro, cidade ou estado. De certa forma, todos se encontraram no Rio de Janeiro: menos por alguma capacidade inata de agregar a criatividades no município do que pela presença maciça da indústria do disco, à época, nas imediações da Baía de Guanabara. Esses músicos receberam a pecha de malditos, ainda que tenha se esforçado para abandonar essa associação.
Décadas depois, a alcunha ainda recai por exemplo sobre Luiz Melodia, Jards Macalé, Jorge Mautner do Rio de Janeiro; Edy Star, da Bahia; e Sérgio Sampaio, do Espírito Santo. Embora tenha mantido fortes relações com todos – compôs o coletivo musical Sociedade da Grã-Ordem Kavernista com os dois últimos, participou do disco-manifesto O Banquete dos Mendigos com os demais –, Raul Seixas dificilmente é classificado da mesma forma. A reboque das provocações religiosas, políticas e culturais, o autor de Novo Aeon é, vejam vocês, o mais bendito dos malditos.
A influência do rock’n roll é sensível nesse conjunto de artistas, mas não o suficiente para agrupá-los. A sonoridade e os instrumentos de predileção de cada um também promovem mais afastamentos do que aproximações – o violino de Mautner leva isso ao paroxismo. O comportamento arredio diante das plateias, propostas inclassificáveis à margem dos gêneros nas prateleiras das lojas de discos e relações conturbadas com executivos foram tendências entre os malditos. Existem, contudo, dimensões históricas que facilitaram o aparecimento de novas sensibilidades musicais àquela altura.
Partiram de dois eixos as maldições sonoras: dos escombros da ofensiva pela arte nacional ao redor do Centro Popular de Cultura da UNE e às margens das gravadoras com seus músicos de estúdio. Se o golpe contra João Goulart devassou os movimentos sociais e estrangulou a busca pelas origens estéticas brasileiras, o milagre econômico na ditadura civil-militar fez com que a indústria do disco enchesse os bolsos – e rachaduras nas empresas multinacionais ou em conglomerados do país possibilitaram entrecruzamentos. A partir dessas trocas, os malditos entraram, pelo rádio ou pela televisão, no ar.
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Novo Aeon é um deslocado manifesto estilístico. Sugere um convite à transgressão no interior da indústria fonográfica porque o nome de Raul Seixas constava na lista de estrelas da gravadora com mais prestígio cultural do período, a Philips. Ao apelar para um rock’n roll popular, cheio de referências à canção romântica e sons tradicionais brasileiros, caminha na contramão do enquadramento mais sóbrio e imponente de um Tom Jobim. Destoa da grandiloquência das grandes cantoras do período, como Maria Bethânia, Gal Costa ou Elis Regina. É histriônico e histérico. Cativante.
Das palavras cantadas aos maneirismos no palco, Novo Aeon encontrava plateias em desconforto – fosse pela dificuldade de situar o disco na paleta de cores da música brasileira, fosse pela complicada tarefa de enxergá-lo em algum canto do espectro político da época. Os trejeitos do cantor não eram mais inéditos, mas pareciam ter ido longe demais. Na prática, era levada a cabo uma investida audaz, que conciliava o comum e o individual. A vontade não era entendida como um problema menor ou íntimo, mas fundamentava a Sociedade Alternativa.
Ou uma alternativa à sociedade: o disco de 1975 conclui a sequência composta também por Krig-Ha, Bandolo! e Gita – todos com um selo na capa que remete à plataforma política encabeçada por Raul Seixas, mas igualmente idealizada pelo então letrista Paulo Coelho e pela artista visual Adalgisa Rios. No lançamento seguinte, Há 10 Mil Anos Atrás de 1976, não há mais essa rubrica na imagem que dá cara ao álbum. Qualquer discussão estética que trate da inflexão de modo abstrato vai desviar das causas centrais que levaram a essa ruptura.
Porque a caçada às oposições por parte da repressão no Brasil, na primeira metade da década de 1970, foi definitiva para a dissolução do mote da Sociedade Alternativa. Tanto o cantor quanto seus aliados foram monitorados pela ditadura civil-militar e não é um exagero creditar às suspeitas de traição e os rompimentos nas relações pessoais dos responsáveis pela concepção daquela proposta arrojada até em um período de luta armada contra o autoritarismo. É nesse contexto que Novo Aeon chega ao público. E o descompasso das reações ao disco reforça a aflição que paira sobre seus versos.
Helcio Herbert Neto é o autor do livro Palavras em Jogo (2024). Doutor em História Comparada (UFRJ), é formado em Filosofia (UERJ) e Jornalismo (UFRJ). Atualmente, desenvolve pesquisas sobre cultura popular em âmbito do pós-doutorado na UFF, mesma instituição pela qual concluiu o mestrado em Comunicação.