Escute, meu chapa: Torquato Neto indica que no futebol cabe tudo

ENTREMENTES: FUTEBOL, POLÍTICA E CULTURA POPULAR

Escute, meu chapa: Torquato Neto indica que no futebol cabe tudo

por Helcio Herbert Neto
10 de março de 2023
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Experiência do compositor na cobertura esportiva mostra a abrangência da modalidade na cultura popular. Ano de 2023 celebra diferentes fases da poética do autor piauiense. Confira artigo de abertura da série especial Entrementes: futebol, política e cultura popular

Um poeta não se faz com versos – alerta Torquato Neto. A advertência do compositor fratura a linguagem, mas não apenas a literatura. A experiência do autor expõe também que a cobertura esportiva estranhamente não se limita aos campeonatos, jogos, atletas. As tradições orais se sobrepõem à cultura livresca e o futebol é crivado de enfrentamentos sociais, culturais e políticos. Ainda mais para o Brasil, país em que o Terceiro Mundo pede a bênção e vai dormir.

Torquato Neto não foi jogador profissional. É uma busca no deserto a procura por referências ao esporte nas suas composições, a despeito de entre os seus colegas tropicalistas o tema não ser incomum. Em sentido mais amplo, as conexões com o movimento liderado por Caetano Veloso e Gilberto Gil não são estáveis: ao longo da vida, houve aproximações e rupturas. O poeta de Teresina é exemplar para os deslimites do futebol e da cultura popular, relíquias do Brasil.

Em 2023, Tropicália ou Panis et Circenses comemora 55 anos. O compositor figura na capa: é o único não instrumentista a posar com jeito de quem não se espanta para a fotografia do álbum-manifesto. Curiosamente, é um dos mais obscuros personagens da música popular da virada entre os anos 1960 e 1970 – principalmente na comparação com personagens expansivos como Caetano e Gil. Acima de tudo, em 2023 a sua canção mais urgente completa meio século.

Registro da revista Navilouca, um dos lançamentos póstumos de autoria de Torquato Neto (Reprodução)

“Todo dia é dia D” está registrada em disco posterior ao retorno do futuro ministro da Cultura do exílio, Cidade do Salvador. O caráter inadiável de sua poética se manifesta no cinema, na música e até na televisão, com um roteiro sobre as mudanças artísticas da década de 1960 nunca levado ao ar na TV Globo. Não houve publicação de livros em vida: seus fragmentos espalhados foram reunidos em extensos volumes póstumos. Com papel jornal, a verve entrou em circulação em vento que traz recado.

“Geleia geral” deve ser tratada como a carta de interesses para uma renovação artística. A faixa do mesmo vinil coletivo de 1968 expressa a experiência de viver no país de maneira inversa ao ceticismo de “Marginália II”. Na composição, a encarregado de anunciar com esperança a manhã tropical é a imprensa. O Jornal do Brasil, especificamente. A visão sobre as redações não era distanciada – por anos, Torquato Neto foi colaborador de veículos de comunicação.

Foi o Última Hora que publicou “Pessoal intransferível”, coluna que se inicia com o chamado para a mencionada descrição do ambíguo ofício de poeta. No período na publicação, Torquato Neto explicitou em todas as horas do fim uma visão mais ácida e madura. Não era a primeira vez que o compositor desfrutaria de seção própria na imprensa carioca. Entre novidades dos clubes, notícias de estudantes e a opinião de outros colunistas, o nome do autor havia aparecido no Jornal dos Sports.

O veículo de comunicação publicou a coluna Música Popular de 1966 a 1967, intervalo em que a publicidade se interessava pela cultura jovem. Enigmaticamente, em nenhum momento os textos analisavam o comportamento de times, atletas, treinadores ou dirigentes. Nada mais distante dos esquemas táticos. O foco era a transformação das canções, no período no qual os festivais ganhavam força na cidade, no Cristo Redentor. O autor participou ainda do projeto experimental O Sol, idealizado pelo mesmo grupo empresarial.

A relação com Caetano induz à conclusão de que as duas solares menções em “Alegria, alegria” brincavam o nome lançamento editorial do Jornal dos Sports: ora a repartir crimes, espaçonaves e guerrilhas; ora em bancas de revistas – para encher os leitores de alegria e preguiça. Diante de uma cobertura esportiva cada vez mais rica em chavões e expressões distantes da cultura popular, a relação de Torquato Neto com as manifestações artísticas é simbólica na medida do impossível

Somente ao recuperar esses atravessamentos mais inesperados será possível examinar o atual transe do futebol brasileiro, na iminência de formar uma liga e se tornar mais independente da Confederação Brasileira de Futebol (CBF). Ao mesmo tempo rico em cisões e incapaz de propor projetos de longo prazo, o conjunto dos clubes lida igualmente com o impasse perante o bolsonarismo. Parte significativa dos dirigentes demonstrou simpatia pela violência da extrema direita, sombra que pende concreta.

No mandato entre 2018 e 2022, a Presidência da República foi cortejada por representantes de muitas das mais vitoriosas equipes do país. Lidar com a transição de poder, com eventuais investigações e com necessárias punições na retomada desse passado recente exige desenvoltura. A retórica refém de mapas de calor, sensores para o cálculo das distâncias percorridas, percentuais de aproveitamento de passes e chutes não parece habilitada a desafinar o coro dos contentes.

É possível enxergar a ausência de livros em vida como sinônimo de carência. Há, entretanto, alternativa: o fato pode atestar em oposição que Torquato Neto priorizou expressões artísticas mais vívidas, que percorressem diferentes estratos sociais de um Brasil desigual. Com o autor, era dente no dente. Se hoje o analfabetismo funcional é uma realidade, no intervalo do fim dos anos 1960 ao início da década seguinte o fosso era mais profundo.

As ambiguidades de um artista de classe média, na ânsia pela linguagem acessível a um país desequilibrado são evidentes. Seus experimentos estéticos eram acompanhados de posicionamento político: relatos registram que, no dia do golpe de 1964, o piauiense havia dormido na sede da União Nacional dos Estudantes (UNE). Escapou da sanha anticomunista por pouco, nem é bom pensar. O poeta tensionava, assim, as fronteiras da cobertura esportiva ao, extraordinariamente, não falar de futebol.

Por isso a ênfase nos jornais, mais práticos e disponíveis em cada esquina; no cinema marginal, rudimentar e quase amador; e na música popular, que o tornou conhecido em círculos intelectuais. A biografia de Torquato Neto não é estrada a levar a nenhuma dor. Nos diferentes suportes, no entanto, é acintoso o exercício de soar familiar. A oralidade força um entendimento do futebol como elemento da sociedade brasileira, com seus impasses e suas subversões. O poeta fala de peito lavado.

Escute, meu chapa.

 

Helcio Herbert Neto é doutor em História Comparada (UFRJ), mestre em Comunicação (UFF), formado em Jornalismo (UFRJ) e em Filosofia (UERJ).

 

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Entrementes: futebol, política e cultura popular – Encarado durante muito tempo apenas como passatempo frívolo das multidões, o futebol atravessa a história do Brasil República. Justamente no momento que a experiência comum no país está ameaçada – por fanatismos religiosos, expressões diversas da extrema direita e desigualdades crescentes –, é preciso reencontrar no universo da modalidade manifestações da cultura popular com desdobramentos artísticos, sociais e políticos.



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