Meio século de sabotagem
Com o fim da II Guerra Mundial, os partidos políticos franceses tentaram criar uma “previdência social” para todos, fundada sobre o trabalho, co-gerida pelos trabalhadores e pelo Estado. Nos 50 anos que se seguiram, essas conquistas foram solapadasMartine Bulard
As primeiras sociedades de ajuda mútua apareceram na França no final do século XIX. Porém, foi preciso esperar até 1930 para que a cobertura a doenças se tornasse obrigatória, embora o seguro-velhice já fosse capitalizado. Na Alemanha de Otto von Bismarck daquela época, já havia mais de 40 anos que o seguro-doença e o seguro-velhice eram obrigatórios. A Áustria a seguira, em 1888, depois a Dinamarca, em 1891-1892, a Bélgica, em 1894, e o Luxemburgo, em 1901.
Na época da Libertação, as forças políticas francesas reunidas no Conselho Nacional de Resistência (CNR) quiseram superar esse atraso. Seu programa de ação, adotado na clandestinidade em 15 de março de 1944, propõe “um plano completo visando a assegurar a todos os cidadãos os meios de existência, em todos os casos em que forem incapazes de provê-los pelo trabalho, com uma gestão da qual façam parte os interessados e o Estado1 . O CNR pretendia caminhar para uma “previdência social” para todos, fundada sobre o trabalho, co-gerida pelos trabalhadores e pelo Estado. Falava-se de uma “nova ordem social”, segundo a expressão de Pierre Laroque, primeiro dirigente da Previdência Social2.
O boicote dos médicos
A Previdência Social se desenha entre 1945 e 1947. O patronato, que já se comprometera durante a ocupação, acolheu-a “com resignação3 ” como escreve o general De Gaulle em suas memórias. Entretanto, as mutualidades e as seguradoras, que haviam ocupado o mercado antes da guerra, fizeram pressão, fazendo-se acompanhar por médicos e associações familiares. Houve até quem denunciasse “um projeto totalitário, absolutamente contrário às idéias de liberdade”.
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Ao longo do tempo, o patronato realizou um autêntico trabalho de sabotagem. Na linha de mira já estavam os encargos sociais, as despesas e os segurados
A escolha do médico permaneceu livre e 80% dos gastos pagos pelo paciente deveriam ser reembolsados. Porém, a maioria dos profissionais recusou os convênios e as tarifas. Em 1955, foram assinados apenas 35 convênios cobrindo departamentos4 . Os 80% de reembolso tornaram-se meras intenções. Além disso, os sindicatos e os médicos se opuseram à “criação e à manutenção de qualquer privilégio material, fiscal ou outro, nos centros de diagnóstico e de tratamento”. Na realidade, os centros de diagnóstico foram raros, marginalizando, assim, qualquer medicina preventiva. Os médicos só aceitaram os acordos coletivos (conjunto de contrapartidas financeiras) em 1971! Calmaria de curta duração: em 1980 foi criado o “setor 2”, que autorizou ultrapassar os honorários.
A hora dos regimes de austeridade
Ao longo do tempo, o patronato realizou um autêntico trabalho de sabotagem. Na linha de mira já estavam os encargos sociais (demasiado altos), as despesas (decorrentes de assistência e não de previdência social), e os segurados (irresponsáveis). Em 10 de novembro de 1948, a Câmara do Comércio de Paris divulgava um diagnóstico sem apelação: “A Previdência Social tornou-se para a economia um encargo considerável que pode comprometer o país5 .” Na seqüência, acusou os assalariados [de] “aproveitarem tratamentos de que talvez não precisassem, pois qualquer doença era pretexto para repouso. O absenteísmo aumentou”. Exigem-se restrições. Mas, até 1967, o que se viu foi um movimento de extensão da cobertura social sem evitar alguns cortes no contrato social.
À medida em que as despesas aumentavam, os governos multiplicaram as comissões encarregadas de preparar os regimes de austeridade: a comissão Dobler, em 1963 (da qual participou Michel Rocard), a comissão do V Plano, em 1965-1966, cujo relator foi Jacques Delors. Esta última ressaltou que “foi levada a buscar uma ligeira inflexão da distribuição do financiamento entre o Estado, os beneficiários e as empresas. (…) Por razões econômicas e financeiras, mas também devido à preocupação de aumentar a responsabilidade dos beneficiários”. Esse pequeno refrão se tornaria rapidamente o mote patronal. Um ano depois, a comissão Fridel (ainda com Delors) pediu a transferência do auxílio-família6 para o orçamento do Estado, uma aposentadoria que complementaria um rendimento mínimo na velhice – realmente mínimo.
Um festival de mudanças e traições
Na década de 60, o aumento das ameaças patronais foi suficientemente sério para mobilizar os sindicatos, mas estes não conseguiram que o governo recuasse
Por seu lado, o Conselho Nacional do Patronato Francês (CNPF) publicou o “relatório Piketty”. Alarmista sobre a evolução das despesas, ele arrolava uma lista de “serviços sobre os quais a Previdência Social deveria abandonar o reembolso (e que) poderiam ser cobertos pela mutualidade e pela previdência privada7 “. Combatia “os preços inusitadamente baixos dos remédios franceses”, criticava o estouro das caixas de previdência social e “a igualdade da representação de assalariados e de empregadores”. Desde a Libertação, as caixas vinham sendo administradas por 2/3 de representantes dos assalariados, que primeiramente eram designados e depois eleitos.
As ameaças foram suficientemente sérias para mobilizar os sindicatos, mas estes não conseguiram que o governo recuasse. É verdade que a Força Operária (FO) fez o papel de franco-atiradora na mobilização. Maurice Derlin, na época secretário daquela central sindical, explica: “A FO preferiu a defesa eficiente da Previdência Social à abstenção espetacular (…) Fazer a política do quanto pior, melhor, nos pareceu ser a pior das políticas”. Como recompensa, Derlin se tornou presidente da Caixa Nacional de seguro-doença, com o apoio do CNPF. Promulgados por Georges Pompidou, os decretos de 22 de agosto de 1967 assinalaram, na prática, uma ruptura na concepção original da previdência social.
Depois dessa guinada, foram incontáveis os relatórios (uma dezena entre 1967 e 1981) e os planos econômicos (pelo menos oito, nesse mesmo período) com o aumento dos encargos sociais, essencialmente salariais, a diminuição das despesas hospitalares e criação do numerus clausus, que restringiu o número de estudantes de medicina…
Em 1981, a França passou por uma trégua, especialmente com a aposentadoria aos 60 anos. Depois, houve uns 25 planos “da última oportunidade”, sem esquecer a Contribuição Social Generalizada (CSG), inventada por Rocard e ampliada por Alain Juppé.
(Trad.: Teresa Van Acker)
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1 – Trecho do Programa de Ação da Resistência.
2 – Discurso de 10 de janeiro de 1946. Citado por Alain Barjot (org.) La Sécurité sociale – Son histoire à travers les textes, Tome III – 1945-1981, Association pour l?étude de l?histoire de la sécurité sociale, ed. Ministério do Trabalho e dos Assuntos Sociais, Paris,1997. Salvo menção em contrário, todas as citações são extraídas dessa obra.
3 – Mémoires de guerre, 2º vol., ed. Plon/Omnibus, Paris, 1999.
4 – N.T.: Regiões administrativas abrangendo vários municípios.
5 – Pub
Martine Bulard é redatora-chefe adjunta de Le Monde Diplomatique (França).