Memes políticos ou o efeito jocoso da boçalidade
Tornou-se corriqueiro ouvir dizer que na ditadura não houve tortura, que Hitler era de esquerda e outras bobagens do tipo. E a melhor forma de divulgar esse conhecimento espúrio é através de memes. Não causa surpresa que de acordo com pesquisa desenvolvida na Unicamp (ICHSA), observou-se que “os memes de tendência ideológica de direita são os que mais se propagam”.
Quem viu o último filme do Planeta dos Macacos pode observar o processo invertido da evolução. Os seres humanos vão perdendo a fala na medida em que os macacos vão desenvolvendo a linguagem humanizada. No início, Cesar era um macaco que queria a paz, enquanto os seres humanos, embrutecidos, resolviam tudo através da violência. Os macacos passaram a defender suas causas por meio de argumentos, sentimentos e emoções, enquanto que os seres humanos, de um modo geral, permaneceram presos aos atos violentos. Inclusive, os macacos violentos se aderiram aos seres humanos, e os seres humanos amorosos, por sua vez, se juntaram aos macacos.
Quando vejo a febre dos memes e dos vídeos curtos na internet, eu tenho a sensação de estar, de certo modo, vivenciando o mundo de Cesar. Páginas como “Socialista de iPhone”, “Bolsonaro Opressor 2.0”, “Jovens de esquerda” e a do “MBL”, investem intensamente na propagação de ideias políticas que se afogam no mar de símbolos da comunicação online, tornando-se, cada vez mais, vítimas vulgares da necessidade de recursos visuais para sintetizar pensamentos, sentimentos e ideias. São novos brinquedos dados aos jovens para espalharem a estupidez e o ódio, esculpindo, inconsequentemente, novos Hiro Protagonists, personagem central do romance Snow Crash de Neal Stephenson, que no Metaverso (mundo virtual criado pelo autor) é um grande samurai, que mata e desfigura todo mundo, mas no mundo real é um simples entregador de pizzas.
O culto à boçalidade
É lógico que o meme possui uma história sofisticada. Esse conceito foi introduzido na literatura ocidental por Richard Dawkins, em sua obra “O Gene Egoísta”. “Dawkins compara a evolução cultural com a evolução genética, onde o meme é o “gene” da cultura, que se perpetua através de seus replicadores, as pessoas”[1], explica a tese da linguísta Krícia Helena Barreto.
Ou seja, o meme é uma unidade de transmissão cultural e de difusão da informação fundamentada na imitação, que é, por sua vez, a forma básica de aprendizado social geradora de padrões de comportamento. “Tudo que pode ser aprendido através da cópia é um meme”, e é por esta razão que não podemos confundi-lo com cartuns, charges ou piadas.[2] As pessoas aprendem sobre política através do meme e repetem, como meros replicadores, o que viram circular nas redes sociais, sem nenhuma reflexão sequer, baseada em fundamentos científicos. Partindo da teoria do próprio meme, as pessoas tornaram-se memes. Reproduzem as brincadeiras e joguinhos de palavras que vêem, passando uma informação vazia que nos quer fazer rir de tudo.
Isso é extremamente perigoso, porque “todo o conhecimento adquirido por réplica, tudo aquilo observado e imitado é considerado meme, como os hábitos, os valores, os padrões estéticos e qualquer produto cultural difundido. Uma vez copiado, o meme ajuda na implantação de crenças e valores, ganhando força a cada novo hospedeiro”.[3] Esse é o pesadelo que se tornou a cultura política popular. A capacidade epidêmica dos memes (Pierre Levy compara os memes a um vírus que acomete uma população) pariu os zumbis das redes sociais que só imitam e gargalham enquanto ingerem a boçalidade.
Memória e história no mundo cibernético
Nas sociedades que não possuíam a escrita, havia um ritual narrativo onde a memória era transferida através das gerações. Ou seja, a memória está estritamente ligada à linguagem. De uma forma ou de outra é a linguagem que faz com que ela exista. No entanto, por não haver escrita, as sociedades “primitivas” não tinham o luxo do registro, do arquivo. Deste modo, a memória estava muito mais aberta a mudanças, isto é, “a possibilidades criativas”, como mostra Jacques Le Goff.
O medievalista francês traça um panorama interessante sobre a trajetória da memória ao longo da história ocidental. Destaca, baseando-se nos estudos de Jack Goody, que nas sociedades sem escrita havia uma “vontade de manter em boa forma uma memória mais criadora que repetitiva”. Mas com as sociedades com escrita isso muda. O fato de se ter arquivos, documentos etc.. a criatividade ficou mais relacionada às reflexões sobre esses documentos, como fazem as diversas vertentes historiográficas. A memória ficou mais conservadora. A própria memória, utilizada pelos oradores gregos e romanos, trata de padrões reconhecidos e compartilhados por uma dada cultura.
Le Goff sustenta a ideia de que em certas situações, principalmente escatológicas, a memória “nutre-se também de um verdadeiro ódio pela história”.[4] E não é isso que vemos hoje? Um discurso conservador disseminado pelas redes sociais que parte de uma memória forjada que afronta as evidências históricas. Tornou-se corriqueiro ouvir dizer que na ditadura não houve tortura, que Hitler era de esquerda e outras bobagens do tipo. E a melhor forma de divulgar esse conhecimento espúrio é através de memes.
Não causa surpresa que de acordo com uma pesquisa desenvolvida pelo Instituto de Ciências Humanas Sociais e Aplicadas da Unicamp (ICHSA), em Campinas (SP), sobre memes políticos, observou-se que dos “2,5 mil analisados, foi constatado que os de tendência ideológica de direita são os que mais se propagam”.[5] Portanto, nessa guerra, mais interessada em disseminar um discurso que provoca riso que a verdade, vence quem está mais preparado.
Compreendemos a realidade através de ideias que se põem entre nós como um “óculos sobre o nosso nariz, e o que vemos, vêmo-lo através deles”. Wittgenstein é claro ao dizer que “afirma-se da coisa o que já se encontra no modo de sua exposição”.[6] Desta maneira, ideias ilegítimas se tornam legítimas devido ao modo de expô-las através do meme, que tem apenas um objetivo: o de se repetir. A velha história de a mentira dita mil vezes se tornar verdade agora se aproveita desse padrão linguístico do mundo virtual.
Contestam-se livros, teses e professores, acreditam-se em memes, em youtubers… A cultura letrada vai minguando, mas não será extinta; certamente não voltaremos ao homem “primitivo”. Cultuaremos rituais narrativos promovidos por jovens que falam entre cortes exagerados de vídeos curtos de internet e por imagens emporcalhadas, embora engraçadinhas? Se ler é a unidade entre letra e som, como colocava Wittgenstein, o som das gargalhadas embebeda a reflexão sobre as letras no caso dos memes. A criatividade do homem primitivo não voltará, pois conhecemos a escrita, só criamos uma aversão a ela. O que é bem pior.
No fim aquela realidade descrita no filme do Planeta dos Macacos não está tão distante assim. Está batendo em nossa porta. O enfraquecimento das universidades públicas e do investimento em pesquisa, o controle do que será dito em sala de aula etc.. parece nos guiar a um destino retirado de um mundo distópico deprimente.
* Raphael Silva Fagundes é Doutor em História Política da UERJ e professor da rede municipal do Rio de Janeiro e de Itaguaí