Mérito e ações afirmativas, uma falsa dicotomia
No Brasil, diversidade, equidade e inclusão são princípios inegociáveis
A ascensão das políticas de Diversidade, Equidade e Inclusão (DEI) ao longo dos últimos anos não se deu livre de obstáculos. Muitos ainda as encaram como uma ameaça ao mérito ou como uma tentativa de impor à sociedade a tal da “agenda identitária”. No epicentro dessa resistência estão os Estados Unidos, onde o cerco tem se intensificado sob a nova administração Trump. A recente ofensiva do governo norte-americano sobre programas de diversidade no setor público e sua pressão indireta sobre empresas privadas levantam questionamentos sobre o futuro dessas políticas.

Crédito: Joédson Alves/Agência Brasil
Estamos diante do fim de uma era de avanços ou apenas de uma nova fase de disputas em torno dessas iniciativas? E como fica o Brasil no meio disso tudo?
Para início de conversa, a oposição entre diversidade e mérito é uma falsa dicotomia. A ideia de que sucesso depende exclusivamente de esforço individual ignora questões estruturais – raça, gênero, renda, território, acesso à educação de qualidade – que limitam oportunidades a determinados grupos. Tratar o mérito como um princípio absoluto e universal, sem considerar os fatores sociais e históricos que marcam nossa sociedade, distorce a realidade e, pior, amplia desigualdades já enraizadas.
Está mais do que documentado o quanto redes de privilégio moldam a ascensão profissional. A grande maioria dos processos seletivos tradicionais se baseia em critérios que favorecem certos tipos de currículos, históricos, experiências, endereços ou sobrenomes. Entrevistas e testes técnicos deixam de levar em conta que candidatos com diferentes perfis podem ter talentos igualmente valiosos, mas que não são contemplados pelas métricas utilizadas. Ao desconsiderar trajetórias diversas e restringir o acesso a oportunidades, perpetuamos um ciclo de exclusão e desperdiçamos grandes ideias e potenciais.
Garantir que mais pessoas tenham chances reais de crescimento profissional representa ampliar a competitividade, e não restringi-la. O verdadeiro mérito está em reconhecer que talento existe em toda parte e criar condições para que ele possa florescer e se multiplicar. Portanto, ao incorporar políticas de DEI à sua estratégia e cultura organizacional, as empresas não “abrem mão do mérito”, como alegam alguns, mas ajudam a resgatar seu real significado.
Um levantamento da Fundação Lemann e do Núcleo de Estudos Raciais do Insper aponta que organizações com ampla presença de mulheres e lideranças negras tomam decisões mais eficazes, são mais criativas e alcançam melhor desempenho financeiro. Além disso, equipes diversas impulsionam resultados superiores, elevam o engajamento de stakeholders e fortalecem a marca. Muitas empresas reconhecem essa realidade e se recusam a aderir ao retrocesso. Os benefícios, no entanto, só se concretizam quando a diversidade vai além de um discurso conveniente ou de uma tendência passageira e se torna parte essencial da cultura organizacional.
E, enquanto nos Estados Unidos a noção de ação afirmativa é frequentemente contestada sob o argumento de que qualquer forma de preferência baseada em grupo seria discriminatória, no Brasil a implementação de cotas e políticas de inclusão foi legitimada, com ampla aprovação, pelo STF. Não podemos esquecer que pessoas negras, segundo o IBGE, representam 56,7% da população brasileira, e que ainda compõem cerca de 71% das que vivem em situação de pobreza, conforme apontou um estudo recente do Made-USP.
Nos últimos anos, pelo trabalho do Olabi no apoio a organizações na construção de políticas e ações de DEI, vimos um boom de boas práticas a partir das quais vozes e perspectivas antes invisibilizadas puderam ganhar espaço e reconhecimento. Não podemos retroceder.
Ações afirmativas não são concessões, mas um compromisso com a criação de oportunidades que fortaleçam a inovação, a competitividade e a justiça no Brasil. Aqui, diversidade, equidade e inclusão são inegociáveis.
Gabriela Agustini e Silvana Bahia são codiretoras executivas do Olabi, organização dedicada a democratizar a tecnologia e a inovação que lançou plataforma gratuita Jornada em Diversidade, Equidade e Inclusão.