O total de votos de Jean-Marie Le Pen no primeiro turno da eleição presidencial francesa recolocou em pauta a questão da natureza ideológica das chamadas formações nacional-populistas da “terceira onda”, que o movimento antifascista militante, bem como analistas precavidos, ainda classificam entre os movimentos de extrema-direita tradicionais e mesmo fascistas1 .
Indevidamente: assistimos, na realidade, ao êxito de uma direita extrema atípica, que substituiu o culto do Estado pelo ultraliberalismo, o corporativismo pelo jogo do mercado e até, às vezes, o âmbito do Estado-nação pelos particularismos regionais ou simplesmente locais. Evidentemente, há partidos políticos que ainda se valem da mesmice das ideologias autoritária e fascista, e mesmo nacional-socialista, mas, exatamente por essa razão, tornaram-se marginais, enquanto avançam os partidos sem filiação histórica e ideológica extremistas, que aparecem como capazes de fornecer soluções através de uma proposta política fechada, amplamente consensual e totalmente alinhada ao modelo econômico e social ultraliberal.
Herdeiros das ditaduras
Existem partidos que ainda se valem da mesmice das ideologias autoritária e fascista, e mesmo nazista, mas, exatamente por isso, tornaram-se marginais
Em nenhum lugar, nem mesmo na Alemanha, a ultra-direita ativista e neo-nacional-socialista representa uma ameaça real. O Nazionaldemokratischer Partei Deutschlands (NPD), expressão legal do neonazismo – cuja interdição, aliás, vem sendo examinada pelas autoridades há dois anos -, contava com apenas 6.500 filiados em 2000, contra 6 mil em 19982 . E isso apesar da figura carismática de Horst Mahler, ex-advogado e membro da Fração do Exército Vermelho (RAF), que, devido a um anti-semitismo obsessivo, foi convertido à idéia de uma ruptura indispensável da Alemanha com os tabus e as culpas ligados à Shoah (holocausto) e ao nazismo3 . Quanto à Deutsche Volksunion (DVU), ela associa o revanchismo e o irredentismo4 a uma certa reabilitação do período nazista e atrai igualmente, nos Estados do Leste, uma população que, em sua maioria, é jovem, desqualificada, operária e, amiúde, nostálgica do enquadramento social e econômico da República Democrática Alemã. Apesar disso, também está perdendo prestígio: depois de ter conseguido 12,9% dos votos no land (Estado) de Saxe-Anhalt, em 1998, nem sequer apresentou candidatos às eleições de 21 de abril de 2002. O endurecimento da Democracia Cristã (CDU) e sua ofensiva contra o governo Schröder têm, provavelmente, algo a ver com isso. Assim como a afirmação do Partido do Socialismo Democrático (PDS).
No sul da Europa, a herança assumida do falangismo, do salazarismo e da ditadura dos coronéis gregos acarretou a fragmentação em grupúsculos de partidos que dela se valem. Na Espanha, os cinco partidos falangistas, ou radicais, que participaram das eleições européias de junho de 1999 obtiveram um total de 61.522 votos, isto é, menos de 1% dos votos. Nas eleições legislativas do ano de 2000, a mesma fragmentação produziu os mesmos resultados: a Democracia Nacional, próxima à FN francesa, teve que se contentar com… 0,01%. Em Portugal, a derrota do neo-salazarismo é ainda mais patente: o Partido Nacional Renovador (PNR), formação que sucedeu à Aliança Nacional de Salazar, teve somente 3.962 votos (0,07%), ao passo que o Partido Popular, formação conservadora de direita com uma ala antieuropeísta, obteve um resultado recorde de 8,75%.
As correntes da Alleanza italiana
O Nazionaldemokratischer Partei Deutschlands (NPD), expressão legal do neonazismo alemão, contava com 6.500 filiados em 2000; em 1998, eram 6 mil
Enfim, na Itália, a evolução da Aliança Nacional deixa pouquíssimo espaço aos neofascistas não arrependidos. A Aliança Nacional compreende atualmente três correntes: a dos partidários de Gianfranco Fini, dirigida por Ignazio La Russa e Maurizio Gasparri, que externou, depois do dia 21 de abril, sua recusa a qualquer contato com Le Pen; uma corrente moderada “gaullista” (Altero Matteoli, Domenico Nannia, Adolfo Urso), partidária de um regime presidencial; e a Destra Sociale – dirigida por Gianni Alemanno e pelo presidente da região do Lácio, Francesco Storace – que é a mais próxima do filão ideológico do fascismo social.
Em relação à maioria das questões de sociedade, a Alleanza Nazionale mantém um equilíbrio entre essas três correntes e não é o mais reacionário dos partidos italianos, principalmente devido à sua relativa indiferença em matéria religiosa. É o partido católico CCD, de Rocco Buttiglione, por exemplo, que, pressionado pelo movimento católico tradicionalista Comunhão e Libertação, estimula o governo Berlusconi a rever a lei sobre o aborto e a lei sobre o financiamento do ensino privado. Nessas condições, o Movimento Social-Flamme Tricolore, dirigido por Pino Rauti, líder histórico da ala radical do Movimento Social Italiano (MSI) e ex-combatente da República de Salo, vê-se reduzido a 0,3% dos votos (1% para as eleições de maio de 2001 para o Senado).
“Manias” arcaicas de Le Pen
Isso significa que as formações de uma direita dura que avançam na Europa são, em primeiro lugar, aquelas que, tendo assumido uma parte da herança ideológica dos movimentos autoritários, modernizaram seu discurso, assim como sua estrutura organizacional. Defendem uma espécie de capitalismo ultraliberal protecionista, aceitam formalmente a democracia parlamentar e o pluralismo, reivindicando uma modernização, e não mais uma ruptura, do quadro institucional. Todas essas formações partilham uma mesma reivindicação de identidade: a preferência nacional, isto é, a atribuição de direitos políticos, econômicos e sociais somente aos nacionais de origem. Professam, igualmente, uma mesma aversão pela sociedade multicultural, fonte presumida de todas as disfunções do corpo social, e desejam, portanto, limitar a imigração ou inverter os fluxos migratórios expulsando os residentes estrangeiros não-europeus.
A Frente Nacional (FN) francesa é a mais importante dessas “formações mistas”. Assume, através de sua constante política do “compromisso nacionalista”, um papel de unificadora das diferentes tradições ideológicas de extrema-direita, sendo que as múltiplas declarações de Le Pen sobre o “pormenor” ou “a internacional judaica” demonstram uma persistência de “manias” que datam das décadas de 1930 e 1940.
A “virada social” da Frente Nacional
A Deutsche Volksunion (DVU) associa o revanchismo a uma reabilitação do período nazista, e atrai uma população de jovens, operários, sem qualificação
Contudo, seu projeto econômico e social – centrado até agora na conquista do eleitorado constituído por profissionais liberais e chefes de pequenas e médias empresas – é de essência ultraliberal. A supressão do Imposto de Renda, idéia de Jean-Claude Martinez, assim como a constante denúncia do “fiscalismo” e a rejeição da lei sobre as 35 horas confirmam que Le Pen, como declarou na noite do primeiro turno, é “economicamente de direita”. Mas, em seguida, acrescentou que era “socialmente de esquerda” e “acima de tudo, francês”.
Acréscimo importante para um partido que, nos últimos dez anos, conquistou um eleitorado majoritariamente popular ao qual anunciara, no outono de 1995, que faria uma “virada social”. E em que consiste essa virada? Na reabilitação do papel de regulador social e econômico do Estado – tanto em situações específicas, quanto como barreira contra a globalização liberal. Na ótica frentista, entretanto, não se trata de privilegiar as políticas distributivistas e o impulso estatal na economia: o Estado protege dando o benefício exclusivo do que sobra das aposentadorias e dos direitos sociais (emprego, habitação, formação) unicamente aos nacionais, valendo-se do princípio da preferência nacional.
Homenagem a Thatcher
Para tranqüilizar os excluídos da globalização ultraliberal, o Estado frentista se tornaria um Estado-policial colocando, no cerne de seu discurso, a questão relativa à segurança pública como luta contra o permissivismo moral. E o não-questionamento dos postulados da globalização liberal (exceto quanto ao modo retórico de um anti-norte-americanismo de princípio) é mascarado por algumas medidas espetaculares, como a saída da União Européia, evidentemente mais fácil de alardear do que a construção de uma necessária Europa das nações, ou a volta ao franco após o abandono do euro.
O outro grande “partido misto”, o Vlaams Blok (Bloco Flamengo, VB5 ) é igualmente ambíguo (leia, nesta edição, os artigos de Magali Uytterhaeghe e Sergio Carrozzo sobre o assunto). Se ainda se refere ao nacionalismo solidarista de Joris Van Severen e aos teóricos do nacionalismo flamengo colaboracionista vindos da esquerda (Henri de Man, Edgar Delvo), ele abriga uma corrente liberal encarnada pela deputada Alexandra Colen que, na publicação bimestral Peper en Zout, faz uma homenagem a Margaret Thatcher, que “libertou seu país da ditadura dos sindicatos”, bem como às teses de liberdade absoluta do norte-americano Dick Armey.
Identidade com a “nova direita”
No sul da Europa, grupúsculos de partidos fragmentados assumiram a herança do falangismo, do salazarismo e da ditadura dos coronéis gregos
Os partidos classificados como “extrema-direita” na linguagem corrente que tiveram maior sucesso são os escandinavos. Na Dinamarca, o Dansk Folkeparti (Partido do Povo) de Pia Kjaersgaard obteve 12% dos votos nas eleições legislativas de novembro de 2001. Na Noruega, o Fremskridtspartiet (Partido do Progresso) de Carl Ivar Hagen obteve 15,3% nas de 1997. Essas formações expressam um “populismo de prosperidade” mais do que de crise – a taxa do desemprego norueguês é residual e o maná petroleiro garante um nível de vida elevado – e seu eleitorado é composto por membros das classes médias, empresários independentes e, em proporção crescente, operários. No entanto, o Partido do Progresso norueguês defende a idéia de uma desregulamentação total do mercado de trabalho que implica até o desaparecimento do salário mínimo.
Na realidade, como mostraram Tor Bjorklund e Jorgen Goul Andersen, nesses países onde o Estado de bem-estar social se desenvolveu tanto sob governos burgueses quanto sob governos social-democratas, a fidelidade da classe operária para com a esquerda tende a se desgastar. Leva vantagem, então, o componente autoritário da cultura operária, que só consegue identificar-se com a “nova direita”, segundo a denominação que lá adotam.
Áustria, Suíça e Holanda
Esse autoritarismo também se manifesta pela recusa em ver sociedades tradicionalmente muito homogêneas, sob os aspectos étnico e religioso, abrirem-se para o multiculturalismo. Em relação a isso, a situação dinamarquesa é muito preocupante, dado que, atualmente, o Partido do Povo se encontra no Parlamento em condições de impor a legislação que desejar à coalizão liberal-conservadora. Poderia, por exemplo, ser aprovada uma lei proibindo que dois estrangeiros da mesma nacionalidade e com menos de 24 anos de idade se casem. A limitação do agrupamento familiar, o alongamento dos trâmites para obtenção da carteira de permanência e a supressão do delito de racismo do Código Penal também estão previstos.
Na Itália, a evolução das três correntes que compõem a Aliança Nacional deixa pouquíssimo espaço aos neofascistas não arrependidos
Essa tendência xenófoba, racista mesmo, e particularmente antimuçulmana, caracteriza toda essa militância na Europa, inclusive, como se sabe, a FN francesa. Tal tendência também teve um papel importante no desenvolvimento, freqüentemente estudado6 , do Partido da Liberdade da Áustria (Freiheitliche Partei Österreichs, FPÖ), antes dirigido por Jörg Haider (26,9% nas eleições legislativas de 1999), e da União Democrática do Centro (UDC) do suíço Christophe Blocher (22,6% nas legislativas de 1999).
Outras formações mais difíceis de classificar surgiram recentemente. É o caso, na Holanda, da lista de Pim Fortuyn e do movimento Leefbaar Nederland. A primeira obteve perto de 34% dos votos nas eleições municipais de março de 2002 em Roterdã e se aproxima das legislativas de 15 de maio com quase o mesmo índice de intenções de voto. O segundo chegou à frente, na mesma votação municipal, em Almere, Eindhoven e Hilversum, mas só recebeu 3,1% das intenções de voto no plano nacional. Na Alemanha do Norte, o Partei Rechtsstaatlicher Offensive (PRO), criado pelo advogado Ronald Schill, obteve um sucesso espetacular (19,4%) nas eleições regionais de Hamburgo, em setembro de 2001, mas de menor envergadura nas do land de Saxe-Anhalt, em abril de 2002 (4,9%).
Dirigentes bilionários
Os partidos de direita que avançam na Europa são os que, assumindo parte da herança dos movimentos autoritários, modernizaram o discurso e a organização
O que têm esses partidos em comum? Em primeiro lugar, a dimensão contestatária/populista: ambas as formações holandesas contestam o sistema da “coalizão violeta” que governa a Holanda, enquanto o PRO acusa a Democracia Cristã Alemã (CDU) de não ser suficientemente de direita. Em seguida, a problemática da “lei e ordem” associada à rejeição da imigração: os partidos holandesas priorizam a necessidade de limitar a permissividade das leis de seu país e apontam a criminalidade da comunidade magrebina, particularmente a marroquina; o PRO, cujo dirigente tornou-se ministro do Interior de Hamburgo, tem como único programa a “supressão” da criminalidade. Enfim, são todas iniciativas locais com ambições nacionais: a Leefbaar Nederland funciona como uma coordenação que agrupa listas locais, e o PRO, embora tenha tomado a decisão de não concorrer às eleições para o Bundestag (Parlamento) em 2002, deseja claramente estar presente por toda parte.
É fácil notar uma outra semelhança que diz respeito ao perfil pessoal dos dirigentes dessas formações, como de outras, aliás: dirigindo-se ao povo, e até afirmando sua origem modesta (Le Pen, que “passou fome e frio”; Christoph Blocher, filho de pastor pobre), são, amiúde, muito abastados, e mesmo muito ricos. Blocher é um bilionário que dirige uma multinacional do setor químico; encabeçando a lista do PRO, em Saxe-Anhalt, Ulrich Marseille fez fortuna criando uma cadeia de residências com serviços médicos.
Reabilitar a distinção esquerda-direita
Os chamados partidos de “extrema-direita” na linguagem comum que tiveram maior sucesso são os escandinavos, que defendem um “populismo de prosperidade”
O caso do ex-líder do FPÖ, Jörg Haider, é emblemático. Herdeiro de uma fortuna familiar constituída a partir da espoliação de bens judeus, cercou-se de um jovem executivo, diretor no setor privado (o ministro das Finanças, Karl-Heinz Grasser), e do dirigente patronal Thomas Prinzhorn. Os ministros FPÖ da coalizão desenvolvem, aliás – sobre a questão do “déficit zero”, sobre o futuro das aposentadorias e da política familiar -, uma orientação perfeitamente contrária aos interesses do eleitorado operário do partido, o que pode explicar sua perda de pique nas eleições parciais ocorridas depois de sua entrada no governo de coalizão, em fevereiro de 2000.
Esse programa das direitas extremas impõe uma questão: será que ainda se pode falar de formações fascistas e denunciar essencialmente a continuidade de sua ideologia com as expressões históricas anteriores do radicalismo de direita? Parece-nos que, ao contrário, é preciso integrar a ruptura com os esquemas antigos.
Os novos extremismos representam, antes de tudo, uma forma de protesto de tipo reacionário contra a adesão maciça – da direita como da esquerda tradicionais – aos postulados do ultraliberalismo econômico e social, assim como à globalização. A esquerda, afastando-se das camadas populares, governando pelo viés de elites auto-reproduzidas e enclausuradas no discurso tecnocrático e administrativo, carrega, nessa vaga, uma responsabilidade clara que só a reabilitação da distinção direita/esquerda e a volta a um projeto colocando o Estado no centro da ação pública poderão bloquear.
(Trad.: Iraci D. Poleti)
Para Yves Mény, “a especificidade desse populismo da Frente Nacional (FN) consiste em se reconhecer numa liderança que assume uma herança fascista. E ela está de tal forma arraigada nos valores da extrema-direita, que não pode se aliar à direita clássica”, Libération, 24 de abril de 2002.
Ler, de Uwe Backes e Eckhard Jesse (org.), JahrbuchExtremismus und Demokratie, ed. Bouvier Verlag, Bonn, 2001.
Mahler foi convidado a visitar a França, no dia 6 de abril de 2002, pelo grupo Unidade Radical, cujos dirigentes pertencem às instâncias nacionais do Movimento Nacional Republicano (MNR), de Bruno Mégret.
N.T.: Doutrina política dos nacionalistas italianos que, após a unificação do país, reivindicavam a anexação dos territórios de língua italiana que ainda se encontravam sob o jugo estrangeiro (Italia Irredenta).
Sobre o VB, ler, de Marc Spruyt, Wat het Vlaams Blok verwijt, ed.