Mineração em Terras Indígenas: o que mostra a experiência internacional?
Na discussão sobre mineração em TIs, um dos instrumentos legais mais comumentes mobilizados é a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Esta garante aos Povos Indígenas o Direito à Consulta Livre, Prévia e Informada (CLPI) no caso da instalação de empreendimentos em suas terras.
“Não há nada mais perigoso para uma Reserva Indígena do que uma mina valiosa” (Carls Shurz, Secretário do Interior dos Estados Unidos, 1881)
Em fevereiro de 2020, o Poder Executivo federal enviou ao Congresso Nacional um Projeto de Lei (PL 191/2020) que, entre outras medidas, propunha a regulamentação da mineração em Terras Indígenas (TIs). Desde que a Constituição de 1988 condicionou a extração mineral em TIs a uma lei específica, já foram apresentados ao menos, 20 PLs que explicitamente tratam do tema. Porém, como nenhuma das propostas se mostrou política ou tecnicamente viável, essa atividade ainda não foi autorizada no país.
A eleição de Jair Bolsonaro, porém, causou uma alteração na correlação de forças sobre o tema. Bolsonaro representa uma coalizão que possui uma postura explicitamente contrária aos direitos dos Povos Indígenas: as bancadas ruralista e da mineração, partes dos militares e alguns segmentos neopentecostais. Desde sua campanha eleitoral, Bolsonaro desafiava a Constituição e afirmava que não demarcaria mais TIs.
Além disso, sua história e ações sugerem uma predileção pela extração mineral. Seu pai trabalhou como garimpeiro em Serra Pelada e, em 1983, o próprio Jair Bolsonaro foi garimpar junto com outros cinco militares na Bahia. Depois de eleito, quando tentava indicar seu filho para embaixador nos Estados Unidos, Bolsonaro afirmou que queria se aproximar daquele país para firmar parcerias de forma a promover a mineração em TIs. Dessa forma, Bolsonaro vem defendendo abertamente a liberação da mineração em TIs, contrariando a opinião de 86% da população brasileira e a posição de grande parte dos Povos Indígenas do país.
Beneficiar Povos Indígenas?
Como forma de tentar dar legitimidade a esse desejo do presidente, não é incomum ver membros do governo utilizando exemplos de outros países para afirmar que a extração mineral iria beneficiar os Povos Indígenas. Em setembro de 2019, Alexandre Vidigal, Secretário de Geologia e Mineração do MME afirmava, durante uma Audiência Pública na Câmara dos Deputados que, ao visitar a Austrália e o Canadá, conheceu “modelos de convivência com comunidades indígenas absolutamente exemplares; comunidades que preservam a sua cultura, preservam a sua terra e têm atividade minerária exercida no mais absoluto equilíbrio e compatibilidade”.
A escolha desses dois países como “casos de sucesso” não deixa de chamar a atenção. Por um lado, em ambos, o setor mineral tem um poder desproporcional sobre os governos; por outro, em 2007, os dois, juntamente com os EUA e a Nova Zelândia, foram os únicos a votar contra a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, tendo endossado a declaração apenas anos mais tarde.
Assim, ao longo desse texto, busco avaliar alguns aspectos relacionados à experiência de mineração em TIs nesses dois países, discutir alguns dos desafios enfrentados pelos Povos Indígenas que aí vivem, e refletir sobre como tais questões podem repercutir no caso brasileiro.
Na discussão sobre mineração em TIs, um dos instrumentos legais mais comumentes mobilizados é a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Esta garante aos Povos Indígenas1 o Direito à Consulta Livre, Prévia e Informada (CLPI) no caso da instalação de empreendimentos em suas terras. Apesar de a Convenção ainda não ter sido ratificada nem pela Austrália, nem pelo Canadá2, ambos incorporaram a exigência de alguma consulta aos Povos Indígenas como uma etapa para autorização da extração mineral. No caso da Austrália, a Lei do Título Nativo (Native Title Act) criou mecanismos para negociação entre Povos Indígenas e empresas extrativas, porém também estabeleceu que se essas negociações não produzirem um acordo em um prazo de seis meses, um processo de arbitragem determinaria o valor da compensação a ser paga. No caso da Canadá, o principal instrumento utilizado tem sido os Acordos de Impactos e Benefícios (Impact and Benefit Agreements). Entretanto, tais acordos têm sido caracterizados pelo pouco tempo de discussão e oportunidades restritas para os Povos Indígenas manifestarem suas posições. Assim, a Consulta Prévia em ambos os casos apenas garante aos Povos Indígenas o direito de aceitar os projetos. Em geral, a percepção em torno de tais processos é que eles têm sido usados mais para proteger as corporações de questionamento posteriores, do que para garantir direitos territoriais dos Povos Indígenas.
Consentimento livre, prévio e informado
Ao lado da Convenção nº 169, há normas que vão além da Consulta e definem a necessidade do Consentimento Prévio, Livre e Informado. Exemplos são a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas (2007) e a Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas (2016). Apesar de haver uma disputa entre doutrinas legais sobre o grau de vinculação dessas declarações, ambas claramente indicam a orientação política que deveria ser adotada pelos Estados signatários. A Declaração da ONU recebeu voto favorável do Brasil, embora Austrália e Canadá tenham votado de forma contrária. No caso da OEA, a declaração foi aprovada por aclamação, porém o Canadá solicitou que fosse incluída uma nota na qual ele manifestava desejo de se abster.
Porém, o próprio conceito de “Consentimento” parece que vem sendo redefinido por algumas organizações. A International Finance Corporation (IFC), parte do sistema Banco Mundial, criou uma série de “Padrões de Desempenho”, que utiliza para orientar os investimentos que apoia. No que se refere aos Povos Indígenas, o Padrão da IFC afirma que o Consentimento Prévio não requer unanimidade e pode ser obtido mesmo se grupos discordarem explicitamente, num claro desrespeito a processos decisórios de Povos Indígenas específicos. Indo um pouco mais além, o International Council on Mining & Metals, a associação global das corporações mineradoras, defende teoricamente a necessidade do Consentimento Prévio, porém afirma que caso não seja obtido, caberia ao governo determinar o prosseguimento do projeto.
Outra característica dos projetos extrativos em TIs nesses dois países diz respeito ao poder desproporcional que é dado às empresas mineradoras na negociação com os Povos Indígenas. Não é incomum que acordos assinados possuam cláusulas de confidencialidade, que impedem que Povos Indígenas estruturem conjuntamente sua posição, mesmo quando lidando com a mesma mineradora. Ainda há cláusulas que proíbem a crítica pública contra as empresas, criando um ambiente de aparente consentimento. Outra prática identificada em diferentes situações é a cooptação de lideranças indígenas para intermediar as negociações.
Além dessas táticas explícitas de negociação, mineradoras também lançam mão de estratégias mais sofisticadas para reduzir a oposição. Considerando as lutas por reconhecimentos de seus direitos, os Povos Indígenas nesses países valorizam consideravelmente sua autonomia e soberania. Mineradoras no Canadá têm se valido disso e procurado criar fóruns de discussão específicos com esses povos, e mesmo indicando representantes indígenas para ocupar cargos em Conselhos. Esse envolvimento criaria o sentimento de participação em processos deliberativos, mesmo que sem capacidade de interferência real, e diminuiria a resistência aos projetos.

Impactos na dinâmica social
Experiências internacionais têm mostrado como projetos minerais degradam substancialmente o ambiente onde vivem os Povos Indígenas e ainda desestruturam sua dinâmica social e econômica.
Considerando a perspectiva voltada para o meio ambiente, tanto na Austrália, quanto no Canadá, as TIs concentram áreas significativamente preservadas e com elevada biodiversidade. Esse grau de preservação é condição para a manutenção de práticas de subsistência e de identidade cultural desses povos. A degradação do meio ambiente ocorre tanto pela abertura das cavas, quanto pela instalação da infraestrutura associada (estradas, ferrovias, barragens de rejeito, pilhas de estéril etc.). Além disso, a contaminação química, particularmente no Canadá, tem sido um motivo de constante conflitos entre Povos Indígenas, empresas mineradoras e o Estado.
Essa questão merece atenção especial, quando se pensa no caso do Brasil. Aqui, cerca de 98% da área de TIs demarcadas se localiza na Amazônia e elas também estão entre as áreas mais preservadas do país. Entre 2000 e 2014, a taxa de perda florestal nas TIs foi inferior a 2%, enquanto que a Amazônia perdeu, em média, 19%. A preservação dessas áreas tem relevância global, uma vez que elas armazenam cerca 13 bilhões de toneladas de carbono. Por outro lado, estimativas indicam que operações minerais em larga escala na Amazônia induziram um desmatamento 12 vezes maior do que as áreas de lavra concedidas; tendo sido responsáveis, por 9% do total desmatado na Amazônia entre 2000 e 2015.
Se o mesmo padrão de degradação for mantido em novos projetos, a abertura da mineração industrial em TIs será um grande indutor de desmatamento. Dessa forma, a liberação da mineração em TIs no Brasil tem o potencial de causar impactos significativos em escala local, regional, nacional e global. Localmente, ela diminuiria a biodiversidade, limitaria a disponibilidade de caça para os Povos Indígenas e aumentaria o assoreamento de igarapés e rios, comprometendo o abastecimento de água, a pesca e a navegação. Em escala regional, a redução da área florestada reduziria a umidade e a incidência de chuva, aumentando a probabilidade de grandes incêndios e intensificando o processo de savanização. Do ponto de vista nacional, a perda de área de Floresta Amazônica impactaria diretamente a quantidade de chuva no país, prejudicando a agricultura e a geração de energia hidrelétrica. Ainda, no nível global, deve-se considerar a contribuição desse desmatamento para as mudanças climáticas.
Para além dos impactos negativos associados à degradação ambiental, em ambos os países analisados, a entrada de projetos extrativos em TIs gera considerável alteração na estrutura social dos Povos Indígenas.
Assimetria
Na Austrália e, principalmente, no Canadá um dos principais “aspectos positivos” associados aos projetos extrativos está relacionado à possibilidade de geração de emprego e renda para pessoas indígenas. Todavia, há evidências de que os trabalhadores indígenas não alcançam condições equivalentes aos não-indígenas, havendo uma concentração em cargos de menor remuneração. Analistas argumentam que esse padrão beneficiaria, principalmente, as companhias mineradoras. Considerando que muitas das minas se localizam em áreas remotas, existe um elevado custo fixo de transporte e acomodação de pessoal, além da necessidade da oferta de salários elevados para atrair trabalhadores dos centros urbanos. Do ponto de vista econômico, essas despesas elevadas seriam viáveis para cargos qualificados; por outro lado, eles elevariam consideravelmente os custos de trabalhadores não-especializados. Dessa forma, a opção por preencher essas vagas com a população local estaria relacionada à redução de custos e não a uma preocupação em compartilhar ganhos com os Povos Indígenas.
Outro elemento que merece especial atenção é o aumento da violência, particularmente contra mulheres indígenas. Nessas regiões, é comum a construção de alojamentos ocupados, primordialmente, por homens jovens. Esses locais seriam caracterizados por uma cultura hiper-masculinizada e sexista. Devido a questões associadas a oportunidades desiguais de emprego, não é incomum que os projetos contratem trabalhadores com visão racista em relação aos Povos Indígenas. Além disso, o ritmo intenso de trabalho seria “compensado” pelo aumento do consumo de álcool e drogas.
Essa situação, faz com a pessoas indígenas que vivam próximos a tais projetos estejam particularmente expostas à violência. Essa questão se torna ainda mais importante no caso de mulheres indígenas. Assim, ao menos no Canadá, seria possível identificar uma relação entre a presença desses alojamentos e o aumento na taxa de ocorrência de casos de violência sexual. Para além do risco existente apenas pela proximidade dos trabalhadores, algumas mulheres são ainda mais expostas quando contratadas como cozinheiras ou faxineiras. O risco seria ainda maior quando se leva em consideração o isolamento dos acampamentos, o que faz com que as mulheres tenham que viajar por horas para apresentar denúncias formais em caso de violência ou estupro.
Violências
Na realidade brasileira, a violência sempre foi um elemento presente no cotidiano indígena, tendo sido contabilizados 476 assassinatos de pessoas indígenas em conflitos por terra entre 2010 e 2018. Dado esse contexto, a liberação de acesso às TIs para empresas mineradoras pode não apenas intensificar as atividades ilegais de extração mineral, quanto aumentar ações de violência. Dentro do setor mineral, a contratação de pessoas é maior nos períodos de implantação e expansão de projetos e, normalmente, há demissões em massa após o término das obras, ou em períodos de queda dos preços. A dinâmica econômica de expansão/retração geraria excedentes de trabalhadores não-indígenas desempregados dentro das TIs que, provavelmente, optariam pela extração ilegal até um novo ciclo de contratação. Por exemplo, a redução da produção mineral na região de Ciudad Guayana, na Venezuela, causou um grande desemprego no setor, liberando milhares de mineiros que foram buscar trabalho na mineração ilegal no entorno. O município de El Callao foi considerado em 2017 e 2018 o mais violento do país, com a atuação de grupos armados e facções criminosas. Além disso, a construção de infraestrutura de apoio (estradas, aeroportos, hotéis, mercados, centros comerciais etc.) facilitariam o acesso às TIs e reduziriam o custo de instalação de mineradoras ilegais.
Portanto, diferente do que em sido propagado por funcionários do governo federal, a experiência internacional de mineração em TIs está longe de ser ideal. A conclusão mais geral da literatura sobre o tema indica que essas atividades podem gerar mais prejuízos do que benefícios para os Povos Indígenas. Debater abertamente e democraticamente sobre esses problemas seria o primeiro passo para se iniciar a discussão da liberação de mineração em TIs no Brasil.
Este texto resume alguns dos argumentos apresentados no estudo “A fumaça dos minérios: experiências internacionais de mineração em Terras Indígenas”, clique aqui para acessar.
1 Apesar de utilizar a expressão “Povos Indígenas”, com a qual o leitor brasileiro está mais familiarizado, reconheço que na Austrália e no Canadá existem termos diferenciados para fazer referência aos distintos Povos e Nações que vivem nessas regiões desde antes da chegada de colonizadores europeus.
2 A Convenção nº 169 da OIT foi ratificada pelo Brasil por meio do Decreto Legislativo 143/2002