Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos não utiliza verba disponível para o combate à violência de gênero
Com a menor verba dos últimos quatro anos, os recursos voltados ao combate da violência contra a mulher também passam por execuções mais baixas do que os valores autorizados e atraso nas remessas aos estados e municípios.
O Brasil registrou um caso de feminicídio a cada seis horas e meia, em 2020. Ao todo, foram registrados 1.350 casos em um ano. Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, os casos de homicídio motivados por questões de gênero subiram em 14 das 27 unidades federativas do país – sendo os mais acentuados os estados de Mato Grosso (57%), Roraima (44,6%), Mato Grosso do Sul (41,7%) e Pará (38,95).
Apesar dos dados alarmantes, e da notória urgência de políticas públicas para enfrentar a violência de gênero, as medidas tomadas pelo governo federal se demonstram cada vez mais incipientes. No Dia Internacional da Mulher, o Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) divulgou uma nota técnica sobre o uso dos recursos públicos pelo Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos (MMFDH) nos últimos quatro anos.Inaugurado pelo governo Bolsonaro em 2019, o ministério dirigido por Damares Alves (sem partido) é o responsável por receber e manejar os investimentos para o combate a crimes contra as mulheres e a população LGBTQIA+.
No ano de 2022, os recursos destinados ao combate dessas violências são parcos – e os menores dos últimos quatro anos: apenas R$ 5,1 milhões para enfrentamento a violência e promoção da autonomia e R$ 8,6 milhões para as Casas da Mulher Brasileira (aproximadamente R$ 318 mil por estado).

Em 2020, mesmo sob a flexibilização das normas orçamentárias e da situação de calamidade pública decretada em função da pandemia, foram aplicados menos de 70% dos recursos disponíveis, liberados pela União através da Lei Orçamentária Anual (LOA). Essa verba dispensada corresponde a um montante de R$ 93,6 milhões que não chegou aos estados e municípios para financiar a rede de atendimento às mulheres.

Diante da baixa execução de orçamento do MMFDH, parlamentares da oposição, dentre elas as deputadas federais Erika Kokay (PT/DF), Benedita da Silva (PT/RJ), Marília Arraes (PT/PE), Natália Bonavides (PT/RN), Luizianne Lins (PT/CE) e a Professora Rosa Neide (PT/MT), enviaram pedido de investigação a Comissão de Fiscalização Financeira e Controle da Câmara dos Deputados. A partir da denúncia, o Ministério Público Federal abriu inquérito para investigar o destino da verba liberada para o ministério, e onde foi aplicada, de fato. Segundo levantamento do Inesc, feito em julho do ano passado, o valor autorizado em 2021 foi o mais alto desde 2017 (124,3 milhões de reais), o que não refletiu em repasses, que foram menores que os cinco anos anteriores.

A Casa da Mulher Brasileira é o caso mais claro da negligência do governo com as políticas de proteção às mulheres. O centro especializado de acolhimento e apoio jurídico e psicossocial às mulheres vítimas de violência doméstica foi criado em 2015, durante o governo da presidenta Dilma Rousseff e faz parte do Programa Mulher, Viver sem Violência, lançado pelo governo federal em março de 2013. Atualmente, dispõe de oito unidades espalhadas pelo território nacional e representa um aparelho fundamental no combate à violência e garantia de autonomia financeira e social para as vítimas. Sua administração é compartilhada entre União, estados e municípios. No entanto, desde o início da gestão de Damares, a execução orçamentária é muito abaixo do verba disponível: em 2021, dos R$ 21,8 milhões autorizados para execução, foram gastos apenas R$ 1 milhão. Em 2019, nenhuma verba foi encaminhada.

Ligue 180 segue operando, mas as demais políticas não tem funcionado bem
O recurso que mais apresentou estabilidade em termos de volume orçamentário autorizado e executado, segundo o relatório do Inesc, foi o Ligue 180: Central de Atendimento à Mulher. Criado em 2003, o canal recebe denúncias de violações contra as mulheres e tem papel de orientar em casos de violência, direcionando-as para serviços especializados da rede de atendimento.
Tal constância do volume orçamentário significa que a porta de entrada da política pública de enfrentamento à violência segue funcionando, embora a ministra insista em desconfigurar o papel do serviço – como foi o caso da nota técnica emitida pelo ministério que colocava o canal a disposição de pessoas anti vacina que passassem por “discriminação” devido a tal.

Se, por um lado, o principal canal de acolhimento emergencial de mulheres vítimas de violência segue operando, por outro as demais políticas públicas essenciais para lidar com a situação não têm funcionado bem. Um dos indicativos desse quadro é o Relatório da CPI do Feminicídio do Distrito Federal que apurou como a complexa rede de atendimento às mulheres não está atingindo seus objetivos. Um dos motivos apontados é justamente a problemática de que os recursos federais não chegaram aos estados e municípios – ou, se chegaram, foram em quantidades insuficientes e atrasadas.
A última fase do atendimento a uma mulher vítima de violência é a promoção de sua autonomia, ou seja, viabilizar formas de rompimento com a dependência do agressor, com objetivo de possibilitar o fim do ciclo de violência. A execução financeira dos recursos voltados a este fim também se mostrou deficiente: em 2021, o MMFDH executou R$ 44,2 milhões na área – sendo R$ 31,2 milhões de restos a pagar –, enquanto que em 2019 e 2020 o gasto foi em média de 50% do autorizado.

Laura Toyama e Samantha Prado fazem parte da equipe do Le Monde Diplomatique Brasil.