Miscelânea
2013: MEMÓRIAS E RESISTÊNCIAS
Camila Jourdan, Editora Circuito
Ataque sonoro é nome de uma coletânea punk lançada em 1985. Na capa, dois mísseis, um norte-americano e um soviético, miravam a cidade de São Paulo, mostrando as forças antagônicas agindo em conjunto contra o que não seria governado por elas. Essa é a descrição da coleção Ataque, organizada por Acácio Augusto e Renato Rezende em conjunto com a Editora Circuito. É nessa coleção que se insere o livro de Camila Jourdan, 2013: memórias e resistências. Escrito curto e rápido, que trabalha sobre a própria vida da escritora, assim como as canções de punk rock.
Camila esteve nos acontecimentos de 2013, portanto não escreve sobre um fato externo, pressupondo uma neutralidade da razão. O livro é dividido entre suas memórias, entrevistas e análises, o que coloca vida e pensamento em fluxos relacionáveis, escapando da arrogância filosófica e científica capaz de produzir verdades unitárias – uma forma-estado do pensamento. O livro começa com a polícia invadindo a casa de Camila, na época militante da organização anarquista Terra e Liberdade (OTL) e da Frente Independente Popular (FIP), e levando-a para cela da Polinter sem tomar conhecimento da acusação que a havia colocado lá. Livro de escrita corajosa em meio a esse processo cujas provas são os depoimentos de um policial infiltrado na Frente Independente Popular (FIP). As provas vindas desse único relato foram cassadas recentemente pelo Supremo Tribunal Federal (STF), muito embora o processo ainda corra sem essas provas validadas.
Patti Smith, em entrevista ao jornal La Nación, disse que, antes de a palavra “punk” existir como a conhecemos, chamavam-na de liberdade. Após os primeiros shows no CBGB e a emergência desse estilo sonoro nos Estados Unidos, as duas palavras passaram a se mesclar em uma relação explosiva. Para a poeta do rock, o punk se transformou e pode ser muitas coisas; ele é uma vontade de afirmar outras formas de vida. Nesse sentido, Camila não escreve sobre Junho de 2013, e sim com o acontecimento. É disso que também tratava Junho: a afirmação de outros mundos e outras vidas, de práticas de liberdade. É também por esses caminhos que reverbera a vida pulsante desse livro em meio aos seus breves e corajosos acordes.
[Wander Wilson] Doutorando em Ciências Sociais (Antropologia) pela PUC-SP.
O JOVEM HEGEL E OS PROBLEMAS DA SOCIEDADE CAPITALISTA
György Lukács, Boitempo
Talvez nunca tenha havido um tempo menos receptivo a O jovem Hegel, do marxista húngaro György Lukács, que o nosso. E por isso, passados oitenta anos de sua conclusão, é ainda tão incômodo e necessário, não só pela clareza e rigor filosófico, mas por ser um exemplar da potência bélica da crítica materialista. A obra deflagra guerra ao irracionalismo – partilhado, hoje, solidariamente por reacionários e setores do campo progressista.
Sob as maiores tensões do século XX, Lukács não se estabeleceu à sombra do poder das forças dominantes de seu tempo nem se postou criticamente nos aposentos do Hotel abismo, destino de parte da intelectualidade. Enfrentou o chamado “neo-hegelianismo imperialista”, responsável pela miragem de um Hegel romântico-teológico-irracional, combatendo da primeira à última página as “falsidades históricas de tendências fascistizantes”. Não fez concessões, como muitos o acusaram sem provas, à vulgata stalinista, para quem Hegel não passava de um “cachorro morto”. A democracia liberal, capitalista, pois, só atraiu de Lukács um único interesse, o crítico e revolucionário.
Ao final dos quatro capítulos, o leitor terá acompanhado o movimento contraditório que compreende a crescente apreensão por parte do jovem Hegel das condições da sociedade burguesa, o que fez dele um realista, ao passo que se manteve limitado pelo horizonte burguês, fato materializado na tentativa de reconciliar-se com essas mesmas condições. Lukács, à maneira de Marx, Engels e Lenin, reconhecendo in statu nascendi a contradição entre sistema e método em Hegel, expõe o cerne real de sua dialética mistificada e, assim, o ponto de contato entre Marx e Hegel, ou este como precursor daquele.
Quando a filosofia, longe de se popularizar, vulgariza-se na forma de best-seller e parte considerável das editoras investe o minguado dinheiro nisso, precisamos elogiar a Boitempo pelo projeto Biblioteca Lukács, coordenado por José Paulo Netto e Ronaldo Vielmi Fortes. Graças a eles e ao tradutor Nélio Schneider, podemos pela primeira vez ler O jovem Hegel e os problemas da sociedade capitalista em português.
[Murilo Leite] Doutorando em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais, onde pesquisa a crítica de Marx ao direito.
<INTERNET>
Novas narrativas da web
Sites e projetos que merecem seu tempo
Florescer por Marielle
Mulher, negra, mãe, lésbica, socialista, militante dos direitos humanos, Marielle Franco ganhou um site em sua memória e de seu motorista, Anderson Gomes, assassinados no dia 14 de março de 2018. “Quem mandou matar Marielle não imaginou que ela se tornaria milhares, milhões de sementes”, diz o texto que apresenta o projeto, que traz, além da história, ilustrações, grafites, tatuagens, fotos, cartazes e homenagens variadas. Oferece ainda download de imagens, vídeos e uma pequena biografia de três ex-assessoras de Marielle eleitas deputadas estaduais do Rio de Janeiro – uma amostra de que essas sementes já começaram a germinar.
<www.florescerpormarielle.com.br>
Laboratório da Cidade
Dezenas de pesquisadores têm se dedicado, nos últimos anos, a acompanhar processos de urbanização do Brasil por meio de um laboratório na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Coordenado pelas pesquisadoras Raquel Rolnik e Paula Santoro, o site oferece uma vasta coleção de mapas, textos, imagens e vídeos produzidos pelo próprio lab. Há ainda o Observatório de Remoções, que recebe denúncias e faz um mapa permanente, participativo, dos lugares ameaçados e das famílias removidas, cruzando esses dados com outros, como os projetos de urbanização. Baita conteúdo não apenas para quem estuda o assunto, mas também para qualquer cidadão interessado no futuro das cidades.
Som dos sinos
Um projeto poético que busca a intersecção entre memória, sons e novas tecnologias. O foco é o toque dos sinos e o ofício de sineiro. É ao mesmo tempo uma cartografia sonora e uma tentativa de engajamento da sociedade civil e da valorização dos indivíduos detentores dos saberes registrados como patrimônio cultural. Em algumas cidades de Minas Gerais, são tradicionais mais de quarenta toques diferentes de sinos, que identificam ritos litúrgicos, mortes, tipos de missa, partos, incêndios, horários sacros. O site mapeia e explica cada um deles, integrando diversos canais de narrativa, inclusive um longa-metragem.
[Andre Deak] Diretor do Liquid Media Lab, professor de Jornalismo da ESPM, mestre em Teoria da Comunicação pela ECA-USP e doutorando em Design na FA