Miscelânea
PELA METADE: A LEI DE DROGAS NO BRASIL
Marcelo da Silveira Campos, Annablume
Em 2006 tivemos uma mudança substantiva na lei que operava as ordenações referentes às substâncias ilícitas: era lançada a chamada Nova Lei de Drogas. À primeira vista, ela mostrava, ao que parecia e tudo indicava, pontos positivos para o avanço do debate das políticas públicas: a retirada da pena aflitiva de prisão para o usuário de drogas unida à sua entrada no serviço de saúde como fundamental para o tratamento e a não criminalização desse mesmo usuário. No entanto, para que tais propositivas fossem aceitas, houve de rebote o aumento da pena mínima de três para cinco anos para o traficante. Se a intenção de não apenar o usuário e transformá-lo em questão de saúde pública foi para diminuir o encarceramento em massa, em números já expressivos e em constante crescimento, ela não deveria deixar de criminalizar os que se envolvem com o mercado de psicoativos.
A maneira que encontraram de mostrar que a Lei n. 11.343, de 2006, tratava-se de uma nova maneira de administração estatal da droga no Brasil foi expressar uma lógica de menos punição e mais prevenção, dando destaque a um dispositivo dividido em duas metades: o médico e o criminal. Essas duas partes se revelam durante o percurso do livro, o que chama a atenção em seu título: há uma política feita “pela metade”. A metáfora de um copo vazio de práticas médicas e cheio de práticas punitivas demonstra o que se tornou a Lei de Drogas.
O autor nos mostra que a Nova Lei de Drogas, na verdade, aumentou o encarceramento, e a população prisional presa por drogas passou de 13% para 30%. Se a ideia inicial era a preservação e prevenção de usuários, após 2006 muitos deles foram presos como traficantes, o que comprovou que, para o sistema de justiça, a diferença entre usuário e traficante não está relacionada a definições de mercado e varejo. A diferenciação de ambos se dá em função da classe social, escolaridade e origem social, isto é, se alguém for escolarizado, tiver uma profissão e morar em algum bairro central de alguma metrópole, provavelmente não será enquadrado como traficante.
[Beatriz Brandão] Cientista social e jornalista. Doutora em Ciências Sociais pela PUC-Rio, pós-doutoranda em Sociologia pela USP e pesquisadora do Ipea.
SEJA COMO FOR. ENTREVISTAS, RETRATOS E DOCUMENTOS
Roberto Schwarz, Duas Cidades
Roberto Schwarz não é um intelectual usual, daqueles que nadam no sentido da corrente. Bem ao contrário. No limite, sua trajetória pode ser vista como a explicitação de um modelo de trabalho intelectual que, dos anos 1960 até os dias de hoje, foi sendo cada vez mais colocado em questão. Pode-se mesmo dizer que a reflexão schwarziana foi ganhando intensidade em medida inversamente proporcional ao declínio (no Brasil e no mundo) da figura do intelectual crítico irredutível às posições estabelecidas, mas antenado com o debate público do seu presente – figura com a qual ele sempre se identificou.
Abarcando mais de cinco décadas de atividade, seu novo livro, Seja como for, dá um testemunho significativo desse itinerário singular, seja por meio da exposição de seu próprio pensamento, seja por meio de comentários ou retratos de intelectuais com quem manteve alguma interlocução. Nesse que é seu nono livro de crítica (afora dois de poesia e uma peça de teatro), Schwarz se faz presente em toda a sua plenitude espiritual. O livro compila materiais preciosos, alguns dos quais até então relegados ao segundo plano, a despeito da importância que têm na decifração de nuances do pensamento do autor comumente desprezadas pelas leituras impressionistas, que não apreendem senão o sentido literal do texto.
Pode-se destacar, por exemplo, a entrevista concedida a Maria Rita Kehl e Fernando Haddad, publicada na revista Teoria e Debate em 1994, ou a longa entrevista a Eva Corredor, também de 1994, em que Schwarz coloca em seus devidos termos o papel de Lukács em sua atividade crítica. Ou ainda a entrevista a Louzada Filho e Gildo Marçal Brandão, publicada originalmente na revista Encontros com a Civilização Brasileira, em 1979. Sem falar no relatório da polícia política da ditadura militar sobre o ensaio “Cultura e política”, ou na carta inédita em que conta ao mestre Antonio Candido as peripécias de sua defesa de doutorado em Paris, com um dos membros avaliadores tendo se recusado a aceitar a tese, acusando-o de apresentar um trabalho incompreensível – algo semelhante ao que havia se passado com Walter Benjamin na Alemanha, em 1925, salvo o desfecho diferente, já que, no caso de Schwarz, o obstinado avaliador acabou por se retirar da banca, que enfim aprovou o trabalho.
[Fabio Mascaro Querido] Professor do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Unicamp. Confira versão ampliada desta resenha em diplomatique.org.br.
Novas narrativas da web
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Inumeráveis
Site colaborativo que reúne pequenas frases que dão mais significado a um número: os mortos pelo coronavírus no Brasil. Inumeráveis é um memorial dedicado à história de cada uma das vítimas da Covid-19 no Brasil. Uma obra do artista Edson Pavoni em colaboração com diversos apoiadores, jornalistas e voluntários, que continuamente adicionam histórias ao memorial. As histórias têm também sido lidas na televisão por atores da Globo, durante a programação. É como diz o site: “Não há quem goste de ser número; gente merece existir em prosa”.
https://inumeraveis.com.br/
Onde há fumaça
Inspirado em eventos reais vividos pelo diretor Lance Weiler, uma instalação chamada Where There’s Smoke mostra detalhes da biografia de seu pai, fotógrafo voluntário dos bombeiros que lutou anos contra o câncer, e suas memórias. Weiler é um pioneiro na arte de misturar linguagens e tecnologia. A instalação imersiva foi reconhecida como uma das mais interessantes dos Estados Unidos no ano em que ocorreu, 2019. Misturava teatro, scape room (um quarto com mistérios que precisam ser desvendados para que se possa sair dele), documentários e fotografias.
O espírito de 1945
O cineasta inglês Ken Loach (Eu, Daniel Blake, de 2016, e Desculpe, você não estava aqui, de 2018) fez em 2013 um documentário sobre o contexto do Reino Unido depois da vitória na Segunda Guerra Mundial, com Winston Churchill. Apesar de vencer a guerra, Churchill perdeu as eleições para o Partido Trabalhista – a economia ia muito mal e, então, as pessoas escolheram os socialistas para a retomada da Inglaterra. “Se o Estado pode pagar soldados para matar alemães, pode pagar trabalhadores para construir estradas e hospitais”, era a ideia geral da campanha. Um site complementa com mais material o documentário.
http://www.thespiritof45.com/
[Andre Deak] Sócio do Liquid Media Lab, professor de Jornalismo e Cinema da ESPM, mestre em Teoria da Comunicação pela ECA-USP e doutorando em Design na FAU-USP.